O poeta e romancista Paulo Scott foi o terceiro convidado da 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo YouTube, e todo conteúdo também fica disponível no site do projeto.
Scott nasceu em Porto Alegre (RS), em 1966. Escritor e professor universitário, transita por diversos gêneros literários. Publicou, entre outros livros, Meu mundo versus Marta (HQ, 2021), Marrom e Amarelo (romance, 2019), Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (poesia, 2014), Habitante irreal (romance, 2011) e Ainda orangotangos (conto, 2003), adaptado para o cinema por Gustavo Spolidoro.
Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 74 escritores. O próximo bate-papo acontece em 8 de setembro, às 19h30, com participação da contista e romancista gaúcha Veronica Stigger. A medição dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.
• Leitura criativa
Qual é efetivamente o peso da literatura, essa expressão cultural tão definitiva no preenchimento da existência de qualquer pessoa? Ainda corro atrás dessa pergunta. Outra coisa é essa mágica que acontece com quem se dispõe à leitura: entrar em uma dimensão muito específica e conseguir se colocar no lugar do outro, estabelecer empatia. Isso é muito mágico. O poder da literatura está nessa organização mental que é sempre individual, singular, e coloca o leitor no mesmo plano do criador. Acredito muito mais em leitura criativa do que em escrita criativa. O desempenho de um livro se deve muito mais à época e ao espaço em que ele é lido, e também de certa forma às idiossincrasias, curiosidades e genialidades de quem o lê, do que qualquer outra coisa. Não é por outra razão que algumas obras surgem de maneira bastante expressiva e depois de um tempo desaparecem. E outras levam anos, décadas, para serem percebidas na sua complexidade ou originalidade. É uma verdadeira batalha contra o tempo, porque é diferente de uma peça de teatro, uma ópera, um show — podem ficar gravados, mas são diferentes da concretização que se dá por meio da expressão única e direta das palavras.
• Encanto precoce
Para representar minha pequena trajetória como leitor, diria que — de alguma forma — foi minha timidez que me colocou nesse lugar, mais que qualquer outra coisa. Eu encontrava nas bibliotecas, nos livros, nas histórias em quadrinhos, uma companhia e um refúgio que não tinha em outro espaço. E também, digamos assim, uma possibilidade de me ver estrangeiro e de escapar de uma rotina ou de coisas que me eram insuficientes ou demasiadamente cruéis. Minha primeira lembrança é dos livros que minha mãe lia para mim. Depois, logo no jardim de infância, os livros da biblioteca eram mais importantes do que o intervalo. E não só por segurança, como espécie de refúgio. Tinha algo mais instigante. Em termos de linguagem mesmo, descoberta, sempre fui apaixonado pelas imagens.
• Descobertas definitivas
As histórias em quadrinhos e os livros infantis sempre foram muito importantes. É uma relação que se estabelece um pouco pela minha timidez, depois vai ganhando outras implicâncias. Já aos 14, 15 anos, por mudança de escola, começo a ter acesso a uma literatura— influenciado por amigas e amigos mais velhos — que está dentro do aspecto que chamo “altar francês”, embora fale o tempo todo que não tenho altares, pelo contrário, odeio cristalizações. Mas devo muito ao que descobri por essa idade — Sartre, Camus, Genet. Foi muito definitivo.
• Questão urgente
A construção de leitores é uma das questões mais urgentes do Brasil, e evidentemente passa por uma educação de qualidade. Quando vou para algum trabalho na Europa, em Londres, fico na casa de amigos que têm filhos e percebo o nível de exigência ao qual as crianças são submetidas, nas escolas públicas, diante da arte. Da pesquisa científica. Da problematização quase filosófica daquilo que está se apresentando diante daquelas crianças tão pequenas. E aí vejo o quanto a percepção da literatura no nosso ensino público, e mesmo particular, não é bem conduzida.
• Direito e literatura
Como o professor que acabei me tornando, tenho um trabalho com ênfase em uma corrente muito clara de Direito na literatura, ou Direito pela lente da literatura, que me propicia uma espécie de mediação das obras contemporâneas. Não tenho dúvida de que a justiça crítica está muito mais na arte, na literatura, do que nas instituições. Hoje, me colocando nesse ramo há mais de dois anos, faço um levantamento das obras contemporâneas que de alguma forma revelam a fragilidade e as potencialidades do que deu certo e do que deu errado nessa repactuação da nova constituição — mais democrática, sólida, justa; um marco histórico incontornável, que constantemente, dentro da sua promulgação, vem sendo atacada.
• Verdade ficcional
Quem está em uma rotina de aplicação do Direito parece acometido por uma insensibilidade, como se estivesse em uma máquina de insensibilização que afasta qualquer leitura crítica e conexão mais íntima com a realidade. Há sentenças, por exemplo, que não reconhecem um estupro militar, porque dizem que a vítima não gritou, não buscou ajuda. Ou quando uma pessoa negra vai a uma delegacia fazer uma denúncia e depois, no Ministério Público, com delegado e juiz, não se reconhece que ela sofreu racismo nem injúria racial — dizem que não passou de uma piada, que a piada faz parte do nosso jeito, da livre opinião. A conexão com a realidade às vezes está muito mais forte na verdade ficcional de um romance poderoso que explique muito sobre o Brasil, como Um defeito de cor [de Ana Maria Gonçalves], do que num tratado de História ou num livro de Direito.
• Boas histórias
Até hoje me considero muito mais leitor do que escritor. Não consigo imaginar minha literatura formulada — realizada, criada — com a pretensão de que venha mudar o mundo. De que seja uma bandeira de conscientização, harmonização, e tenha personagens que vão ser paladinos da justiça, voz da esperança. Não acredito nisso. O ano em que vivi de literatura (2015) é meu livro mais corajoso, justamente porque não agradou — me trouxe inimigos e inimigas. Tem gente que nunca vai me perdoar por causa dele. Minha preocupação sempre foi contar boas histórias.
• Condição de leitor
A potência na mediação entre Direito e literatura está justamente na leitura. Na coisa poderosa que é a condição de leitor. Nesse sentido, a literatura — posso estar errado — mostra criticamente uma noção de justiça e de descumprimento ético da justiça de forma como os manuais, as academias de direito, as faculdades de direito, os tribunais, não conseguem fazer hoje.
• Potência da linguagem
No momento mais trágico da nossa vida de redemocratização, política e social, você vê um Ministério Público Federal completamente inerte. Sentenças absurdas. Desembargadoras dando declarações absurdas no Twitter. Ministro não sei de onde dando declaração absurda. Há uma incompreensão absoluta do que é uma ética social, uma urgência social. Em um país que está entre os cinco mais desiguais do mundo, seria preciso um tratamento diferenciado, uma consciência de realidade e de problematização da sociedade brasileira — que é trágica — muito mais séria, severa, serena. O debate público que se organiza a partir de uma narrativa, mesmo que ficcional, pode revelar mais efetivamente o que é o Brasil — pela potência de linguagem e de sua lente, que é jogada sobre certas idiossincrasias, certas tragédias.
• Jogo sujo
A leitura é uma questão de cidadania plena que nunca se realiza no Brasil. É um país marcado pela lógica escravagista, que não afeta somente as pessoas de pele escura. Afeta todas as pessoas. Esse não ter direito, manter-se o tempo todo reificado no papel de engrenagem — de ferramenta, de peça — no jogo de saque, de exploração constante… Nós somos uma colônia extrativista, e parece que somos condenados a mantermo-nos no pós-período colonial sob essa colonialidade que não nos abandona. Basta ver a forma como os bancos tratam seus clientes no Brasil. Não tem coisa mais emblemática que isso.
“Não tenho dúvida de que a justiça crítica está muito mais na arte, na literatura, do que nas instituições.”
• Tornar-se escritor
Imagino que, no processo de me tornar escritor, eu tenha pesado o passar do tempo, as prioridades, as inquietações — o que efetivamente me completaria ou justificaria uma existência única, impregnada de urgências e ansiedades. Imaginei que deveria pagar o preço para me descobrir alguém dedicado a essa dimensão. Nesse sentido, imagino que tenha me colocado uma nova perspectiva: uma de realização que não tinha como professor de Direito Tributário e Econômico da PUC, nem como advogado das grandes empresas do Rio Grande do Sul, que fui durante muito tempo. Ao colocar na balança minha experiência acadêmica de mestrado e começo de doutorado, pensei que deveria dedicar alguns anos à experiência de uma vida integralmente dedicada à literatura — se não escrevendo, pelo menos lendo, refletindo o que seria meu papel nela. Aí, veio o Habitante irreal (2011).
• Marco do século
Habitante irreal foi um marco na literatura brasileira, como se diz, porque foi o primeiro a colocar no centro da narrativa o Brasil de hoje. Há autores e críticos que falaram que o livro poderia ficar datado — as mesmas pessoas que, anos depois, aplaudem justamente essa presença do contemporâneo. É bastante interessante o quanto o Habitante — junto com outras obras, como Diário da queda (2011), do Laub — foram, como disse o Cristovão Tezza, livros-marcos nesse século. O Habitante tem o protagonismo indígena, feminino. Uma tragédia que não era falada. As pessoas diziam: “Você vai escrever um livro sobre indígena, Paulo Scott?”. Veja como o mundo muda, lá de 2005, quando assinei o contrato, para o mundo de hoje.
• Largar tudo
Em termos concretos, foi muito engraçado: quando larguei o Direito, larguei tudo, as pessoas começaram a me olhar de uma forma diferente. Você pode ser um médico, até gerente de banco, e ser um escritor engajado, dedicado, sério. Mas se você larga o conforto dessa vida… Eu não tinha outro caminho, porque me parecia óbvio o que fiz, largar tudo, abrir mão da segurança financeira. Eu nem abria meu contracheque da PUC. Era outra realidade para eu me dedicar e descobrir qual era efetivamente o vínculo que tenho com a literatura desde muito jovem — desde o começo, aos 12 anos, com meus primeiros poemas, até a eleição de livros definitivos. Precisava recuperar algo muito especial. Quando tinha 15 anos e comecei a ler A náusea [de Sartre], por exemplo, isso mudou minha vida. Uma música do Jorge Ben mudou minha. Uma música do Caetano Veloso mudou minha vida. Uma música da Rita Lee mudou minha vida. Um Cartola mudou minha vida. Essa coisa com arte, e não só com literatura, me parecia uma dimensão que eu não poderia, de forma consciente, negligenciar no meu percurso.
• Cegueira cultural
A frase mais inteligente que se pode formular sobre o Brasil e ser brasileiro é esta: “É muito difícil entender o Brasil”. As cartas estão na mesa, mas somos impregnados por uma lógica e uma cegueira culturais. É uma construção maleficamente arquitetada. Estou com 55 anos e sempre me pretendi alguém conectado, engajado no meu tempo, tanto que tenho essa tensão máxima com a produção literária contemporânea. Mesmo assim, com o Direito e outras questões políticas, estou sempre me surpreendendo com o quanto não entendo o país.
• Problema sério
A transfiguração da realidade para a narrativa ficcional, como faz Ana Maria Gonçalves em Um defeito de cor, cria uma dimensão de afetação muito forte de invisibilidades, espaços heterotópicos que não são visíveis e sentidos nesse caldo que é um Brasil completamente iludido em várias fantasias — tão fragilizado, suscetível a mitologias e mitos, mentiras, enganos. Um Brasil que se quer norte-americano. Que não se reconhece como a criança mimada da América Latina. Que não se reconhece como o país cruel e violento que é. Esse país adorador de Hollywood. Adorador de West Point. Adorador de, sei lá, da Bolsa de Nova York. Do american way of life. Nada mais antigo, precário e decadente do que isso. O Brasil continua apaixonado e fascinado por ter apartamento em Miami.
• Mediações de leitura
Como leitor, acredito muito nas mediações sérias, honestas, coerentes, como o Paiol Literário, o Rascunho, o Suplemento Pernambuco, a Quatro Cinco Um. Esse pessoal que tenta estabelecer um espaço de conexão com a cultura a partir da literatura. Acho que são incríveis. Você não consegue pegar a dimensão do que é a obra de uma Cidinha da Silva quando somente lê sua obra. Quantas coisas estão ditas na dicção de cronista que ela tem, a confusão entre ficção e crônica, realizada tão maravilhosamente. Algumas abordagens são únicas. Embora no Direito e na literatura eu acabe trabalhando com obras mais fechadinhas, mais maniqueístas, que dão uma certa esperança e têm uma coisa mais de denúncia, você vê que há obras inacreditáveis, como As visitas que hoje estamos, [de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira] por exemplo, numa outra chave. Existe um Brasil que se revela na literatura, e não necessariamente urbano — mas também urbano, já que a tragédia afeta todo mundo: pessoas brancas com dinheiro; pessoas pobres, evidentemente miseráveis; pessoas que sofrem de preconceito sistemático, como uma pessoa trans, por exemplo, uma pessoa negra.
• Ameaça
A problematização do Brasil está tão recalcada, tão submetida a uma leitura única, que hoje emerge como essa moralidade que pretende tomar o espaço da ética social. Isso é muito sério, porque você tem um presidente da República que diz: “Primeiro minha família, primeiro eu”. E, com relação aos outros, sua única resposta é: “E daí?”. Há um deslocamento de moralidade, um pragmatismo egoísta, imediatista, que assume o comando do Brasil. Um modelo que atribui poderes quase imperiais à figura do presidente. Vê o quão ameaçador é isso?
• Boi, bala e Bíblia
O agronegócio é desastroso. Os caras acham que, porque levam o país nas costas, têm o direito de impor ao Brasil sua própria ótica — do boi, da bala, da Bíblia. O problema é quando essa perspectiva individualista, que não é da ética social, da coletividade, do pacto democrático, está nas esferas do judiciário, do Ministério Público. Na presidência da Câmara dos Deputados, no procurador-geral da República. Na presidência. É pura conveniência, cercada de moralidade. Essa moralidade que engata num discurso religioso de alguns setores, mais empresariais, neopentecostais, que diz: “O diabo é inimigo. Acabe com as religiões de matriz africana”. Essa linha tão perigosa, de um pensamento visivelmente protofascista, é totalmente contrário ao que se propõe uma leitura mediada e discutida. E uma leitura criativa do que poderia ser considerada uma literatura que observa o Brasil e sua identidade. Olha esse livro da Amara Moira [Neca + 20 poemetos travessos] que acabou de ser lançado. As meninas escrevendo sobre violência. É uma revolução.
“A leitura é uma questão de cidadania plena que nunca se realiza no Brasil.”
• Momento inevitável
O Brasil já caminhava para onde está. A externalização dessas expressões — trágicas, e que está custando milhares de vidas na pandemia — era inevitável. Claro que veio no pior dos momentos. Mas o Brasil já se conduzia para um momento como esse, porque é muito forte o poder de certos movimentos históricos no país. De alguns pactos que não deixaram de ser realidade. A questão da segurança, do militarismo — que é objeto de crítica da minha HQ, Meu mundo versus Marta, embora eu a tenha escrito em 2011 — está superatual. O militarismo na América Latina está muito forte. Esse momento atual parecia, de alguma forma, inevitável.
• Governo condenado
Saí do Rio de Janeiro para morar em Santa Catarina, em 2015, porque sentia que alguma coisa estava mudando. Que tinha que ir para um lugar em que pudesse pôr os pés mais no chão, sair daquela rotina cultural do Rio de Janeiro. No primeiro ano da presidente Dilma eu já dizia que ela não ia fechar o mandato. As pessoas, nas suas bolhas, respondiam que não. Em Santa Catarina, passando por uma cidadezinha, vi jovens, na beira da estrada, estendendo lençóis pretos que diziam: “Intervenção militar já”. Isso no começo de 2016, quando a Dilma ainda estava no poder. Não são todas as pessoas, evidentemente, mas em Santa Catarina há uma paixão muito grande pelo totalitarismo, pelo militarismo. Há um discurso muito forte que ampara essa onda neonazista de supremacia branca, ódio contra quilombolas, indígenas. Percebi, de fato, que o governo da presidente Dilma estava condenado. Foi aquela coisa: quando você acha que está tudo dominado, que pode descansar, que está tudo certo, que o grande pacto está realizado, é meio que um tiro no próprio pé. E aí, deixa-se cercar pela própria arrogância, vaidade. A certeza de que você é o condutor do mundo, que tem a solução para os oprimidos. Que só você está certo.
• País em risco
O risco à democracia é total. Basta olhar para o movimento que acontece hoje dentro das polícias militares. Olha o discurso do presidente. Olha o que está se formando: uma verdadeira doutrinação das escolas de tiro, dos clubes de caçadores, um armamento bastante significativo com pessoas encantadas com a doutrina totalmente americana de que “vou usar arma para defender minha família, defender minha fé cristã”. Claro que estou lidando em uma chave muito norte-americana, mas que é totalmente influente nesse grupo de pessoas. Você tem um Braga Netto, que já falou em golpe muitas vezes. Um presidente que falou em golpe. Um procurador-geral da República inerte. É um governo que contrasta muito com o anterior, que deixou o Ministério Público trabalhar, deixou a polícia trabalhar, nunca deu tanto dinheiro para as forças armadas, para banco, para certo setor do empresariado. Mesmo assim, foi apunhalado pelas costas. Porque houve uma falta de noção. Uma ingenuidade que esquece que democracia é tensão, não é você estar combinado. Não tem essa de “estamos conveniados”. Democracia é transparência, é tensão, é cada um lutando pelo seu direito. Esse grande pacto de todo mundo amiguinho, que une banqueiro, empresário, trabalhador, como se fossem todos amigos… Tem alguma coisa errada. As traições vieram de quem mais recebeu.
• Racismo
Existem muitos racismos no Brasil. O do Rio Grande do Sul é cruel, mas não é menos cruel que o do Rio de Janeiro, naquela ilusão do “estamos todos juntos”. Essa questão, para mim, do que é ser negro: estou num lugar muito estranho. Sempre me afirmei um homem negro, pelo modo de criação que tive. Pessoas do movimento me escrevem para dizer: “A gente discutiu o teu livro, discutimos a sua presença, e as pessoas negras falaram que você é branco”. Esse meu lugar, para poder fazer uma análise do que é ser negro no Brasil, é contaminado de esforço de entendimento. Do que é eu ter a pele clara, e até meus 11, 12 anos ter tido o cabelo liso e castanho-claro, muito claro, pele clara, e tudo mais. Como todo mestiço, seu cabelo começa a encrespar e a escurecer no começo da adolescência. Sempre me vi como uma pessoa negra, nunca como branca. Na leitura que faço, o racismo se escancarou no Brasil. É uma coisa que nunca deixou de existir, você só tem aí uma influência inevitável do presidente e da turma que o cerca, escancarando suas verdades, suas livres opiniões, seu direito de opinião. Mas o Brasil sempre foi isso.
• Colorismo
Uma comunidade negra, por toda a arquitetura maléfica que nós chamamos de colorismo, pode ser muito desagregada em vários espaços. Ela combate a si mesma, sem perceber o quanto é vítima da lógica estrutural. Meu livro, Marrom e Amarelo, foi o primeiro a tratar a questão do colorismo como tratou — e algumas pessoas, mais acostumadas a uma estrutura tradicional, acabaram se decepcionando: “Não tem final feliz”. Meus livros não têm final feliz, nenhum deles. Desculpe aí. Obrigado por ter lido, muito feliz, mas se você está esperando calorzinho no coração, não é comigo. E isso que assinei contrato para o Marrom e Amarelo em 2012, bem antes da onda do racismo virar mainstream. Faz parte da tragédia.
• Elite
Tem um problema de o Brasil não conseguir se olhar no espelho. É muito sério isso. Você tem uma elite que não se admite brasileira, que continua na mesma lógica espoliadora, de saque, de usurpação do país. Que manda seus filhos para fora, tem casa em Miami, na França, e não se sente engajada com o projeto de construção de um país. Você tem uma classe média que é totalmente subalterna e office boy de luxo dessa elite, que também não quer se envolver com a sujeira, com a tragédia. É uma desigualdade que contamina todo mundo.
• Presença negra
A política de cotas do governo Lula e da presidente Dilma, por exemplo, possibilitou o acesso de corpos negros ao ambiente universitário, tornando ele muito mais próximo da realidade. É inacreditável, às vezes, o quanto o ambiente acadêmico é distanciado da realidade, da problematização da realidade — e não estou falando de utilitarismo, pragmatismo, crescimento econômico, mas de conhecer mesmo a realidade. A presença das pessoas negras no espaço acadêmico trouxe uma nova linguagem, novos e melhores discursos. E elas também aprenderam, em um espaço que é maravilhoso.
• Espelho partido
Há formulações teóricas de leitura do Brasil, e de apresentação do Brasil, que coloca — sobretudo nos últimos cinco anos, mas considero os últimos dez — um protagonismo da comunidade negra. Nós somos mais de 60% de pessoas negras no Brasil, mas a sociedade não consegue se ver assim. Muitas pessoas que são negras não se veem como tal, ou não se veem ligadas ao seu pai negro ou à sua ancestralidade — por razões óbvias, no plano imediato é muito melhor você dizer “sou branco” do que você dizer “venho de uma família negra” ou “sou negro”. Esse é um problema seriíssimo, que pega todas as camadas. Quanto mais a pessoa é escura, pior ela é tratada. Mais desumana ela é tornada. De forma mais estigmatizada ela é encarada. Infelizmente, nesse momento, inclusive pelo governo.
• Brasil destruído
Não sou um escritor engajado. Muitas pessoas se frustram comigo. Não entro nesse túnel. Você não vai ver celebridades de esquerda recomendando meus livros, nessa coisa de “ele é um representante da esquerda”. Muito menos da direita. Diria que sou otimista [com relação ao futuro do país] pelo engajamento político com minha escrita, que não é uma escrita engajada, mas tenta ser honesta a partir das minhas urgências. Das minhas questões, que são muito relacionadas à identidade brasileira. O Brasil está destruído. Tenho certeza. Tirar os militares do poder, seja qual governo for, não vai ser uma coisa simples. Eles ocuparam o poder e gostaram.
• Otimismo
A elite nunca lucrou tanto, mesmo num momento de pandemia — que amassou o pequeno e o médio empresário. Uma parte do setor do agronegócio está muito feliz com esse governo. E também uma parte dos donos de TV, como no caso neopentecostal, Jovem Pan. Adicione a isso a cultura, meio ambiente, direitos trabalhistas — tudo que foi esfacelado. A grande tragédia começou com aquela carta para o futuro do Michel Temer. E aí, dá para reconstruir o país? Dá, mas me engajo muito com o que o Silvio de Almeida diz: vai precisar uns 20 anos para a gente retomar o ponto onde estava. E acho que é até uma projeção otimista, porque as ondas cíclicas, pelo menos até aqui, costumam acontecer de 25 em 25 anos, 30 em 30 anos. Ninguém tem bola de cristal, mas sou otimista. Você se colocar de uma maneira ativa, ter uma voz clara, explícita, em relação ao seu posicionamento, não ficar omisso, não ficar dentro da conveniência — essa do silenciamento, por exemplo, que é trágico para o país. Se isso é ser otimista, repito: parte da saída está na leitura de tudo que está sendo maravilhosamente escrito no Brasil. Por que os fascistas têm tanto medo dos poetas? Em algum momento, a arte — e a criatividade, a empatia — acabam permanecendo. Não errará a aposta quem permanecer engajado com a cultura e sua defesa.
“É inacreditável, às vezes, o quanto o ambiente acadêmico é distanciado da realidade.”
• Poeta do agora
Para desgosto de muita gente, me vejo como poeta. Acho legal que me reconheçam como romancista, mas a poesia ocupa o centro do meu fascínio como leitor e pensador da arte, digamos assim, garimpador das potencialidades da minha realidade, dos meus limites. Embora tenha parado de escrever poesia nos últimos meses (não sei por quê), ela está sempre no centro do que estou fazendo. Não tenho nenhuma rotina, nenhum método, disciplina. O Paulo Scott do ano passado não é o deste ano. Meu modo de contar, de ver as coisas, não é o mesmo. Os romances são sempre do zero, estou sempre reescrevendo as coisas. Chega aquele momento que digo a mim mesmo: “Chega de palhaçada. Vamos parar tudo e escrever esse livro”. Fico pensando o livro, anotações, pesquisas.
• Romance em gestação
Nesse momento, não estou escrevendo nada de ficção. Tenho feito ensaios. Estou em uma pesquisa muito forte do Direito com relação ao antifascismo no Brasil. Acho que não é um momento para perceber para onde minha intenção literária descambará. Se bem que sei mais ou menos para onde ela vai, mas prefiro muito mais ficar refletindo, entendendo a temática, as contradições e os elementos mais concretos do movimento das personagens e dos seus desejos no romance que estou programando, o Rondonópolis, do que efetivamente sentar e escrevê-lo. Tenho muitas anotações. Mas, com a pandemia, dei uma congelada.
• Peso da pandemia
Me tornei menos literário, mais filosófico. De alguma forma, estou me deixando encantar por uma epistemologia que parecia meio inútil na urgência da vida. E há uma busca de um olhar mais crítico e mais sereno, menos desarmado, para o que é o Brasil. Inclusive para as pessoas que estão destruindo o Brasil, porque é muito importante entender a lógica delas. Tirando um espectro de pura maldade, que deve ser, sei lá, 5% dessa turma, há pessoas que têm uma lógica — em suas cabeças — para defender os absurdos que defendem. Esse diálogo é incontornável. Mas o que digo desse momento de pandemia é o seguinte: tenho muita sorte de ter pessoas legais do meu lado. Ter uma companheira iluminada como a Morgana, ter os pais que tenho, amigos. Acho que estou passando com muita serenidade por esse processo. O que a Morgana diz é que às vezes fico muito engajado, muito militante.
• Culpa coletiva
Às vezes fico muito angustiado com o que está acontecendo no Brasil e as pessoas não veem. Esse jeito brasileiro de que “tudo está bem, a gente dá um jeito” é trágico em todas as dimensões. Em todos os espectros. Da parte progressista ou não, parece que a gente não entendeu qual é a responsabilidade que tem com o país. E estou colocando “nós”, não estou me furtando. Cometi um erro ao me afastar do debate público em alguns anos recentes, durante o governo Lula e Dilma, e achar que podia ser só um poeta de calção e chinelo no Rio de Janeiro. Como cidadão, me afastei de um enfrentamento que não devia ter me afastado. Todos erramos. Todos somos culpados. “Ah, mas não votei no fulano de tal”, não importa. Não importa. Tenha certeza que você poderia ter sido mais engajado do que foi. Estou falando para aquelas pessoas que dizem: “Não tenho culpa de nada”. É essa mentalidade que nos levou a esse fundo de poço — esperando ainda que o cadafalso abra, no fundo, e a gente continue a cair.
“Não errará a aposta quem permanecer engajado com a cultura e sua defesa.”
• Segurança
Não sou mais um garoto, já não tenho mais aquele ímpeto de quem é mais jovem de causar. Começo na literatura sabendo qual é meu lugar. Sou muito seguro do que quero. Se vai agradar, se não vai agradar, não estou nem aí. Quem me conhece sabe. Escrevo para mim. Se vão gostar, se vão aplaudir, não é problema meu. O que vão fazer com meus livros não é problema meu. Mesmo. O que posso é me engajar na divulgação, para ser menos tiozão, ser um pouco mais equalizado no mundo contemporâneo; saber que tenho que descer do pedestal e me comunicar com os leitores, ir para as redes sociais. Esse tipo de coisa acho legal, porque é um desafio, mas não tem nada a ver com esperar agradar, aceitação. Nunca escrevi assim — como poeta, muito menos.
• Redes sociais
Sempre que estou escrevendo um livro meio que dou uma saída das redes sociais. Esse momento é um dos mais trágicos do país, e de alguma forma me engajei na comunicação com as leitoras e leitores. Coisa que nunca tinha feito com meus livros, fiz com Marrom e Amarelo. Me engajei em divulgar o que estavam postando do romance. Achei legal jogar esse jogo, até certo momento, fiz isso durante um ano e meio, aí parei. É uma entrega muito rica, mas cansativa. Foi uma questão de viver o tempo. Achei que tinha que pagar para ver.
• Meio atrapalhado
Sou um leitor que sempre está querendo sair do conforto. Sempre priorizei a poesia. Tenho essa paixão pela poesia, e ela fura todas as filas aqui em casa. Os autores e autoras que estão começando me mandam seus livros, e as editoras também me mandam. Embora eu tenha esse lugar solitário na poesia, não faça parte de turmas de poetas, sou leitor de tudo. Tenho uma interlocução muito interessante com os editores. Tanto que há uma cobrança muito forte de vários me dizendo: “Quando quiser publicar um livro comigo, a porta está aberta”. Isso é muito interessante, de algumas pessoas se conectarem com o que escrevo. Na prosa já é mais complicado. Acho que nunca ganhei tanto livro na minha vida quanto estou ganhando atualmente, e livros que são urgentes para mim. Não estou conseguindo organizar a leitura, até porque estou lendo muita coisa sobre política — e Direito, literatura, filosofia. Tem um espaço que está meio ocupado. Mas fico sofrendo muito. O que acontece é que fico parando em romances incríveis, aliás que ano de romances incríveis!, porque não tenho tempo de chegar até o final e quero logo começar outro. Acho que estou meio atrapalhado.