No segundo encontro da 11ª edição do Paiol Literário, a gaúcha Natalia Borges Polesso conversou sobre sua carreira com o escritor e editor do Rascunho, Rogério Pereira, em um bate-papo transmitido ao vivo pelo canal do projeto no YouTube.
Nascida em Bento Gonçalves, no interior do Rio Grande do Sul, Natalia ficou conhecida nacionalmente após a publicação de seu terceiro livro, a coletânea de contos Amora, em que personagens gays são perpassadas pelas mais diferentes questões existenciais. O livro venceu o prêmio Jabuti em 2016 e deu maior visibilidade à autora, que viajou pelo Brasil e por diversos países para divulgar a obra.
No entanto, a perspectiva gay de seus livros, explica a autora, não serve como um elemento limitador de suas histórias. “Não escrevi especificamente a respeito de lésbicas, escrevi várias coisas atravessadas por essa questão”, diz. “Tomo uma decisão consciente, que é sempre levar pessoas não binárias, mulheres lésbicas, transexuais, bissexuais para a literatura para que elas falem sobre o que quiserem e não só sobre sexualidade.”
Natalia escreveu ainda outros dois livros bastante elogiados pela crítica e que angariaram muitos leitores: os romances Controle (inspirado em letras da banda inglesa New Order) e A extinção das abelhas, que figurou entre os cinco finalistas da mais recente edição do prêmio Jabuti.
A autora, que desde 2007 lançou sete livros, atualmente prepara uma nova coletânea de contos. Durante o Paiol, ela falou mais sobre seu processo criativo e comentou questões da realidade brasileira, como os anos difíceis passados recentemente por conta da pandemia de covid-19, o governo Bolsonaro e as expectativas para o futuro com uma nova gestão no país.
• Por que ler
Para mim a literatura sempre foi uma coisa tão corriqueira, que nunca parei para pensar na importância dela. Não consigo imaginar minha vida apartada das letras, sem produzir e consumir literatura. Porque isso me ajuda, de algum modo, a formar minha visão de mundo, o que penso sobre as coisas, sobre as pessoas. A literatura serve para isso. Mas claro que serve para fruir também, se divertir e tal. Tem esse exercício de olhar para o mundo por meio de outros olhos. Para mim isso é o mais importante.
• Formação
Não fui uma criança e uma adolescente que lia tanto. Mas não era por não gostar de literatura, e sim por conta do acesso aos livros. Minha casa não era uma casa com livros circulando. Minha família é de não leitores. Eu tinha — bizarramente — uma enciclopédia médica em casa, mas ninguém da família era da área da saúde. Lembro de três coisas muito marcantes em minha vida relacionadas à literatura. Uma delas é que morei um pedaço da minha infância com minha avó e com meu avô, enquanto meus pais se mudaram para outra cidade. Nesse período, minha avó toda noite me contava uns causos, porque ela é do interior de Vacaria, no Rio Grande do Sul. Coisas sobre a vida no campo, correr das vacas, etc. E eu achava aquilo fascinante. Esse foi o meu primeiro contado com uma história, aí me dei conta do que era contar uma história.
• Mudança
Depois me mudei para Campo Bom, cidade na qual meus pais foram morar. E a biblioteca da escola era fechada aos alunos, você tinha que dizer o título que queria na porta e a bibliotecária te passava o livro. Então eu não sabia que livros existiam lá. Por algum tempo, a biblioteca foi assim e líamos obras indicadas pela professora ou por colegas… E eu não me interessava muito por aquela literatura da biblioteca.
• Drummond
Até que um dia foi parar lá em casa um livro com uma capa azul, que não tinha título, porque o livro se despedaçou e alguém fez uma capa nova para ele. E era uma coletânea de poemas, que trazia um poema do Carlos Drummond de Andrade, Lira do amor romântico ou a eterna repetição. Quando li esse texto, acho que foi a primeira vez que tive vontade de escrever. Eu estava na quinta série e pensei que talvez pudesse escrever algo parecido.
• Verissimo
Depois, quando abriram a biblioteca para os alunos, o primeiro livro adulto que li foi Incidente em Antares, do Erico Verissimo. E para mim foi uma mudança de paradigma ter encontrado esse livro. Aquela primeira parte superviolenta, com brigas familiares, vinganças. Fiquei meio assustada. Já a segunda parte, com os mortos no coreto, achei mais legal. Todos esses primeiros eventos me marcaram bastante. Fui começar a ler mais quando frequentava a biblioteca pública e, principalmente, quando entrei na faculdade, porque tinha acesso mais direto aos livros, com professores fazendo indicações.
• Letras
Entrei com 17 anos na faculdade de Letras. Mas antes queria muito ser médica ou fazer educação física. Só que duas coisas me impediram: medicina, eu sabia que era um curso muito caro e não teria como ir para uma capital para fazer o curso em uma federal. E também não posso ver sangue porque desmaio. E a educação física, queria fazer porque gostava muito de esporte. Só que nasci com um problema cardíaco — e acabei fazendo cirurgia só depois de adulta. Minha terceira opção era o curso de letras, mas não por conta da literatura, mas porque eu gostava muito de inglês. E pensava que indo fazer o curso, poderia ser professora de inglês — o que fui por muitos anos e ainda hoje traduzo por conta da faculdade. E é engraçado, porque minhas melhores notas eram em literatura. Não eram em português.
“Tomo uma decisão consciente, que é sempre levar pessoas não binárias, mulheres lésbicas, transexuais, bissexuais para a literatura para que elas falem sobre o que quiserem e não só sobre sexualidade.”
• Na universidade
Sempre fui muito curiosa em relação aos livros. E também já gostava de escrever antes de entrar na faculdade. Ensaiava uns poeminhas em cadernos, algumas histórias. Mas nunca imaginei que isso pudesse virar uma profissão. Isso foi uma coisa mais recente até. Sempre imaginava que iria escrever algumas coisas que talvez seriam publicadas — ou não. A relação com a literatura mudou sim na faculdade, mesmo sendo uma formação bastante clássica, no sentido de ser eurocentrada, masculina e branca, acho que foi também um modo de aproximação e leitura de autores de quem tinha curiosidade de conhecer. Por exemplo: fiquei muito marcada por Orlando, da Virginia Woolf. Lembro até hoje eu indo para a faculdade, no frio em Caxias do Sul, e lendo no romance aquela cena da neve. Então, tinha uma curiosidade de leitora que foi nutrida pela universidade. Tanto é que trabalhei com linguística e fui para a teoria crítica feminista no mestrado.
• Profissão
Sempre fico na dúvida do que escrever quando pedem para eu identificar minha profissão: escritora, tradutora, pesquisadora, etc. Mas quando casei, no cartório coloquei escritora, na certidão de casamento. Sempre tive um pouco de dúvida quanto a isso… até porque escritor que vive da escrita é uma coisa um pouco recente. E digo até em relação à construção social dos escritores. Pegando como exemplo aquele trabalho da professora Regina Dalcastagnè, que faz um levantamento do perfil dos escritores e personagens da literatura brasileira: 72% são héteros, brancos, moram nas grandes cidades e têm profissões estáveis, como jornalista, médico, advogado, etc. Então, acho que tem uma abertura de campo mesmo, em que outras pessoas começaram a participar desse metiê. Começou a pluralizar, com mais editoras, mais editais e a profissão começa a ficar visível aos nossos olhos mais romantizados.
• Início da carreira
Terminei a graduação em 2007. Naquele ano estava escrevendo algumas coisas, estava instigada com as leituras da faculdade. Nos intervalos, escrevia contos, anotava ideias, ia criando algumas imagens que achava interessantes para depois usar em algumas histórias. Aí mandei esses contos para um concurso lá de Caxias do Sul, ganhei e foram parar em uma coletânea. Depois disso, em 2010, fiquei sabendo que existia um projeto chamado Financiarte. Era um edital em que as pessoas ganhavam dinheiro para publicar seus livros ou viabilizar projetos de música, dança, etc. Um amigo havia publicado um livro pelo edital e achei aquilo muito interessante. Em 2012, inscrevi o Recortes para álbum de fotografia sem gente, meu primeiro livro, publicado em 2013. Então, pensar nisso mais profissionalmente foi por causa de um ethos mesmo, de coisas que aconteciam ali na cidade, que eu podia ver. Eu também fazia algumas oficinas de escrita com o pessoal das Letras, e aquilo foi me interessando.
• Publicação
E vejo que hoje é muito mais fácil de publicar do que há dez anos, quando eu quis publicar o Recortes. E eu, na minha ingenuidade, mandei esse livro para a Companhia das Letras, pensando que eles pudessem querer publicar. Para minha surpresa, eles me responderam com uma cartinha bem querida, dizendo que não publicariam porque já estavam com a grade cheia…
• Movimento da literatura
Hoje em dia é desesperador para um leitor acompanhar o que está acontecendo. É muito livro sendo publicado. Fiz doutorado na PUC, e lá aumentou muito o número de alunos de graduação em escrita criativa. Isso é um sintoma dessa ideia de profissionalização.
• Não é só escrever
Sei que a literatura não se faz exatamente no pós, mas gosto muito disso [de divulgar os livros], porque vamos aprendendo a falar sobre o nosso trabalho. Não acho que seja em vão. Às vezes, confesso, é cansativo. Muitas vezes estou cansada, mas assumi um compromisso e preciso divulgar um evento. Acho antipático não divulgar. Preciso ir lá, fazer stories ou post no Instagram, falar com as pessoas. Porque, afinal, eu me comprometi a estar em um lugar pra conversar, então vou divulgar. Porque hoje a gente, além de escritora, passa a ser também administradora do tempo, divulgadora, pensando nas redes sociais. E claro que muda você estar em uma grande editora ou em uma editora não tão grande, como a Dublinense, mas que tem uma distribuição bastante boa. Mas, mesmo assim, independentemente de estar em uma grande ou pequena editora, hoje o autor tem esse trabalho de estar presente online para fazer a divulgação de seus trabalhos.
• Método de trabalho
Eu demoro para escrever. Acho que nenhum dos meus livros escrevi em menos de um ano, sempre levei uns dois anos para concluí-los. E os romances são mais demorados ainda. Trabalho em um horário em que as pessoas não estão nas redes sociais. Acordo muito cedo. Agora, estou escrevendo um novo livro de contos. São coisas que eu já havia escrito. Mas preciso dar a esse material uma unidade. Então estou acordando todos os dias às 5h, 5h30, faço meu cafezinho, arrumo as coisas prosaicas da casa, e sento para escrever até a metade da manhã. Mas preciso me organizar muito para que eu tenha esse espaço. Porque, em geral, escrevo quando dá. Porque sempre tenho muito trabalho.
• Dupla jornada
Publiquei todos os meus livros enquanto estava no mestrado, no doutorado e no pós-doutorado. Sempre trabalhei com a pesquisa junto. A extinção das abelhas, por exemplo, foi um livro que comecei em 2016. Quando fui contatada pela Companhia das Letras, mandei esse livro, mas foi negado porque ainda estava muito incipiente. Eles então perguntaram se eu não tinha outro material. Aí mandei o Controle. Minha vida gira em torno da escrita, porque ou estou traduzindo, pesquisando ou escrevendo artigo… Por exemplo, agora tenho esse livro de contos para entregar, mas também estou escrevendo outros dois. Mas tem um momento da escolha. Comecei A extinção das abelhas em 2016. Mas ele começou a tomar forma em 2019 e eu o terminei no início de 2020. E naquele ano, organizei minha vida para trabalhar todas as manhãs em A extinção das abelhas. Estava fazendo pós-doc. E acho que é isso que faz a diferença, quando você já tem um material para trabalhar. Que é o que está acontecendo agora com o meu livro de contos. Tenho um contrato, então estou com a cabeça nessas histórias.
“O processo literário é isso, essa busca por esse tesouro, as coisas que quero falar, mostrar, são esses os meus desejos estéticos, são esses os meus desejos políticos, porque também há esse atravessamento.”
• Outros livros
E agora, nos últimos meses, até troquei de projeto. Estou escrevendo Corpos secos 2, porque há prazo para entregar. Também estava escrevendo um livro chamado Penélope obscura, desde a pandemia, sobre sonhos, uma espécie de thriller psicológico, mas aí veio a sequência da campanha eleitoral e fiquei muito mal, não tive condições de escrever um livro que tinha assassinato, desaparecimento, etc. Então pensei, vou pegar meu projeto de contos, pois são histórias mais sobre sentimentos e utopias. E estou desde a metade de 2022 concentrada em terminar esse livro.
• Amora
A presença de personagens homossexuais no Amora foi um elemento fundamental para eu pensar para onde queria levar os contos. Porque há vários temas. A questão é que todos os temas do livro são apresentados por protagonistas lésbicas. Por exemplo, em um dos contos, a relação lésbica que se coloca é da avó e da neta se descobrindo. As tias também traz a questão da finitude, da morte. Porque esse corpo, esse indivíduo, essa lésbica, vai ser atravessada por outros tipos de problema.
• Protagonistas
Quando pensei em escrever o Amora, decidi colocar todas as protagonistas lésbicas para ver para onde as histórias me levavam. E olha como o pós é importante às vezes. Quando terminei de escrever o livro, uma professora me perguntou: agora você já escreveu sobre lésbicas, então não pode mais se repetir. Vai escrever sobre o quê? Aí eu pensei, cara, mas não escrevi especificamente a respeito de lésbicas, escrevi várias coisas atravessadas por essa questão. Aí tomo uma decisão consciente, que é sempre levar pessoas não binárias, mulheres lésbicas, transexuais, bissexuais para a literatura para que elas falem sobre o que quiserem e não só sobre sexualidade. Que as histórias não orbitem apenas na sexualidade dessas personagens, mas que isso seja um elemento que cria algum tipo de estabilidade nas narrativas. E para mim isso tem funcionado, assim como isso funciona para o Samir Machado de Machado, que tomou a mesma decisão. Com uma diferença, ele não mata suas personagens gays, que sempre vivem em suas histórias.
• Questões
Trabalho muito com questões. No Recortes, minha questão era estética. Queria criar imagens, explorar tensões imagéticas. Tanto é que o Recortes não tem muitas histórias marcantes. É quase poesia. O Amora e o Controle, que foram escritos na mesma época, têm a preocupação de desenvolver personagens lésbicas, bissexuais, LGBTQIA+ multifacetadas. Por exemplo, no Controle,tem a Nanda e ela é epilética também, mora em uma cidade do interior e cresceu nos anos 1990. Então queria trabalhar com isso, como fiz no Amora, só que com mais fôlego, em um romance. Já em A extinção das abelhas as questões são outras, que dizem respeito ao colapso do mundo, de como a gente está vivendo em sociedade, como estamos apartados da natureza. Então o processo literário é isso, essa busca por esse tesouro, as coisas que quero falar, mostrar, são esses os meus desejos estéticos, são esses os meus desejos políticos, porque também há esse atravessamento.
• LGBT
A representatividade LGBTna minha obra tem mais a ver com a decisão que tomei de trazer essas personagens para diversos tipos de situações. Jamais quero ser a pessoa que tenta dar cabo, fazer algo que seja completo em termos de representatividade, acho que isso é um projeto furado. Mas sempre vou tentar colocar essas personagens porque elas fazem parte do meu modo de ver o mundo. E também são uma aposta estética para os problemas que quero criar nas narrativas que estou propondo. A representatividade você tem que pensar mesmo de fora. Como os críticos e os leitores vão ver isso.
• Literatura é branca
Lembro até hoje da primeira Flip de que participei, quando encontrei a Conceição Evaristo. Ela havia sido jurada do Jabuti e elogiou muito o Amora. Mas ela me perguntou se eu tinha a intenção de ter colocado alguma personagem negra no livro. Falei que minhas personagens não tinham nenhuma descrição física muito detalhada porque eu queria que os leitores pudessem imaginar o que quisessem. Aí ela falou para mim, mas você sabe que a leitura é branca. Assim como você fez questão de colocar personagens lésbicas, porque a leitura é hétero, a leitura também é branca. Aí fiquei com isso na cabeça. Depois do Amora, sempre tento também contemplar outras questões.
• Criação de contos
Para mim, tudo começa nas personagens. É algo importantíssimo, quem está no centro da história? Não precisa nem pensar no narrador, mas acho que o narrador é um segundo ponto que precisa imaginar — e tentar se distanciar para compor esse narrador, quem está contanto a história, de qual ponto de vista. Calcular todas essas questões ajuda talvez em trabalhos um pouco mais complexos. E talvez isso não possa ser feito sozinho. Gosto muito das oficinas de escrita e acho que são lugares em que podemos experimentar, ouvir uma pessoa que está ali para te orientar e você pode compartilhar tudo com os outros alunos. As oficinas são interessantes nesse sentido, porque a gente consegue conversar um pouco sobre os nossos processos e às vezes soluciona dúvidas.
• Prêmios
Antes do Amora, eu tinha o Recortes para álbum de fotografia sem gente. Depois ele foi para a Dublinense, mas antes foi publicado por uma editora muito pequenininha que tinha distribuição só na minha cidade e em algumas livrarias de Porto Alegre. E ele ganhou o Açorianos, que é um prêmio do Rio Grande do Sul. E isso já mudou um pouco a dinâmica do interesse das pessoas pelo livro e também do interesse por mim enquanto escritora. Eu estava na PUC fazendo doutorado quando publiquei o Recortes. E circulava bastante com o pessoal de escrita criativa, apesar de ser de outra área. Mas quando publiquei e ganhei um prêmio, acabei ficando em uma vitrine. Quando você ganha um prêmio as coisas mudam, sim. Primeiro porque você tem o reconhecimento dos seus pares. O Jabuti, por exemplo, é o prêmio de mais prestígio no Brasil, as pessoas param para ver quem ganhou o Jabuti, vão buscar os livros finalistas.
• A extinção das abelhas
Agora, com A extinção das abelhas, que esteve entre os cinco finalistas do Jabuti, teve muita gente que veio me procurar e até mesmo postar nas redes sociais que estava lendo o romance. Um prêmio acaba mudando o caminho do livro.
• Viajando com Amora
O Amora já tinha uma vida mesmo antes de ganhar o Jabuti e o Açorianos. Mas depois que ganhou os prêmios, foi uma coisa muito doida, porque teve a tradução para o inglês, com publicação nos Estados Unidos e Inglaterra, rolaram vários convites também. Nunca fui uma pessoa que teve grana para viajar para um monte de lugares, e por conta do Amora eu viajei muito, fui para vários lugares do Brasil que não imaginei que iria. Ele também é um livro que circula muito na academia. Há vários trabalhos a respeito, TCC, trabalhos de mestrado e doutorado. Visitei muitas universidades no Brasil. Teve também o Bogotá 39, uma lista com os escritores mais destacados da América Latina com menos de 39 anos. Por conta disso, acabei viajando quase que pela América Latina inteira. A literatura me fez literalmente viajar. Fui para a China por causa do Amora. Ele mudou minha vida. Mas, claro, havia momentos em que eu estava pensando no aluguel do meu apartamento enquanto estava na China hospedada em um hotel de luxo. Não tinha cachê, mas tinha passagem, hospedagem e a experiência… Mas o dinheiro do aluguel eu não tinha.
• Recepção crítica
O Amora não teve muita recepção crítica nos grandes veículos do Brasil. Mas teve críticas muito boas nos veículos dos Estados Unidos e da Inglaterra. E uma coisa muito legal é que fui convidada para participar de um clube de leitura que se chama “One book one Bronx”. Um clube de leitura do Bronx, quase 50 pessoas participando, a maioria negras e mais velhas. Então fiquei imaginando como isso ia bater: um livro que é a cara dos anos 2000, escrito por uma guria do interior do Rio Grande do Sul, lido por habitantes de uma grande metrópole em que os movimentos sociais e o movimento LGBT aconteceram muito antes de chegar lá em Campo Bom, onde me constituí como ser humano. Mas sabe que as pessoas se sentiram profundamente identificadas. Elas se sentiram compartilhando daqueles problemas narrados no livro.
“Jamais quero ser a pessoa que tenta dar cabo, fazer algo que seja completo em termos de representatividade, acho que isso é um projeto furado.”
• Presença da universidade
E teve uma coisa que me chamou a atenção, que nunca haviam comentado no Brasil. Alguém falou: “Nossa, tem muito universitário no seu livro. Explica pra nós por que tanto aluno e professor”. E aí fiquei pensando e contabilizando as pessoas do livro que estavam na faculdade e realmente era verdade. E isso tem muito a ver comigo. Fui fruto dessa abertura da universidade, da possibilidade de muitas pessoas estarem lá, com bolsas. Vivi isso. Entrei na graduação em 1999 e saí em 2007, justamente porque ainda não haviam bolsas boas. Mas acho que a minha vida foi muito marcada por esse processo e talvez eu não estivesse aqui hoje como escritora e pesquisadora.
• Preconceito
Queria escrever um livro em que as personagens existissem e que eu não tinha visto ainda na literatura. Meu desejo era esse. E as pessoas também estavam desejosas de ler esses personagens. E talvez eles fizeram disso uma bandeira. O que recebi de mensagens de pessoas que leram e se identificaram, de filho que deu para a mãe, de mãe que deu para o filho, de mulher que deu para o esposo por conta do filho, ou de psicólogo que indicou para paciente. Isso é uma forma de fazer da literatura um instrumento para pensar o mundo e como a gente pode ser e se relacionar.
• Pandemia
Comecei a escrever A extinção das abelhas em 2016 e o entreguei à editora antes da pandemia porque ia viajar com minha mãe. E aí veio a pandemia e a gente teve que voltar correndo. O livro ficou parado na editora uns seis meses. Quando passou um tempo, pedi o livro de volta para fazer algumas inserções sobre a pandemia. E aí me dei conta de como a derrocada, a destruição de tudo, já vinha de antes. Tivemos esses movimentos protofascistas, com as manifestações de 2013 pelo passe livre, em que surgiram as bandeiras do Brasil, para teoricamente demonstrar um movimento apartidário, depois passamos pelo impeachment da Dilma, pelo governo Temer, que começou a destruição da Ancine, do MinC, e que vem na escalada da campanha do Bolsonaro e da ascensão do bolsonarismo, porque são coisas distintas. E, por mais que depois de 31 de dezembro não tenhamos mais o “saco de bosta entupido” como presidente, o bolsonarismo vai continuar.
• Futuro
Primeiramente, espero dignidade social e política. A gente está sem dignidade. Foram anos vergonhosos de relações políticas. Eu me esforço para entender quem ainda apoia o governo Bolsonaro, mesmo depois de tudo o que aconteceu. Mas a primeira coisa que espero do novo governo é restabelecer a dignidade, que as pessoas possam comer. Para depois começar a conversar sobre as outras coisas. Mas sinceramente espero que a gente diminua o uso de agrotóxico, proíba algumas coisas, não dá para continuar como está. Espero também que se crie o ministério dos povos originários. Quero muito que tenha um ministro ou ministra do meio ambiente que consiga visualizar essas pautas e dar a atenção que elas merecem, porque é a partir daí que a gente anda daqui pra frente. Se não fizermos alguma coisa, não existe a possibilidade de continuar com a vida na terra. E, claro, espero que voltem as políticas públicas para a cultura, para o livro e literatura. Quero muito fazer um concurso. Estou aí, doutora, com pós-doutorado, e desempregada. Porque as pessoas que se qualificaram, fizeram doutorado, não têm emprego hoje na universidade. Há demanda, alunos, mas é preciso uma reforma.