Foi seguindo um conselho da americana Toni Morrison que a cearense Jarid Arraes chamou a atenção de leitores e editores. Em um discurso nos anos 1980, a ganhadora do Nobel de Literatura disse que “se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo”. “Eu levo isso para minha vida”, diz Jarid, convidada do quinto encontro da 11ª temporada do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho com o patrocínio do Itaú por meio da Lei Rouanet.
Nascida em Juazeiro do Norte (CE), na região do Cariri, Jarid foi influenciada pela literatura de cordel que o pai e o avô escreviam. E foi com o cordel que começou a ficar conhecida dos leitores. Ao escrever sobre a trajetória de mulheres negras, colocou em prática o conselho de Toni Morrison, criando ela mesma as histórias que gostaria de ter lido em seus anos de formação.
“Queria colocar mulheres protagonistas nas histórias, escrever biografias de mulheres negras, que eu só conheci adulta, e também queria muito que meus cordéis chegassem às pessoas e que elas tivessem esse momento do primeiro contato com temas que ainda não conheciam”, relembra.
“E desde o começo deu muito certo. Eu mesmo montava e vendia pelas redes sociais os cordéis. Cheguei a vender 20 mil cordéis em um ano. Montando à mão.” Ao migrar para o formato tradicional do livro, Jarid continuou fazendo sucesso. Seus dois primeiros livros, As lendas de Dandara (prosa) e Um buraco com meu nome (poesia), publicados de forma independente, chamaram a atenção da Companhia das Letras, que em 2019, pelo selo Alfaguara, publicou a primeira compilação de contos da autora, Redemoinho em dia quente.
Com histórias com o “sotaque” cearense, o livro recebeu prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e da Biblioteca Nacional, além de ter figurado entre os finalistas do Prêmio Jabuti. Para além do sucesso individual, Jarid faz questão de enfatizar o aspecto político e coletivo da sua literatura. Para ela, “uma sociedade que se relaciona com a ficção, tem um gás muito forte para avançar em discussões, em muitas coisas que, de outra forma, demorariam mais tempo para acontecer.”
• Literatura que une
A importância da literatura na vida das pessoas, da ficção especialmente, está em como conseguimos nos aproximar do outro. Aproximar-se humanamente de quem, geralmente, não estaria tão próximo porque não temos tanta coisa em comum. E encontrar em pessoas diferentes, o campo comum que é a humanidade. As questões e sentimentos humanos, crises, questionamentos, sofrimentos, principalmente, que é a coisa que mais une as pessoas na literatura.
• Lendo homens
Penso muito na minha experiência quando criança e adolescente. Só tive acesso a livros escritos por homens, só fui começar a ler mulheres, especialmente negras, já adulta. Então, fiz o movimento de me identificar com personagens e escritores que não tinham nada em comum comigo. Nem nas regiões onde as histórias se passavam, nem nos personagens, porque a maioria era homem. E as personagens femininas eram sempre muito secundárias, às vezes muito superficiais. Tive que encontrar em personagens diferentes de mim aquilo que nos unia.
• Diferentes contextos
E vai desde a poesia de Drummond — que até hoje é um dos meus poetas favoritos, sendo que meu livro da vida é A rosa do povo — até O senhor dos anéis, na ficção, que também é um dos meus livros favoritos. Eu até costumava falar que me identificava muito com o elfo — e não tenho nada a ver com elfo. Então isso é um exemplo de como a gente consegue se aproximar. E isso também vale para um outro lado, do leitor homem, que tem a oportunidade de se aproximar de uma literatura feita por uma mulher negra e por pessoas diferentes dele e do contexto em que vive. Da sua realidade familiar. É uma oportunidade de pisar um pouquinho fora do que é familiar e do repertório que lhe é cômodo, e com isso conhecer o ser humano com mais profundidade. E se enxergar em outra pessoa, é algo poderoso e que transforma a nossa visão de mundo e subjetividade.
• Coletivo
Vejo a literatura como um campo coletivo. Não vejo a literatura como uma coisa solitária, nem o ato de escrever nem o ato de ler, nada na literatura é individual, mas sim coletivo. E isso implica em tudo que o coletivo quer dizer. Não só em realmente ter contato e se relacionar com outras pessoas, mas com outras realidades, valores, opiniões, visões de mundo, com coisas divergentes também. Isso faz com que as coisas sejam mais ricas e diversas. E isso tem um potencial político muito forte, de transformar a sociedade.
• Literatura é sempre política
Uma sociedade que se relaciona com a ficção, com a literatura, tem um gás muito forte para avançar em discussões, para avançar em direitos humanos, em muitas coisas que, de outra forma, demorariam mais tempo para acontecer. Acredito muito no papel político da literatura. Às vezes o autor nem escreve algo político intencionalmente. Mas costumo dizer que a literatura sempre é política, quer o autor saiba disso ou não. Sempre é político, não apenas quando é “intencional”. Não estou falando de uma maneira panfletária, mas no sentido antropológico e social. Algo que vai muito além da nossa própria visão limitadora do que é política. E esse valor coletivo da literatura é o que me move a continuar a escrever.
• Relação com as escolas
Sempre me relacionei muito com as escolas. Porque quando comecei a escrever e publicar, o meu maior sonho era chegar às escolas através das minhas obras. E felizmente esse sonho se realizou bem rápido e hoje meus livros estão nas escolas e universidades. E essa minha relação com as escolas e com políticas públicas é um pouco mais antiga, desde quando comecei a fazer parte de coletivos de direitos das mulheres, especialmente de mulheres negras. A gente sempre fazia ações em escolas, investindo em formação de professores, para falar sobre a lei de ensino de história e cultura afro-brasileira. Desde muito cedo na minha trajetória, eu estava em contato com isso, e muito consciente que existia um problema grande aí, de falta de formação dos professores, de conteúdo, de material.
• Professores
Sou muito lida por crianças, adolescente e adultos, mas isso parte muito dos professores. Pois são eles que vão e compram o livro para utilizar na escola. É sempre mais difícil que a coordenação da escola faça o movimento de adquirir o livro, ou que seja adotado ao ponto de os pais terem que comprar os exemplares. Já aconteceu, mas sempre é muito mais uma atitude do professor.
• Pequenas transformações
Agora no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), tive o Redemoinho em dia quente adotado em várias escolas. Foi escolhido por várias escolas e foi muito legal saber disso. Acho que essas pequenas coisas fazem a diferença porque, para falarmos em transformação coletiva, não necessariamente precisa ser uma grande massa, que vai mudar a visão do mundo de uma hora para a outra. Acredito na transformação dos nossos núcleos, do nosso entorno. E a partir daí a gente vai ampliando isso. Então, se meu livro é lido em uma escola por dez turmas diferentes, para mim isso é uma coisa gigantesca, porque lembro de nunca ter tido acesso, quando criança e adolescente, a conteúdo afro-brasileiro. Então, acho que hoje conseguimos avançar nessa questão, ainda que esteja longe do que considero ideal.
• Ações e políticas públicas
Acredito que precisamos cobrar por políticas públicas, mas também agir individualmente, para balancear as coisas e fazer o que é possível. Vejo os professores fazendo isso o tempo todo, tirando do próprio bolso para fazer a diferença em seus núcleos. Sempre penso que tenho uma plataforma e as pessoas me ouvem por conta dessa plataforma. Como posso usar isso para o coletivo e não só para promover minha carreira de escritora?
• Cordel
Sempre tive contato com a leitura porque meu pai e meu avô são cordelistas. Cresci ouvindo e lendo cordel. Eu era sempre uma das primeiras pessoas a ler os cordéis de meu pai e de meu avô. E meu avô também fundou um centro de cultura no Cariri, chamado Mestre Noza, que tinha cordel, além de artesãos. Tive muito contato com a arte popular, maracatu, etc. O cordel se tornou algo muito familiar para mim, muito íntimo. Considero cordel poesia tanto quanto qualquer outro formato de poesia.
• Impacto da poesia
Eu tinha mais ou menos nove anos quando comecei a pensar em ser leitora. Na escola tivemos que ler o poema Porquinho-da-índia, do Manuel Bandeira. Voltei para casa alucinada porque amei o poema. Eu estava na garupa da moto do meu pai, no trânsito do Cariri, com jumento, carro, carroça, tudo ao mesmo tempo, e a gente conversando, aí falei para meu pai que tinha lido o poema do Bandeira. Falei para ele que tinha adorado poesia. Aí ele falou assim, já que gostou, vou declamar dois trechos de dois poemas. E ele começou: “Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra”. Fiquei me perguntando se aquilo era poesia, porque estava com o Porquinho-da-índia na cabeça. E aí ele emendou esse: “Apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que de beija!”. Fiquei ao mesmo tempo muito incomodada e instigada por conta da quantidade de coisas que poderiam ser poesia. Minha cabeça ficou em polvorosa.
• Primeiros poetas
Pedi ao meu pai para me emprestar um livro de poesia do Carlos Drummond de Andrade, porque fiquei com “a pedra no meio do caminho” encasquetada na cabeça. E ele me emprestou vários livros, não só do Drummond, mas do Augusto dos Anjos, que foi uma grande presença na minha vida, Álvares de Azevedo, Paulo Leminski, Ferreira Gullar, todos foram muito presentes na minha formação inicial.
“Uma sociedade que se relaciona com a ficção, tem um gás muito forte para avançar em discussões, em muitas coisas que, de outra forma, demorariam mais tempo para acontecer.”
• A menina que roubava livros
Depois vieram autores como Camilo Castelo Branco. Eu pegava todos os livros a que tinha acesso. Chegava a roubar livros da biblioteca porque não conseguia emprestar mais de um título por mês. E eu lia muito rápido. Uns três livros por fim de semana, às vezes mais se fosse de poesia. Depois devolvia, mas eu era a menina que roubava livros. Era muito ávida com a literatura, especialmente com a poesia, que foi a minha base maior, tanto no cordel quanto nos outros formatos.
• Fascínio com as palavras
E foi isso que me fez começar a escrever também. Porque lia os poemas e queria meio que espelhar o estilo do autor que estava lendo. Principalmente com o Augusto dos Anjos. Lia e ficava no dicionário procurando palavras parecidas com as quais ele usava. E nessa época eu perguntava muito o significado das palavras para a minha avó paterna. Ela sempre me dizia, exceto quando não sabia. Aí ela fingia que não tinha me ouvido. Chegou um dia em que ela se cansou e me deu um dicionário, que tenho até hoje, com dedicatória dela. Eu era muito curiosa com as palavras. E atribuo isso à influência do meu pai e do meu avô, com certeza. Porque pra você continuar seu caminho na arte, seja qual for, precisa de estímulo.
• Poucas opções
Quando era adolescente e tive acesso à internet, comecei a ter mais contato com outros livros — e aí não eram só os livros do meu pai. Porque nesse período, não havia livraria lá no Cariri. Havia a biblioteca municipal e a biblioteca da escola. E os acervos eram muito limitados aos livros didáticos e aos clássicos. Portanto, durante muito tempo, meu repertório foi curto em relação a autores e estilos.
• Descoberta das mulheres
Só fui me questionar do porquê de eu não ler mulheres, quando já estava bem crescida e em contato com o feminismo. E aí comecei a procurar. Depois disso, levou um tempo ainda para eu subir um degrau e começar a ler mulheres negras. E lembro que quando me fiz esse questionamento, fiquei até decepcionada comigo mesma, porque isso nunca tinha me incomodado. E nunca tinha lido mulheres parecidas comigo. Foi uma coisa muito impactante conhecer autoras negras.
• Primeiras autoras
A primeira que li foi a Conceição Evaristo e, depois dela, vieram muitas, como a Esmeralda Ribeiro, a Miriam Alves, aqui no Brasil. De fora, Alice Walker, Toni Morrison, etc. Então fui adquirindo mais referências, que fizeram muita diferença na minha vida. Se eu tivesse conhecido essas autoras antes, quando estava crescendo, muitas coisas sobre mim teriam sido diferentes. Até mesmo na forma como eu me enxergava, como via meu lugar no mundo e a possibilidade de ser escritora. Eu tinha cadernos e mais cadernos com textos, mas não mostrava nem para meu pai porque tinha vergonha, não achava que tinha valor. Nem sequer pensava na possibilidade de ser escritora. Mas no fundo, eu queria ser escritora.
• Conceição Evaristo
A vontade de escrever surge muito a partir do momento que conheço a obra da Conceição Evaristo. Os primeiros textos que comecei a compartilhar para outros leitores foram de opinião. Escrevia em blogs de direitos humanos, falando sobre questões de gênero e raça, especificamente. Enquanto estava escrevendo meus textos de opinião, pensei em publicar cordel. Mas nunca tinha escrito cordel. Os poemas que havia escrito eram em outros formatos. Escrevia até soneto, mas não escrevia cordel.
• Mulheres no cordel
Então falei com meu pai que queria manter viva a tradição da família. Mas queria colocar mulheres protagonistas nas histórias, escrever biografias de mulheres negras, que eu só conheci adulta, e também queria muito que meus cordéis chegassem às pessoas e que elas tivessem esse momento do primeiro contato com temas que ainda não conheciam.
• Vendendo cordéis
E desde o começo deu muito certo. Eu montava e vendia pelas redes sociais os cordéis. Cheguei a vender 20 mil cordéis em um ano. Montando à mão. Tive até problema no pulso de ficar baixando a guilhotina no papel. Comecei também a chegar às escolas, havia gente fazendo contação das minhas histórias.
• Lendas de Dandara
Isso me acordou. O que mais quero fazer, além do cordel? Sempre tive na minha cabeça a mentalidade de que posso fazer qualquer coisa que quiser: se eu quiser escrever soneto, escrevo, se quiser escrever ficção científica, escrevo. Basta eu ter vontade, porque a literatura está acessível para mim e para todo mundo. Então pensei, vou publicar um livro de prosa. E não tinha a menor ideia do que era o gênero. Escrevi As lendas de Dandara e publiquei de forma independente, porque levei muitos nãos das editoras. A justificativa era de que não existia mercado para meu livro, e eu discordava muito porque via o tanto que meus cordéis vendiam quando o tema era biografia de mulheres negras. Então apostei no livro. Peguei um empréstimo, paguei a impressão e vendi pelas redes sociais. Em menos de um ano esgotou a tiragem de 1.500 exemplares. E só vendia pelo Facebook. Não tinha em nenhuma livraria, ninguém divulgando. Aí algumas editoras que me disseram não, depois que o livro esgotou, vieram me procurar. Daí neguei pra todo mundo que havia rejeitado. E aceitei o convite da Editora de Cultura, que até então eu não conhecia. Depois disso, vieram os outros livros.
• Rejeições
Mesmo com o livro de cordel Heroínas negras brasileiras, também fui rejeitada por muitas editoras. Até chegar à primeira editora que publicou a obra. E a gente vendeu muito esse livro. Não sei nem quantas reimpressões foram feitas. O livro rodou muito em escolas, vendeu muito na Flip. E depois ele foi para a Seguinte [selo da Companhia das Letras] e continua sempre sendo impresso e indo para as escolas.
• Grande editora
Em 2018, lancei Um buraco com meu nome pelo selo Ferina, que criei para publicar só mulheres. Estava andando na rua em Paraty para participar de uma programação da Off Flip, quando a Luara França, que foi minha editora na Companhia das Letras, me parou no meio da rua e falou que gostava do que eu escrevia e, caso eu tivesse algo, ela queria publicar. Fiquei em choque, porque levei não pra caramba e de repente estavam me convidando para publicar.
“Vejo a literatura como um campo coletivo. Não vejo a literatura como uma coisa solitária, nem o ato de escrever nem o ato de ler, nada na literatura é individual, mas sim coletivo.”
• Redemoinho
Eu tinha alguns contos, que escrevi em 2015. E fui reescrevendo as histórias ao longo dos anos. Isso até 2018, quando desisti de reescrevê-las e mostrei pra Luara. Então chegamos à conclusão de que dava para fazer um livro de contos com eles. Foi aí que surgiu o Redemoinho em dia quente.
• Prêmios
Não esperava ganhar prêmios, porque sou muito jovem na literatura. Eu estava muito contente só por ele estar indo bem, pois ficou entre os mais vendidos na Flip no ano do lançamento. O que eu mais queria era escrever com sotaque do Ceará. E as pessoas estavam gostando disso no livro. E aí veio o APCA, que foi o primeiro prêmio que ganhei. E foi incrível. Depois veio o prêmio da Biblioteca Nacional e ainda fui finalista do Jabuti. Para mim, foi uma coisa imensa.
• Persistência
Mas tudo isso, estar na Companhia, os prêmios, etc., eu vejo da forma como falei no início, através de uma lente política. Porque se eu não tivesse apostado e acreditado na minha literatura e na importância daquele tema socialmente falando, eu não teria feito nada. Teria aceitado o não. Mas sabia que ia dar certo porque via o interesse das pessoas em ler cordel e sobre personagens negras. Por isso reafirmo sempre, minha trajetória na literatura é uma trajetória coletiva e política. Porque foi com o apoio dos leitores que eu cheguei aqui. Foi um esforço de boca a boca pelas redes sociais que me trouxe até aqui.
• Incômodo
Escrevo muito a partir do incômodo. Não é só no sentido de algo que me faça mal. Me incomoda não encontrar essas personagens, esses cenários e ambientações em livros, em grandes editoras, em eventos. Me incomoda ver o que eu faço sendo colocado em uma caixinha de regionalismo. Então minha literatura é planejada, de propósito, para que tenha protagonista mulher, para que tenha sotaque no que eu escrevo, para que a ambientação no sertão do Ceará seja muito evidente.
• Conselho de Toni Morrison
Trato desses temas, que eu queria ter lido na minha formação e não li, porque escutei o conselho da Toni Morrison, quando ela disse que se tem um livro que você gostaria de ler, mas ele ainda não existe, então deve escrevê-lo. Eu levo isso para minha vida. Queria muito ler um livro sobre abuso infantil, que isso fosse discutido, para podermos falar sobre a nossa sociedade adultocentrada. E queria que passasse no sertão do Ceará porque gostaria de falar sobre esse ambiente, essa cultura, e usar o meu vocabulário. Cansei de reprimir meu vocabulário aqui em São Paulo, para não sofrer discriminação, deboche. É tudo proposital na minha literatura e imagino que isso vai durar por muito tempo. Por isso, escrevi Corpo desfeito, que trata justamente do abuso infantil.
• Cultura popular
Se você ouvir as pessoas falando sobre cordel, elas dizem que é uma “literatura popular”, “poesia popular”. E com esse popular, elas querem dizer que não é poesia como outros tipos de poesia, é uma poesia menor. É algo diferente do que faz Carlos Drummond de Andrade, Waly Salomão, é outra coisa. É folclórico. E por ser assim, não cabe em evento literário, não cabe convidar cordelista para falar sobre poesia em uma mesa sobre poesia, em um grande evento literário.
• Preconceito
Eu e o Bráulio Tavares fomos os primeiros cordelistas a participar da programação oficial da Flip. E fiz questão de falar que era a primeira mulher cordelista no evento. Mas se pensarmos, há quanto tempo a literatura de cordel tem formado leitores, entrado em camadas da sociedade que a chamada “alta” literatura não penetra? E essa desvalorização permanece. Noto isso até em bienais e outros grandes eventos. O espaço do cordel nos estandes de editoras é todo folclorizado, toda estética é feita para parecer uma coisa fechada, regional, quase caricata. Tem alguns cordelistas que realmente vestem esse personagem da caricatura. Que bota chapéu de vaqueiro, chapéu de Lampião. Mas fazem esse personagem porque é só assim que as pessoas acessam e entendem o cordel.
• Novos temas
Escrevi um cordel em que fiz um diálogo breve com o pensamento de Sartre, autor de que gosto muito. E recebi muitas mensagens de pessoas achando a história muito diferente. Gente perguntando se eu havia desistido de escrever sobre mulheres negras. Então faz parte da visão das pessoas, elas não imaginam outra coisa que não seja essa visão folclórica, que diminui e reduz.
• Regionalismo
Isso está diretamente ligado ao fato de que faço literatura regional para o Sudeste. E não enxergo desse jeito porque, para mim, regional é uma coisa marcada no tempo histórico. E isso não cabe para autores como eu, Cristhiano Aguiar, autor do Gótico nordestino, para a Socorro Acioli. Nós somos muito diferentes uns dos outros. Há coisas muito diferentes sendo publicadas por pessoas de vários lugares do Nordeste, e não dá para falar que isso é regional. Ou então tudo é regional. Posso falar a partir de agora que sudestino publicando está fazendo literatura regional do Sudeste. E não cabe.
• Mulheres e negros
Em 2015, quando comecei a publicar livro, tinha o hábito de receber por e-mail a lista dos lançamentos das grandes editoras. Então eu contava quantos livros publicados eram de mulheres e quantos eram de pessoas negras ou indígenas. Os indígenas, não preciso nem dizer, nunca estavam nessas listas, os negros eram poucos e as mulheres em um número ínfimo. Isso era uma coisa que me revoltava muito. Foi por isso que comecei a me mover com coletivos de escritoras, de leitores que estavam focados em ler livros escritos por mulheres, como Leia Mulheres, Mulheres que Escrevem, Lendo Mulheres.
• Clube
Aí criei o Clube de Escrita para Mulheres, também pensando nisso, que precisávamos ter um grupo de mulheres que escrevessem para que esse quadro mudasse. De 2015, naquele lugar em que estava, me sentindo solitária, com o mercado absolutamente branco, num nível de supremacia gritante, até hoje, quando a gente vê a Eliana Alves Cruz, o Jeferson Tenório e o Itamar Vieira Junior sendo premiados, a Conceição Evaristo sendo muito reconhecida, parece que as coisas mudaram um pouco.
• Melhorou, mas não muito
Acho que muita coisa melhorou, mas ainda há muito para melhorar. Às vezes, penso se isso não é uma onda passageira, porque tem esses grandes fenômenos, como o Geovani Martins, essas pessoas que aparecem e explodem, e só de sabermos assim de cara citá-los, já é um indício de que são exceções. Pode ser um fenômeno pontual. Então fico observando e tentando entender. Leio muitos contemporâneos, priorizo essa leitura, não só de grandes editoras, mas dos independentes também. Porque quero entender o que está acontecendo na literatura brasileira e ver quem está tendo reconhecimento, quem vai para listas, recebe prêmios. Porque é a partir daí que vemos o quadro social e político da literatura no Brasil.
“Até quando é fácil, é difícil ser mulher no Brasil. Mesmo quando se está em um lugar confortável socialmente falando, há preocupações que não desaparecem.”
• Repertório dos curadores
Problema de repertório de curadores é uma coisa que me chama muito atenção. Quando são os mesmos nomes convidados para falar sobre as mesmas coisas… E aí eu me coloco. Se sou eu sempre a pessoa convidada para falar sobre literatura feita por pessoas do Nordeste, de mulheres nordestinas, então há um problema de repertório da curadoria. E isso é cansativo. É uma marca que me colocaram. Se eu não escrevesse nada sobre o Nordeste, a caixinha onde iriam me colocar era na de escritores negros. É onde às vezes me colocam. Porém, depois de Redemoinho em dia quente, virou mais Nordeste. E sempre o tema mulheres também. É algo que incomoda, porque não sou convidada para falar sobre outros temas da literatura, porque sempre partem desse enquadramento.
• Ser mulher no Brasil
Até quando é fácil, é difícil ser mulher no Brasil. Mesmo quando se está em um lugar confortável socialmente falando, há preocupações que não desaparecem. E é muito difícil ser mulher e escritora no Brasil. É um constante cansaço, completamente enfadonho falar sobre as mesmas coisas, ficar observando como as mulheres estão sendo tratadas e lidas. Como a crítica está reagindo às mulheres. Tem tantas nuances e detalhes. E ficamos nesse papel ingrato de colocar luz em cima do problema e ouvir que é exagero, que melhorou muito e tantas coisas…
• Desconforto necessário
E o desconforto é sempre necessário, preciso. Se estou desconfortável, também quero que outras pessoas fiquem desconfortáveis com meu desconforto. E que a gente fique em um grande desconforto, ache tudo ruim, para que aí melhore. Tenho como missão de vida trazer o que é incômodo para as minhas criações literárias. Porque eu estou em uma posição muito complicada, não tenho como escrever sobre besteira e colocar crises idiotas nas minhas coisas, se estou lidando com a realidade tão profunda e tão complexa de misoginia, de homofobia.
• Pautas importantes
Eu sou bissexual, então estou nesse lugar com muitas questões envolvidas, de alguém que tem o pé no sertão. Mas não sou do sertão que as pessoas imaginam que é o sertão, um lugar seco, da vaca morta, da casa de taipa, então preciso explicar isso também. Como não vou incomodar e ser incomodada com tudo isso girando em torno de mim? E ainda tem o lugar racial, que também é uma questão grande para mim e pessoas parecidas comigo, que é essa coisa da miscigenação.
• Dinâmica de trabalho
Não me sinto solitária quando escrevo. A parte do ofício, que é sentar e escrever, realmente faço só, mas tem muitas etapas que compartilho com outras pessoas: a edição, a revisão, a leitura crítica, o leitor beta, que geralmente é um amigo. Muitas etapas são bem compartilhadas na minha experiência. Não me sinto isolada fazendo isso. O trabalho e a visão das outras pessoas acrescentam e melhoram muito o que eu faço. E me sinto muito acompanhada pelas personagens que crio.
• Corpo desfeito
No caso de Corpo desfeito, isso foi tão intenso para mim, que sentia que a Amanda, protagonista da obra, era uma criança de verdade que estava me pedindo para contar a história dela. Porque tive que mergulhar tanto no tema do abuso infantil, resgatar muito as coisas que já conhecia, ler muitas biografias, ver muitos filmes, só pensava nisso 24 horas por dia. Escrevi esse livro durante dois anos, ao longo da pandemia, sendo que estava tratando um câncer. Então eu não saía de casa pra nada, porque não poderia me expor de maneira nenhuma. E mesmo assim, na minha terapia, passei dois anos falando desse livro. Porque me sentia me afogando na coisa, e em constante conflito com a minha criatividade para retratar esse tema, que é pesado.
• Sofrimento
Gosto muito de livros com temas difíceis, com sofrimento. Porque a vida do ser humano é repleta de sofrimento. E lendo ficção a gente pode até mesmo elaborar esse sofrimento de uma forma que traga autorreflexão e autoconhecimento. Muitas vezes um processo inicial de cura. Acho que a literatura tem essa possibilidade também. Gosto muito de histórias tristes, é uma preferência de leitora. Só não gosto do sofrimento de escrever, porque sou muito perfeccionista e nunca nada está bom. E sempre é um processo muito tenso. Eu me irrito e me frustro muito. Costumo dizer que não gosto de escrever, gosto de quando já está feito e as pessoas estão lendo. O processo criativo para mim é muito conturbado.
“Minha trajetória na literatura é uma trajetória coletiva e política. Porque foi com o apoio dos leitores que eu cheguei aqui.”
• Caminhos da escrita
A pessoa que começa a escrever, precisa entender que essa angústia com o que escreve não é exclusividade dela. No Clube de Escrita Para Mulheres, escuto esse tipo de coisa o tempo todo: de que a pessoa tem vergonha do que escreve, de que não se acha escritora, etc. E quando encontramos outras mulheres que também falam essas coisas, mas que superaram essa fase, isso faz com que esse medo vá embora. Então é preciso saber que isso é um processo social das mulheres. Tem que enxergar o quanto isso é social, coletivo e político.
• Vida
Parece que sempre estamos em guerra. Nosso Estado, o Brasil, está em frangalhos, está todo mundo muito cansado e destemperado. Uma polarização absurda. Ao mesmo tempo em que vejo tantas coisas positivas acontecendo, tanta coisa que me dá esperança, sinto medo do nosso contexto. Há muito ímpeto de violência e pouca disposição para o diálogo nas pessoas. Isso no geral, não só em um lado específico, mas entre nós mesmos, que estamos no mesmo lado. Tem muito cansaço envolvido. Eu mesma me cansei muito. Foram dois anos em que estive exausta. Mas ainda assim, acho que passei bem durante a pandemia, mesmo com câncer e tudo.