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Rubens Figueiredo

A quarta edição do Paiol Literário 2018 contou com a presença de Rubens Figueiredo

O escritor e tradutor Rubens Figueiredo foi o quarto convidado desta temporada do Paiol Literário — projeto do Rascunho, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Cultural de Curitiba e do hotel Centro Europeu. O bate-papo aconteceu no dia 4 de setembro, no Teatro do Paiol, em Curitiba (PR), com mediação do jornalista Yuri Al’Hanati.

Figueiredo, que estreou na literatura com o romance O mistério da samambaia bailarina (1986), aposta no acaso como responsável por sua trajetória — tanto de escritor quanto de tradutor. Tudo começou quando, ao escolher o curso de graduação, optou por letras português-russo por medo de não passar em francês — o que, constatou depois, teria conseguido. “Nossa vida é um monte de acidente”, diz o autor de Passageiro do fim do dia (2010), vencedor do prêmio Portugal Telecom de Literatura.

Na conversa a seguir, o tradutor de, entre outros, Guerra e paz e Anna Kariênina, do russo Liev Tolstói, compartilha um pouco de sua trajetória profissional, discute a relevância da literatura russa, a importância de se questionar e afirma o potencial da ficção como um norte possível para a existência.

• Por que ler ficção?
Em geral, isso vai depender de cada pessoa. A importância universal, generalizada, não sei. Cada um vai encontrar alguma função para aquilo. Alguma utilidade. Se não tiver nenhuma, ninguém vai procurar. E com toda razão. Não é defeito. A pessoa não vai ser pior se não se interessar por ficção. Não é assim. Esse tipo de atividade não é como comer, dormir ou tomar banho. É uma coisa que a pessoa descobre aos poucos, ou de repente, ou por acidente, ou por algum estímulo. Ela descobre que aquilo a ajuda a enfrentar a vida, a compreender. Esse é o aspecto que talvez eu possa enfatizar aqui a partir da minha experiência, e da experiência de muitas pessoas que acompanhei como professor.

• Literatura como guia
Grande parte da nossa experiência de viver é envolta numa espécie de neblina. De confusão. Acontecem coisas graves, de grande alcance — seja conosco pessoalmente, seja com a coletividade, seja em grande escala histórica. E, no conjunto, a gente se vê, em grande parte das situações, um pouco perdido. Nós nos vemos vulneráveis a apelos, a propaganda, a informações sensacionalistas, ou como quisermos chamar, que só ajudam a desnortear. Não nos ajudam a compreender. Acho que a literatura, a ficção, faz parte dessas atividades humanas cuja origem é essa necessidade de entender melhor as coisas. Entender melhor a nossa vida. Não só a vida pessoal, mas a coletiva. A vida social. É nesse espaço, na nossa maneira de viver, que a literatura pode, não digo preencher, mas participar; nos ajudar a entender, conhecer melhor, organizar e dirigir nossos questionamentos, para a gente não ficar perdido, dando chutes a esmo ou repetindo palavras alheias.

• Disposição de questionar
Na maneira como nós vivemos, existem mecanismos, fatores objetivos, que estão fora do nosso alcance e nos levam a fazer, falar e pensar coisas que não partem de nós. Partem de uma sociedade que funciona como uma máquina que objetiva se reproduzir. Para isso, ela precisa de nós. E ela precisa que a gente não entenda isso para que esse processo funcione. Então, a literatura pode ser uma brecha, um espaço que emperre esse mecanismo. Que atrapalhe essa coisa. Para isso é preciso ter uma disposição de questionar. Uma inquietação. Alguma insatisfação com o que a gente vive, sente, pensa.

• Primeiros passos
Primeiro, somos alfabetizados. O que é uma experiência espetacular. Eu me lembro que tinha seis anos e, de repente, estava lendo. Era uma história em quadrinhos. Ali, comecei minha carreira de leitor. Eu andava de ônibus com meu pai e comecei a ler os letreiros das lojas. Antigamente, as lojas tinham o nome e depois uma sequência de letras — Ltda. Em todos os letreiros. Eu lia aquilo assim: Litida. Os meus pais diziam: “não, Rubens. Aquilo quer dizer ‘limitada’”. Isso é leitor. Você estar lendo os letreiros, isso é um leitor. É tão espontâneo que não percebemos o significado de ler. Esse processo mental no qual a gente consegue combinar as letras em conceitos, e esses conceitos capturam uma parte do mundo. Isso é um negócio tão espontâneo, como se fosse beber um copo d’água, que a gente nem pensa quando faz. E, no entanto, é uma coisa grave. Uma coisa profunda, que tem muito alcance, mas de aparência tão óbvia que não damos muita atenção.

• Exercício da leitura
A leitura requer um esforço mental. A rigor, não é muito diferente do esforço de ouvir uma música ou de você brincar. Tudo envolve alguma atividade mental. Agora, a questão da leitura do livro está relacionada exatamente com a descoberta da importância de ficar sozinho, de ficar concentrado. Uma concentração. O que é uma experiência que não está dentro da lógica do nosso cotidiano moderno, a concentração. Pelo contrário. Parece que nós somos solicitados a manter uma certa dispersão barulhenta, espaçosa. É um movimento mais para fora, entende? Acho que faz parte daquela visão nebulosa que mencionei anteriormente. Essa sensação de que a vida está organizada de uma maneira nebulosa pode estar relacionada com essa dificuldade de a gente se concentrar. Com essa falta de estímulo para a concentração. A leitura envolve alguma concentração. Mas isso pode ser um preconceito meu.

• Precariedade
Muita gente entra [no curso de Letras] sem o menor interesse em leitura. Até professores, na época em que fui aluno, lá por 1974, não tinham leitura nenhuma. Não havia concurso para professores universitários. Era uma época muito precária. Agora o pessoal reclama, mas não tem ideia. A minha faculdade tinha parede de papelão, teto de zinco, chovia dentro da sala. Entendeu? Pessoal que reclama tem que entender um pouco porque, se bobear, eles tiram tudo o que se conseguiu. Vão voltar num barraco de novo. Estudei numa faculdade com parede de papelão, cujo chão era furado. Você olhava e via lá embaixo. Professores que não tinham formação eram arranjados de improviso, nomeados de favor. Não tinha concurso. Essa era uma faculdade de Letras de uma universidade do Brasil.

• Escolhendo a graduação
Terminei o curso médio e precisava fazer uma faculdade. O estímulo dos meus pais era esse, porque eles nunca puderam fazer faculdade. Fui escolher um curso. Havia muitas opções. Isso foi em 1973. Eu tinha estudado inglês, lia inglês. Meu irmão tinha tido umas aulas de francês. Eu pegava os livros, comecei a aprender francês e lia. Pensei: “Bom, vou fazer essa faculdade aqui, pegar francês, porque eu estudo em casa”. Quando fui me inscrever fiquei achando que não ia passar. Fui lendo a lista e tinha o seguinte, na faculdade de Letras: Departamento de Línguas Orientais e Eslavas. Tinha hebraico, árabe e russo. Russo, cara? Fiquei surpreso. Lembrei que tinha lido uns escritores russos e eles eram interessantes. Um outro fator também me estimulou a estudar russo. Era 1973, governo de um general malucão chamado Médici, que era um cara tenebroso. Um sinistro. O primor da ditadura era perseguir comunista. Pensei: “Então tá, vou estudar russo porque na Rússia tem comunista. Deve ser bom. Interessante”. E fiz. Me inscrevi e passei. Depois, fui ver minha nota e podia ter até entrado em francês.

Importância do professor
Nesse departamento de russo, conheci uma professora de linguística extraordinária que tinha estudado no Instituto Pushkin, em Moscou. Era mineira. Alguns anos antes do início da ditadura, ela tinha ido estudar lá por intermédio de um sindicato de Minas Gerais. Era uma mulher pobre. Ela se formou no Instituto Pushkin como linguista, voltou e deu aula na UFRJ. E ela não era do Departamento de Línguas Orientais e Eslavas, mas resolveu dar aula e gostou muito da turma que eu fazia parte. Acompanhou do início ao fim. Depois, fiz uma pós-graduação com ela, a professora Maria Aparecida Botelho.Isso foi uma felicidade para mim. Foi a primeira felicidade em relação à língua russa, esse contato com a professora. Para você ver como os professores são importantes. Tive outros professores muito bons na faculdade. Mas eram exceções.

“Qualquer técnica artística, isolada do questionamento intelectual sério, não vale nada.”

Acaso
Só comecei a fazer tradução porque não podia dar aula, digamos, na quantidade de tempo que é normal para um professor. Eu dava aula no colégio Militar e no Estadual. Depois de oito anos nessa batida, tive problemas sérios de garganta. A fonoaudióloga me disse: “Você tem que mudar de profissão”. Eu gostava muito do colégio da noite, o Estadual, e não gostava do colégio Militar. Falei: “Vou largar esse colégio”. E aí comecei a fazer tradução pra completar o orçamento. Já era escritor, tinha feito três livros. Pedi exoneração do colégio Militar. Na semana seguinte, estava fazendo tradução. Comecei a traduzir por um conselho de uma fonoaudióloga. Isso é interessante. Quantas coisas da nossa vida não são determinadas pelo acaso? Os caras fazem projetos extraordinários. Chegam esses picaretas e falam: “Você tem que ter planejamento, você tem que organizar, tem que ter um objetivo, uma meta”. Vá plantar batata! É conversa pra boi dormir! Quem é que sabe o que vai acontecer? Tudo bem, tem alguma coisa que você persegue. Mas essa arrogância, essa disciplina mecânica só existe da boca pra fora. Nossa vida é um monte de acidente. Se você não quiser admitir, não quiser enxergar, tudo bem. É um direito. Mas esse é um fato que a gente constata.

Gênese do escritor
Também foi uma série de acidentes. Quando jovem, queria fazer poemas. Tem coisa mais envolvente para um jovem do que um poema? É uma coisa mais rápida, de mais efeito, tem prestígio. E eu fazia, com meus colegas. Tínhamos grupos, fazíamos poemas. Continuamos um pouco nessa história. Mas eu rapidamente percebi que tinha um troço que não ia funcionar, e comecei a escrever. Agora, tem uma história aí que é engraçada. Tem nada a ver com o que se espera, mas é verdade. Eu fazia os poemas, era formado, estudava russo, tinha umas pretensões juvenis ainda. Mas aí, quando terminei a faculdade, fui trabalhar. Era horrível na época, não tinha emprego em lugar nenhum. Em 1979, 1980, era um deserto. Deserto. Nada. Aconteceu que eu tinha 23 anos — 22 para 23 anos — e não conseguia colégio para dar aula. Eu havia comprado uns livrinhos de banca de jornal, feitos no Rio de Janeiro, os verdadeiros livros de bolso — feitos de papel de embrulho, com linotipo de chumbo. Era um papel tão ruim que você via os palitinhos naquela massa de papel prensado. Era um papel de péssima categoria. Aqueles livrinhos eram leitura de povo. Leitura popular. Leitura de porteiro, de pessoal do ônibus, do trem. Custava mais barato do que uma passagem de ônibus. Essa editora também fazia uns livrinhos de contos de terror. Eu tinha alguns livros daqueles em casa, gostava. Pensei: “Posso fazer alguma coisa para essa editora, porque é a pior que existe. Não é possível que eles não me aceitem. Essa aqui é a editora mais vagabunda do mundo. Vou tentar”. Fui lá. Peguei o ônibus em Copacabana, onde morava e ainda moro, até Olaria. Da zona sul para a zona norte. Bati na porta do lugar. Era uma espécie de fortaleza, parecia uma indústria sem máquinas. Imagine uma indústria com salões vazios. Aquelas janelas de basculante, de ferro. Um galpão. Ali, funcionava a editora. Uma garagem onde entravam caminhões enormes, entravam e saíam, carretas entupidas de livrinhos. Bati na porta, falei com alguém: “Queria fazer tradução desses livros aqui de bang bang”. Fui recebido. Aparece na minha frente um sujeito chamado Rubens. Um coroa, senhor muito excêntrico, engraçado. Ele me disse o sobrenome. Eu tinha lido coisas que aquele sujeito tinha escrito — histórias em quadrinhos de vampiros, de mulher vampiro. Ele era autor dessas coisas. Eu conhecia muita coisa dele. O cara ficou empolgado, visivelmente empolgado. E eu também, porque era o primeiro escritor que conheci e conversei. E era meu xará, Rubens. Ele gostou de mim, me deu logo um trabalho para eu traduzir do espanhol, um livro de bang bang. Traduzia numa semana, levava. Quando levei o terceiro livro, ele falou: “Rubens, você não quer trabalhar aqui? Fulano vai sair, você vai trabalhar aqui”. Aceitei. Qual era o meu trabalho? Não era mais tradução. Eu tinha que pegar desses livrinhos de bang bang, ler e corrigir o que estivesse errado, faltando. Só que, por uma bagunça da editora, havia originais em que faltavam várias páginas. Havia histórias sem início, sem final, sem um pedaço, sem uma página. Eu tinha de completar. Assim, comecei a escrever. Estava fazendo ficção.

Praticando a escrita
Em 1981, 1980, na Ditadura, ainda havia um histórico de censura nas bancas de jornal. Nessa altura, a censura mais acentuada era contra o erotismo. De que forma era feita a censura? Da mais aleatória. De repente, um delegado cismava, ia nas bancas e recolhia tudo que ele achasse erótico. Essa editora em que eu trabalhava tinha uma coleção de livrinhos eróticos, e outra de livrinhos românticos. Quando eles recolhiam os livros eróticos, na quinzena seguinte não podíamos reabastecer as prateleiras. O chefe chegava para mim e dizia: “Rubens, transforma esses livros eróticos aqui em românticos”. E eu fazia. Das 8 da manhã às 5 ou 6 da tarde — sentado, sozinho, num canto. Tem até uma foto. Tinha que transformar os eróticos em românticos. Só que, depois de um mês, 45 dias, já não havia mais aquela caça aos livros eróticos na banca e, na editora, havia um excedente de livros românticos — ou seja, era preciso repor o estoque de eróticos. Eu, que tinha aspiração de ser um escritor, mas nunca tinha sentado para escrever nada, fui obrigado a escrever ficção dentro de parâmetros bem definidos, circunstanciais. Inventei coisas. Essa minha invenção se concretizava em palavras, frases. E foi aí que à noite, em casa, comecei a escrever um livro.

Ação do tempo
Estou com 62 anos. Ao longo do tempo, você passa por muitas transformações. Você vai compreendendo — espero — melhor algumas coisas. Amadurecendo. Escrevi poucos livros, com um espaço muito grande entre um e outro. É natural que, entre um e outro, eu tenha mudado bastante. Que o peso de certas preocupações tenha mudado. Ou algum tipo de confiança, a respeito de certos assuntos, tenha aumentado. Eu diria isso. No caso do meu derradeiro livro, Passageiro do fim do dia, em relação a livros anteriores, eu diria que ganhei confiança na maneira como entendo o processo histórico em geral, as relações sociais. Essa é uma diferença.

Recalque
Você pode escrever e ler para recalcar a sua insegurança a respeito de um assunto. Quer dizer, “eu não entendo o que está acontecendo aqui, por que isso é assim?”, então eu recalco. Reprimo. Ponho para baixo essa inquietação e procuro levantar outro tipo de coisa. Mas ela está lá, não pode estar em outro lugar. É a coisa mais forte que existe, entendeu? Ninguém foge da história concreta. Ninguém foge do dia a dia, da economia, das relações sociais. Não há fuga. Está em tudo. Cada vírgula, cada adjetivo que você põe no livro sofrem o efeito e a determinação de fatores históricos, concretos, econômicos — do que quiser chamar. Agora, compreender isso, reconhecer isso, como enxergar isso depende muito de como a gente se dispõe a participar dessa questão. Como a gente se dispõe a questionar isso. Se a gente fica intimidado, recalca. Foge. É uma fuga. Mas é compreensível. Não é nada condenável. É uma coisa normal. Faz parte do caminho. Só que, ao ter um pouco mais de segurança a respeito da compreensão de determinados problemas históricos, você enxerga um conjunto mais coerente.

Passageiro do fim do dia
É curioso que Passageiro do fim do dia seja composto, em grande parte, de situações, histórias que vivi, ou que ouvi, muitos anos antes de ele ser escrito. Poderíamos dizer que recalquei isso. Mas, quando eu estava mais seguro de entender aquilo, elas voltaram. Não precisei anotar nada em nenhum caderninho — como fazemos nós escritores, anotar as coisas. Não, não. Aquilo veio como traumas reprimidos. Eram problemas, questões que estavam ali sem resposta, sem qualquer encaminhamento. Fiz o livro quando passei a entender melhor as experiências que tive no colégio em que dei aula por 26 anos, à noite, num lugar bem pobre. Quando comecei a ter mais segurança a respeito disso, quando comecei a perceber com o que toda essa experiência se relacionava, em que cadeia de situações históricas aquilo se enquadrava como uma corrente coesa, inexorável, da qual eu fazia parte, da qual a minha incompreensão fazia parte, fiz o livro.

“Se a arte russa é assim, rica, é por conta dessa relação estreita que os intelectuais e artistas têm com a sociedade russa.”

Textos que inquietam
Acho que, quando a gente não tem inquietação, deve ficar preocupado. Não quer dizer que o cara tem que ser encucado, triste. Pode ser alegre, otimista e tudo. Mas inquietação é outra coisa. É um estímulo para a gente pensar. Questionar. É isso que eu chamo inquietação. A morte de Ivan Ilitch [do Tolstói] e O professor de letras [conto de Tchekhov] são dois textos dos mais inquietantes que podem existir. Acho que o autor d’A morte de Ivan Ilitch é o maior escritor que já vi, o Tolstói. Para mim não existe melhor. Do que eu conheço, esse é o mais impressionante. Quanto mais o tempo passa, mais me impressiona. Uma das questões centrais no Tolstói é a morte. Mas não de uma maneira mórbida. Não de uma maneira lamentosa. Muito menos de uma maneira alegre. Ele lança a seguinte questão, implicitamente, nesse livro e em todos: nós vivemos uma série de problemas íntimos, individuais, familiares, conjugais, domésticos, profissionais, sociais, coletivos, dramáticos, e temos de fazer uma série de opções a todo momento. Ele vai levando o seu questionamento com rigor, com uma forma implacável e chega ao seguinte termo: o ponto a partir do qual as coisas devem ser avaliadas é a morte. Ou seja, como é que essa questão que me envolve tanto, me preocupa, me leva a fazer isso e aquilo surge quando vista da perspectiva da morte? Percebe? É muito simples. O problema é muito simples e muito concreto. Ele parte de uma experiência universal, inevitável — que é tanto natural quanto social-histórica — que é a morte, e pergunta: vale a pena fazer o que fazemos olhando do ponto de vista da morte? Porque ele não supõe que tenha qualquer continuidade a partir da morte. Depois da morte, acabou. Acabou aquilo, acabou você. Mas outros continuam.

Pedra de toque
A morte de Ivan Ilitch, por exemplo, é um dos relatos no qual Tolstói põe a questão da morte como se fosse a Pedra de Toque. Antigamente, os caras pegavam uma pedra e a encostavam no ouro para saber se o ouro era ouro. Aquela pedra era chamada Pedra de Toque. É uma coisa assim. Nós temos esse problema. Eu estou juntando dinheiro, estou trabalhando, prejudicando o outro para ter isso, para ter um carro, não sei o quê? Põe a morte aí e veja o que acontece. Entendeu? Agora, para você chegar a essa noção é preciso se desfazer de muitos preconceitos dos quais a sociedade depende para se reproduzir.

Realização
Fui professor de português durante 30 anos e foi a coisa mais importante que fiz na minha vida. Antes de morrer, vou pensar: “Fui professor”. Fiz bem a um bocado de gente. A coisa mais bonita que tem é a relação do professor com o aluno. Não existe coisa mais legal. É a minha experiência.

Mantendo a essência
A língua é um fenômeno social. Claro, ela também é natural, deve estar em algum lugar do nosso cérebro, mas isso é secundário. O que importa para nós é que ela é um fenômeno social, histórico, que está intrinsecamente ligado à lógica e ao funcionamento da vida social. Nós aprendemos a falar e aprendemos a escrever de uma certa maneira. Uma maneira que é determinada historicamente, segundo a necessidade das classes dominantes. As ideias dominantes são as ideias da classe dominante, disse o Karl Marx. Então, a língua dominante é a língua da classe dominante. Numa sociedade não poderia ser diferente. Nós ensinamos a escrever e falar conforme a língua da classe dominante, porque é o que os alunos em algum momento vão necessitar de alguma maneira. Mas é claro que se tenta desenvolver consciência sobre isso, fazer com que eles tenham consciência disso e que não tenham vergonha de sua língua — do que é chamado de erro, peculiaridade e o caramba. Eles têm que ter orgulho de sua cultura linguística. Porém, na literatura, existe uma série de padrões históricos do que é correto, do que é bom, de bom gosto, do que é literário, do que é elegante. Quando um escritor qualquer, nas suas escolhas de linguagem, resolve desviar-se disso por algum motivo, isso é relevante. Essa é uma informação relevante. Se a gente, como tradutor, identifica esse desvio linguístico e identifica que esse desvio está relacionado a uma linha de questionamentos que está no livro, no conjunto, ou naquele escritor, me parece produtivo, proveitoso, tentar transpor esse desvio para o nosso idioma. Para o nosso trabalho de tradutor.

Desafios
É bom observar que isso não acontece sem conflitos [manter, na tradução, os desvios linguísticos de um autor]. A tradução de um autor como o Tolstói, por exemplo, que é questionador. Ele questiona a fundo toda uma civilização, a situação burguesa. A ordem burguesa é questionada a fundo. Se nesse escritor acontecem alguns desvios desse tipo, acho produtivo manter esses desvios no nosso idioma. Ao chegar nas pessoas que vão editar o livro há uma tentativa de aplainar aquilo. Padronizar, enquadrar aquilo na norma dominante, em alguma medida. Com algum argumento. Aí é a parte mais legal, porque você tem que brigar. Tem que discutir. E às vezes não consegue. Você descobre coisas incríveis. Um exemplo, no caso do Guerra e paz. Eu estava lá traduzindo e, de repente, aparece a expressão “guerra popular”. Nas traduções que eu estava olhando, em outras línguas, aparecem coisas assim: “guerra patriótica”, na de português de Portugal. Por que “patriótica”? Ele usa “povo”. Cadê o povo? Lá, adiante, Tolstói usa a expressão “força do povo”. Tradução, da Universidade de Harvard, ou não sei o quê: “força da nação”. Ou seja, o povo é eliminado. Por quê? Não pode ter povo, gente. Guerra popular é uma coisa muito perigosa. Imagina, se o povo fizer guerra. Os ricos estão ferrados. Então, vamos começar cortando isso aqui na tradução. Porque esse Tolstói é um clássico, um escritor universal, não pode falar esse negócio. Percebe? Ele não pode repetir as palavras, não pode fazer esse tipo de construção cheia de paralelismos. Não, não. Vamos dar uma limpada. Essa é outra questão: existe um impulso à padronização do nosso comportamento e da linguagem literária, também. Do nosso comportamento, do nosso pensamento e da linguagem literária. Não é tanto uma questão de se esforçar para ser original, ou criativo, também não é isso. É uma questão de você saber transpor, na linguagem, o questionamento concreto que você faz. Essa é a questão. Ser criativo é fácil: o cara planta bananeira, fica pelado, não sei o quê. Isso aí está nos comerciais, completamente assimilado, absorvido. Não é isso. Qualquer técnica artística, isolada do questionamento intelectual sério, não vale nada. Não tem alcance nenhum. É só uma brincadeira. Isso é o que a experiência modernista do século 20 tem que assimilar. Isso tem que ser a fonte do amadurecimento da gente, no século 21.

Literatura russa
O que me chamou a atenção, nesse contato que eu passei a ter mais frequente e profundo com a literatura russa clássica, não foi um aspecto técnico. Não foi um procedimento de composição, de escrita. Não foi uma série de ideias, um ideário. O que me chamou a atenção foi que toda atividade literária — do escritor, do leitor, do editor — poderia ter uma relação com a sociedade, de conjunto, de um teor completamente diferente daquele que eu conhecia. A literatura russa tinha, com a sua sociedade, um tipo de relação que é diferente do que nós estamos habituados a imaginar. Minha hipótese é que essa relação com a história do país, com a sociedade do seu tempo, é que dá aos livros um conteúdo diferencial. Único. É o que dá o alcance histórico. Não é tanto a questão de um autor ser brilhante, um gênio, de haver algum patrono que proteja ou incentive alguém. Não é isso. É que, na época, a sociedade tinha — em relação à literatura e à vida cultural — uma expectativa, uma exigência. Um tipo de demanda muito diferente do que nós estamos acostumados a ver. O que está nos livros, até hoje, não parte tanto dos autores, mas dos leitores. Não do leitor individual, mas do conjunto. Daquela sociedade, daquela movimentação da sociedade da qual os leitores faziam parte e o escritores também. É claro que cada um acrescenta a esse processo todo traços peculiares, individuais. Mas, no conjunto, é isso que eu vejo. Para mim, a contribuição da literatura russa foi esta: desautomatizar a minha visão da literatura como um tipo determinado de atividade na sociedade.

“Você pode escrever e ler para recalcar a sua insegurança a respeito de um assunto.”

Arte russa
É um problema no qual muita gente para para pensar [se existe maior dificuldade em traduzir os russos, levando em conta a história conturbada do país]. Isso é desde o século 19. A gente tem que entender o seguinte: no século 19, lá em 1830, 1840, para os países ricos da Europa a Rússia era o que eles chamavam de Terra de Ursos. “Literatura russa” eram duas palavras que quase não se encaixavam no léxico de um inglês, de um francês, de um espanhol. Hoje em dia, se debate o preconceito de todas as ordens, menos contra os russos. Contra russo você pode ter preconceito. Agora que teve a Copa do Mundo, vi uma pessoa, na televisão, dizendo “poxa, eles são pessoas como nós”. Juro a você. “São pessoas como nós.” A gente pensa no que aconteceu na Rússia, mas esquece do que aconteceu fora. O que acontece fora. As duas coisas estão relacionadas, partem do mesmo processo. Se a arte russa é assim, rica, é por conta dessa relação estreita que os intelectuais e artistas têm com a sociedade russa — e vice-versa. Mas, também, por conta da constante pressão externa sobre eles. É um instinto de defesa secular. Perceber? Por isso, é uma continuidade. Uma coerência. Porque, se nós olharmos para a América Latina, podemos encontrar alguma coisa parecida — em outra escala, outro desenho, mas há uma coisa parecida, que se manifesta de outra maneira.

Literatura e sociedade
Nós estamos aqui numa reunião de literatura, o Paiol Literário. A gente acha que isso aqui é um clube fechado que não tem relação nenhuma com a sociedade. Mas tem. Essa experiência histórica da literatura russa mostra que ela não pode ficar isolada — nem da sua população ou da história, nem das outras atividades intelectuais em conjunto. Os nossos escritores, aqui no Brasil, são muito carentes de entender as coisas que acontecem. Muito carentes. Vou fazer um depoimento: eu estava num bate-papo como este em outra cidade, havia uns quatro escritores. Falei: “Nós, escritores, precisamos conhecer melhor a história, a sociologia, antropologia, economia. A gente não entende isso”. Um deles respondeu: “Discordo completamente. Acho que nós tínhamos que entender mais a matemática”. Rapaz, fiquei tão impressionado. Ele foi procurar, talvez, a única área do conhecimento que é completamente alheia à história. Não existe outra. Se você pegar outra ciência — a biologia, a medicina, a química — nada passa em branco em relação à história. A matemática passa. É a única. Porque é uma coisa completamente abstrata, está lá no nada. É o caso do recalque. Ele está recalcando, fugindo, achando que está encontrando uma trincheira que o fortifica. Mas é o contrário. Ele vai se definhar, ali. Se ele fosse matemático mesmo, era melhor. Faça matemática. Ele está usando uma ciência legítima para uma fuga. Não há nisso nenhuma crítica moral, não acredito nessa história de moral, mas é uma opção que traz resultado. O resultado logicamente ruim, improdutivo, para ele e para todos. Tudo pega fogo. O fogo queima tudo. Não vai sobrar a literatura nem nada. Tudo. Nossos escritores tinham que conhecer mais isso. Ter mais interesse por essas coisas. Um interesse questionador, e não para se acomodar, conseguir uma coluna no jornal, bajular um cara rico que vai lhe dar patrocínio. Não é isso. É questionar.

Tolstói e Dostoiévski
É muita diferença [entre os dois autores]. Vou chamar atenção a alguma coisa só para iniciar. Primeiro, o Dostoiévski escreve sobre a cidade — em geral a cidade grande, às vezes a província. Mas é cidade. O Tolstói detesta a cidade, escreve sobre o campo. Ele detesta a cidade porque a cidade é, historicamente, a porta de entrada das relações capitalistas. Da ordem burguesa. E a urbanização da Rússia, no século 19, foi um trauma. Um trauma que os dois viveram de formas diferentes. Para o Dostoiévski, a cidade era um pesadelo, mas ele não sai dali. Um pesadelo em que está preso. O Tolstói, não. Ele recusa e vai pro campo. Ele trata da sociedade inteira, de todo o processo histórico, a partir do campo. É como se fosse a morte. Ele procura uma perspectiva de onde a crítica tenha mais alcance. É assim: vamos criticar a cidade, a ordem burguesa, a partir do campo. A partir daquele lugar que é chamado de atrasado. E Dostoiévski, a meu ver, não procura um questionamento. Ele vivencia uma espécie de trauma. De choque.

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