A romancista Patrícia Melo foi a sexta convidada da 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo Youtube, e todo conteúdo também fica disponível no site do projeto (paiolliterario.com.br).
Patrícia nasceu em Assis (SP), em 1962. Entre romances e um livro de contos, publicou 12 títulos. Mulheres empilhadas (2019), Gog Magog (2017), O matador (1995), adaptado para o cinema com roteiro de Rubem Fonseca, e Inferno (2000), vencedor do Prêmio Jabuti, são alguns de seus trabalhos de fôlego. Na narrativa breve, lançou Escrevendo no escuro (2011).
• Literatura enriquece
Há várias razões pelas quais devemos nos dedicar à literatura. Primeiro, porque ela é sempre uma hipótese. Hipótese de uma vida. É uma maneira de você vivenciar uma vida diferente da sua. De ter uma experiência diferente e aprender. A maneira mais fácil de ver a importância da literatura na vida de um ser humano é pensar nos livros que mudaram sua vida. Há livros que mudam nossa vida. Mudam nossa cabeça de tal forma que a gente passa a ter uma conduta diferente. Passa a ter uma perspectiva diferente. A literatura não é só sonho, entretenimento, embora também possa ser, mas é também autoconhecimento. Ela é a vivência de uma experiência possível. Ou de uma experiência impossível. É um mergulho na linguagem. Uma possibilidade de aprender, de maneira muito agradável, a estrutura da sua língua. De aprender novos vocábulos. De melhorar sua maneira de falar. As vantagens de ser um leitor são tantas. É até difícil elencar. A vida, sem literatura, é como a vida sem o sonho. É pobre. Uma vida reduzida. Sempre brinco: a gente deveria ter duas vidas, uma para viver e outra só para ler. Por mais que me dedique à literatura, estou sempre correndo atrás. Sempre achando que minha formação está cheia de buracos. Que há livros e mais livros que quero ler. Para mim, não há prazer maior do que sentar em uma poltrona, pegar um livro e mergulhar na história.
• Brechas para ler
Não tenho todo tempo do mundo para leitura. Sempre no intervalo entre escrever um livro e outro é que faço um bom mergulho na ficção. Quando estou escrevendo, evito ler livros. Mesmo de autores de que gosto. Fico tão sensível. É como se evitasse qualquer tipo de influência. Geralmente, na fase que estou escrevendo, leio só material de pesquisa, livros de referência. Vou acompanhando resenhas no Rascunho ou cadernos literários — há tão poucos cadernos literários no Brasil, né? E estou sempre com uma pilha de livros para comprar e ler.
• Expectativa
Não tenho ambição de causar uma transformação no leitor da minha literatura. Acho que a leitura pode engatilhar uma série de questionamentos que vá fazer com que o leitor acabe mudando. Agora, não é uma coisa automática. Provavelmente não é só um livro que vai mudá-lo totalmente. É sempre um processo. Esse processo de transformação é lento e contínuo. Não tenho muita expectativa de que meu livro mude o leitor. Mas tenho expectativa de que o leitor, ao ler meu livro, tenha abertura para alguma mudança. Por exemplo, no que diz respeito ao Mulheres empilhadas, meu último romance, no qual falo sobre feminicídio: minha expectativa era, sobretudo, que abrisse os olhos de muitos homens que acham, por exemplo, que a questão do feminismo ou da violência contra a mulher não diz respeito aos homens. Que eles não têm que participar desse debate. Queria que meu livro despertasse essa urgência no leitor. Agora, não é nem uma ambição. Quando estou escrevendo, não chego nem a formular isso. Depois que o livro ganha vida, e que começa a chegar o feedback dos leitores, é que você vai organizando isso na cabeça. Do que o livro está conseguindo realizar. Porque o livro, sozinho, se movimenta e está descolado do autor. É muito mais uma constatação, quando vejo a performance do livro e entendo onde é que estou conseguindo chegar. É mais isso do que uma pretensão, uma ambição de conseguir essa mudança na cabeça do leitor.
“A vida, sem literatura, é como a vida sem o sonho.”
• Constelação de leituras
Daria para fazer uma entrevista inteira só sobre os livros que mudaram minha vida. Um deles foi O estrangeiro, do Camus. Esse absurdo da vivência, esse vazio sobre o qual Camus sempre fala na literatura dele, ecoou de uma forma tão profunda em mim… Acho que já o li umas dez vezes. Outro que teve um impacto profundo foi Crime e castigo, do Dostoiévski. Quando falo em transformação do leitor, não é só na sua maneira de pensar. Ela também tem a ver com uma questão estética. Alguns livros me marcam profundamente pelo estilo. Pela maneira como aquela história é contada. Outros livros me marcam pela densidade dos personagens, são personagens que você passa a carregar a vida toda. Quem leu Lolita, do Nabokov, por exemplo? Lolita é uma personagem que tem carne. Você sabe perfeitamente quem ela é. Ela é tão presente na vida do leitor quanto um familiar, um parente. Às vezes até é muito mais próxima de você como figura humana do que um primo, um tio. O que a literatura nos dá é uma gama de possibilidades — estética, experimental, no sentido de vivência. Há livros que marcam especificamente porque há algo neles que ecoa em nós de maneira direta. Mas, no fundo, o que vai transformar o leitor é essa constelação de leituras. Em um livro há o apelo estético, no outro há um personagem no qual o leitor se reconhece, e às vezes até de maneira negativa, como um espelho assustador, no outro é um espelho inspirador. É nessa dinâmica, na leitura de vários autores, que você tem a perspectiva de se enriquecer como pensador. Como ser humano. Como pessoa.
• Sorte grande
Tenho a sorte de vir de uma família de leitores. Meu pai era um leitor, minha mãe também. Havia uma biblioteca boa na nossa casa. Falava-se muito sobre literatura. Lembro de almoços de domingo, ou jantares no sábado à noite: todo mundo falava o que estava lendo. Todo mundo estava lendo algum livro. Isso foi uma coisa muito importante. Eu admirava meus irmãos mais velhos e queria conhecer o que eles estavam lendo. Li Dez dias que abalaram o mundo, do John Reed, quando tinha uns 13 anos. Não entendi nada na primeira vez. O próprio Macunaíma… Tudo porque meus irmãos mais velhos estavam lendo. Tinha esse incentivo grande em casa. Era uma família que lia muito.
• Desafios modernos
Nós, leitores já formados, temos a sensação de que ler é fácil. Ou seja, de que é fácil abrir um livro e transcender. Mas não é fácil. A leitura exige um espaço de introspecção, de concentração — tudo que a vida moderna retira dos jovens. São tantas as possibilidades que se tem para usufruir o tempo, seja na internet, nos vídeos, nas séries. Esse espaço, o da introspecção, da concentração, precisa ser exercitado para ser aprendido. Você não aprende a ficar sozinho com um livro na mão, duas horas lendo, se não se dedicar a isso e exercitar a leitura, até o momento em que ela se transforme num grande prazer. Falta, para a formação dos leitores hoje, exatamente esse aprendizado da solidão. Da introspecção. Da concentração. São vivências que a vida moderna praticamente retirou de cartaz. Tudo acontece num ritmo muito violento. Tudo muito cheio de imagens, sons. Isso é muito triste. Quando não se aprende a ter o prazer pela leitura, você também abre mão da fabulação. Do sonho. Da imaginação. Você fica recebendo coisas prontas. Essa fúria de séries que existe hoje em dia, por exemplo. Acho que ela tira muito do jovem o sonho, a possibilidade de ele fabular. É um exercício que está embutido no exercício da leitura. Quando você está lendo, está criando. Você cria junto com o autor. Mas é preciso aprender a fazer isso. É preciso ter um espaço na vida para exercitar a leitura, até se tornar um leitor.
• Formação precária
Se a pessoa não for bem alfabetizada, não vai se transformar numa leitora. Porque não vai conseguir nem ler e compreender um artigo de jornal. O que se vive no Brasil é trágico. A gente está comprometendo completamente essas gerações futuras. A qualidade de ensino do país está comprometendo a qualidade de vida dos cidadãos. São pessoas que não terão esse instrumento importantíssimo na formação de um cidadão que é a literatura. Porque, não sendo bem alfabetizado, você jamais vai se transformar num leitor. É muito difícil. É quase impossível superar o efeito colateral da má alfabetização e conseguir, por meio do esforço individual, se transformar num leitor.
• Cinema e TV
Meu sonho, na juventude, era trabalhar com cinema. O cinema foi muito importante na minha formação, não foi só a literatura. De fato, comecei minha vida profissional como roteirista. Trabalhei bastante com cinema e televisão. Agora, é muito difícil você trabalhar com cinema no Brasil. Era difícil naquela época, hoje acho que é mais difícil ainda — com esse desmonte todo do atual governo, que acabou completamente com a produção do audiovisual. É praticamente impossível você trabalhar com cinema. Naquela época, você começava um projeto e o acabava quase dez anos depois. Tinha uma coisa muito frustrante. A televisão não era o produto artístico que você sonhava em fazer, era quase que “enquanto não consigo fazer meu trabalho autoral no cinema, deixa eu fazer televisão”. Não havia uma indústria de produção de cinema no Brasil. Trabalhei muito tempo com televisão e me senti completamente esgotada. O trabalho de roteiro é muito dialógico, depende muito de uma equipe de produção. Houve um momento em que eu estava esgotada, aí decidi que iria parar de trabalhar com televisão.
• Epifania
Foi quando escrevi Acqua Toffana [livro de estreia, publicado em 1994]. A liberdade que a literatura me proporcionou… Lembro que escrevi em um jorro, acho que em três meses. O que provocou esse jorro foi perceber a liberdade que é o espaço da literatura. Tive uma epifania mesmo, de vislumbrar e experimentar a liberdade como artista. Perceber que naquele espaço eu poderia fazer o que quisesse. Da forma que quisesse. No meu próprio tempo. Não há limite para o que você pode fazer dentro de um romance. Foi realmente uma epifania. Dali pra frente, foi muito difícil voltar pro roteiro, pro cinema, televisão. Perdi completamente o prazer de escrever para o cinema e para a televisão, porque acho que falta nesses espaços exatamente a liberdade que a literatura me proporciona.
• Momento certo
O momento em que lancei Acqua Toffana [1994] era curioso. As editoras estavam começando a se abrir para autores nacionais. Até então, a gente tinha muita publicação estrangeira traduzida. As editoras experimentavam pouco. Foi exatamente no começo da abertura dessas editoras que publiquei. Foi um momento muito rico dessa reformatação do mercado. As editoras estavam interessadas em autores nacionais jovens. Acho que talvez estivessem até mais abertas do que hoje. O que aconteceu foi isto: Acqua Toffana foi muito bem recebido. Eu estava um pouco com a vida de ponta-cabeça. Tinha acabado de ter filho, tive essa experiência maravilhosa com meu primeiro romance, e estava muito entusiasmada em continuar escrevendo.
• Experiências únicas
Nunca consegui fazer um plano literário. Sempre faço um mergulho no livro que me proponho a escrever, sem pensar muito no que vai ser na sequência. Sem tentar responder às expectativas que são criadas em cima da minha própria literatura. Tem sido isto: a cada livro, um novo desafio. Sempre encaro assim o início de um novo projeto. Um desafio que nem sei se vai dar certo. De repente, não dá certo. Um desafio em termos de estilo, narrativa, temática. Sempre é um tiro no escuro. Procuro escrever sem planejar muito, sem ter muita expectativa, para também não me frustrar demais.
• Liberdade
O que acho interessante, na vida do escritor, é justamente a liberdade. Por exemplo, senti uma certa pressão quando escrevi O matador. Foi um grande sucesso — não só no Brasil, mas fora dele. Havia uma expectativa dos meus editores. Como se meu próximo livro tivesse que ter a força d’O matador. Acho que é muito frustrante pro escritor repetir uma experiência que ele acabou de realizar no livro anterior. Não sei o que é ter um estilo, mas imagino que significa exatamente isto: retomar experiências de projetos anteriores em projetos em construção. Acho que isso é, no mínimo, tedioso. Você não se impõe nenhum desafio, fica repetindo a fórmula que deu certo. Tenho tentado, ao longo da minha carreira, a cada novo projeto, esquecer o livro anterior. Esquecer aquela experiência.
• Prazer do risco
Lembro do poeta Joseph Brodsky falando que literatura e poesia são espaços nos quais os profissionais que estão envolvidos são quase obrigados a abrir mão de suas experiências se não quiserem se frustrar. É diferente dos outros profissionais que se beneficiam das experiências que ganharam ao longo da realização de projetos. É exatamente essa a minha sensação. Quando começo um projeto, falo: “Bom, isso aqui não quero. Já sei exatamente o que não quero, que é o que sei fazer”. O que sei fazer é o que não quero. Quero algo arriscado. Sentir que estou fazendo pela primeira vez.
• Projeto gráfico
Gosto muito de acompanhar o projeto gráfico. Gosto muito dos processos de revisão, da capa, da escolha do capista. Nunca interfiro, mas gosto de estar presente nesses momentos. Acho importante, inclusive, porque a capa define muito o destino do livro. A capa deve ser sempre o fruto do diálogo entre um profissional que entende muito dessa questão do estilo, de como é fazer um projeto gráfico, e também do conteúdo do livro. Tem que ter um bate-bola entre autor e capista. É uma fase que acho bastante emocionante na produção do livro.
• Eficiência da narrativa
O que aprendi como roteirista de cinema e TV é o que chamo “eficiência da narrativa”. No cinema e na TV você tem pouco tempo para contar uma história, então é preciso ser muito eficiente, saber exatamente como contar a história. O que eu trouxe dessas mídias foi isso, essa preocupação com a eficiência. Com conseguir articular uma narrativa, que é um arco. Ela tem desenvolvimento, ápice, tem que se resolver. Isso vem muito da preocupação como roteirista. Acho isso muito benéfico para minha literatura. Porque eu, como leitora, sou muito crítica no que diz respeito à eficiência das narrativas dos autores. Às vezes, me incomoda: estou lendo e percebo que o livro está cheio de gordura. Pra que isso? Sinto que é quando falta a mão do editor cortando. É difícil para o próprio autor cortar. Não consegue cortar, o livro fica com barriga, sem ritmo. São essas preocupações que eu trouxe do cinema e da televisão: ritmo, eficiência. Foi muito positiva essa temporada no audiovisual.
• Processo criativo 1
Acabei um livro novo, e esse processo sempre se repete. Cada livro tem uma escritura, uma pesquisa, até uma rotina de trabalho diferentes. Mas o que se mantém sempre é o nascimento do livro. É sempre da mesma maneira. Estou no branco, sem saber o que vou fazer, não sei o que quero fazer no próximo projeto, aí começo a me interessar por alguma coisa específica. Geralmente é um tema. Sempre que estou lendo o jornal, escolhendo novos livros que vou ler, estou sempre privilegiando uma temática. Começo a mergulhar numa temática. Antes ainda de perceber que aquilo vai se transformar num livro. Na verdade, começo a pesquisar sem saber que estou pesquisando. E, de repente, penso: “Esse é um material que posso usar em um romance”. Assim que tenho um tema, a primeira coisa que penso é em quem vai contar a história. Quem são os personagens que podem incorporar a temática. É sempre nessa sequência: primeiro a temática, depois personagens, aí começo a pensar em uma história mesmo. Começo a fabular. Mas em uma fase muito experimental, sem saber até se vou seguir adiante com isso.
• Processo criativo 2
De repente, tenho um ovo. Tenho esses personagens de que gosto, essa temática, aí começo a fase de pesquisa. Vou atrás de amigos que sei que podem me dar uma bibliografia, vou atrás de profissionais que trabalham com essa temática que quero conhecer. Geralmente é um assunto que desconheço totalmente. Isso dura uma média de um ano, mais ou menos. Só de leituras, anotações. Vou preenchendo um monte de caderninhos, até de conversas que tenho com pessoas que me interessam. Muita anotação de coisas que vejo, pessoas que conheço, trejeitos delas, frases que me falam. Vai tudo pra esse caderninho.
• Ladrão e espião
Todo escritor é um bom ladrão. Mais do que ladrão, todo escritor é um espião. Ele está sempre olhando pelo buraco de fechadura. É impossível você deixar de ser espião sendo escritor. O tempo todo você fica com a maquininha de espião ligada.
“Mais do que ladrão, todo escritor é um espião.”
• Sopro das musas
Tem muita angústia na escritura. O que é a escritura? Um momento de busca. Você está buscando uma série de coisas. Uma estrutura, um personagem. Parte da criação acontece fora da mesa de trabalho. Mas uma parte muito importante acontece quando se está escrevendo. É importante que aconteça quando se está escrevendo. Se você decide tudo antes, sobra muito pouco espaço para a improvisação. Para as musas. É na hora que você senta para escrever que há a possibilidade de se relacionar com as musas, receber um sopro delas.
• Vivência inteira
Tem angústia na hora que você está escrevendo, à procura de algo que não se sabe o que é ainda. Você vai achando, perdendo. Acha e perde de novo, tenta e dá errado. Mas há momentos de muito prazer. Momentos que dou risada com achados para os personagens, com diálogos. É realmente uma vivência inteira. Tem prazer. Tem tormenta. Dificuldade. Facilidade. Alegria. Tristeza. Desespero. Momentos de largar o livro, “talvez eu não vá conseguir fazer isso”. Tem tudo isso, em todos os livros. Sempre sinto que é o primeiro. As dificuldades são sempre as mesmas.
• Brasil e violência
É muito difícil você entender o Brasil de hoje sem entender a violência. O Brasil é um país muito violento. Na Europa, quando você fala que o Brasil tem 60 mil homicídios por ano as pessoas não acreditam. É uma guerra civil. A gente mata mais do que determinados países em guerra. Essa sempre foi uma questão estrutural na minha literatura. Sempre me interessei pelo fenômeno da violência. Sempre tentei entender por que o Brasil se transformou em um país tão violento. Há muitas respostas para isso. Essas respostas não são conclusivas, são muito abertas e estão em todos os livros que tenho escrito.
• Resistência
Cada vez mais, não sei se pelo fato de eu estar vivendo fora do Brasil, ou se pelo fato de o Brasil viver um momento tão triste, tão infeliz da nossa história, com esse governo tão desacreditado, com essa desestruturação em todo sistema de educação, esse desmonte da cultura… Não sei se é por conta de tudo isso, por conta dessa tristeza que é hoje ver o Brasil, ler sobre o Brasil, mas estou cada vez mais conectada ao país. Cada vez mais direcionando minha literatura para questões que acho importantes no Brasil de hoje. Não tinha isso muito articulado dentro de mim nos livros anteriores. Hoje, o Brasil é uma questão importante na minha literatura. Quero me reportar a esse Brasil. Talvez porque neste momento tão desesperador a arte possa ser uma resistência. Uma espécie de negação disso, algo como “não é possível que seja assim”. Me sinto muito motivada a usar minha literatura como resistência. Como uma forma de dizer: “Chega disso. Não aguento mais esse Brasil violento, esse Brasil homofóbico, esse Brasil misógino, esse Brasil com um presidente genocida, com esse projeto fascista”. Imagino que muitos escritores estão sentindo essa barra pesada e usando a literatura como espaço de resistência. O Brasil é cada vez mais importante na minha literatura.
• Percepção de fora
Morar fora do Brasil aguçou minha capacidade de enxergar os problemas do país. Sabe por quê? O volume de violência que se é obrigado a engolir diariamente no Brasil é tão grande que, se você não encontra uma maneira de se defender, enlouquece. Você acaba ficando anestesiado para essa violência. Em um lugar como a Suíça, que tem uma estrutura social muito equilibrada, muito mais justa que a do Brasil, você não vê pessoas morando na rua. Morrendo de fome. Não se veem essas cenas que a gente vê no Brasil, como um caminhão cheio de ossos e as pessoas se jogando dentro desse caminhão… Isso é impensável. Essa violência tão acachapante é intolerável. Dentro da realidade do Brasil, você acaba se anestesiando para tolerar o grau de sofrimento. Você vê a multidão de pessoas que foram jogadas na rua, com fome, que ficam mexendo no lixo pra conseguir comer… Isso fica intolerável quando você salta fora dessa realidade e passa a olhá-la de fora. O ser humano não é para morrer de fome. Para ser abatido em experiências médicas. A razão da vida é o ser humano conseguir viver plenamente, ter a possibilidade de viver dignamente.
• Governo atual
O Brasil ficou mais violento com esse governo. No quesito violência contra a mulher, no que diz respeito à violência doméstica e aos casos de feminicídio, houve um aumento de quase 10%. É um aumento considerável. Foi esse Brasil violento, onde há tão pouca justiça e há tanta impunidade, que acabou elegendo uma figura com esse discurso de “vamos fazer justiça com as próprias mãos”, com esse discurso de intolerância.
• Bolsonarismo
Quando escrevi Gog Magog, em 2016-17, era como se percebesse que o brasileiro tinha uma espécie de grande prazer em ver os linchamentos que aconteciam, por exemplo, no espaço da web. Esses linchamentos morais que começaram a ser muito frequentes na internet. Era como se isso fosse uma forma de você compensar um país onde há tanta impunidade. Como se a ideia de punição fosse uma espécie de desejo de consumo. Objeto de desejo. A impunidade é tão grande que, quando você pensa em punição, seja ela com as próprias mãos ou a que acontece na web, ela acaba dando àquela pessoa que está cansada de ver violência, cansada de ver impunidade, uma sensação de alívio. O Bolsonaro funcionou um pouco como isso. Em um país muito violento, o cara vem e fala: “Olha, vamos ser intolerantes? A gente é racista mesmo, é homofóbico mesmo”. Como se ele acirrasse essas situações. As pessoas achavam até engraçado, né? Ele era meio que um palhaço, com esse discurso despropositado. Foi exatamente essa violência do país que fez uma figura como o Bolsonaro — despreparada, misógina, racista, com discurso de violência — chegar à presidência. Ele é esse “vingador”. Tem essa coisa de justiceiro, sabe? Com figuras da milícia. A gente sabe que tem ali toda essa cultura da milícia, dos matadores de Marielle. É assim.
“É muito difícil você entender o Brasil de hoje sem entender a violência.”
• Mulheres empilhadas 1
Quando comecei a pensar em fazer o Mulheres empilhadas, tinha um projeto estético. Queria que o livro fosse uma ampliação dessa experiência que a gente tem fragmentada: você abre o jornal e lê “mulher é atirada da janela pelo namorado”, “mulher é encontrada queimada dentro do carro; suspeito é o noivo”. Existem essas pílulas de feminicídio na leitura de jornal, nos momentos que se assiste ao telejornal, na vivência, na comunidade, uma amiga que apanhou do namorado. Queria juntar essas notícias que estão todas fragmentadas e fazer uma coisa que fosse como uma punhalada, uma facada. Tinha esse projeto estético. Pensava em como iria espetar o leitor. Até na busca das palavras, queria palavras pontudas. Queria um estilo meio facada.
• Mulheres empilhadas 2
Ao mesmo tempo em que ele é um projeto estético, é claro que se tornou político — conforme fui pesquisando e vendo a dimensão do nosso problema. Quando comecei a escrever o livro, o Brasil tinha 10 mil casos de feminicídio estacionados nas diferentes cortes. Você começa a ver o drama social, o drama humano, porque quando a gente fala de feminicídio, sempre pensa nas vítimas, nas mulheres que morreram, nessas mulheres empilhadas. Mas, na hora que você começa a pesquisar, percebe que esse número é muito maior, porque cada caso de feminicídio tem um núcleo de vítimas enorme. São gerações de vítimas. O número de vítimas, na órbita de um feminicídio, é enorme. É uma dor que se prolonga por gerações. Você começa a ter toda essa informação nas pesquisas, então é claro que isso te pega racionalmente, emocionalmente, e se transforma em um projeto político. Em um ato de resistência. Não quis em nenhum momento ser panfletária, mas quis sim ser política. Quis berrar um problema na cara das pessoas. Não sei se consegui, mas minha intenção foi essa.
• Tabu
Sinto que as pessoas me confirmam um tabu: “Resisti para ler o livro [Mulheres empilhadas] porque, no fundo, não quero falar sobre isso. Não quero discutir essa temática”. É uma situação meio paradoxal. Tem sempre muito silêncio em volta da morte de uma mulher. Primeiro, ela própria não pode falar sobre a morte dela. Já foi. Depois, a família não quer falar. Porque é um tabu. É, também, um monstro que está dormindo. Falar sobre esse assunto é trazer à tona uma dor que você não aguenta sentir. Depois, a sociedade não fala porque é um assunto desconfortável. Cheio de pontas desagradáveis. Senti, quando publiquei o livro, que mexi aí. As pessoas não querem falar sobre o assunto, é desagradável. Resolver um problema dessa dimensão passa, sobretudo, por debater profundamente essa questão da violência contra a mulher.
• Certezas iniciais
Só começo um livro quando sei como vai acabar. Sei o começo e sei o fim. Nunca mudei. Pode ser que no futuro aconteça. Em todos os livros que escrevi até agora, a partida e a chegada eu sabia. O resto pode ficar um pouco sem saber, vai se desenvolvendo. Mas esses dois pontos acho importante de o ficcionista dominar, acho que isso dá um norte. No meu caso, pelo menos.
• Vingança
No Mulheres empilhadas, tinha a questão da realidade que eu queria trabalhar. Mas queria, também, que houvesse espaço para a vingança. A vingança não poderia ser no plano da realidade, porque achava que, dessa forma, se a protagonista tomasse consciência da violência e fosse como um matador de saias, como a personagem da Uma Thurman no filme do Tarantino [Kill Bill], aí estaria transformando essa mulher em um assassino do mesmo tipo que mata as mulheres. Então, queria que a violência fosse uma fábula. Quase que um canal para extravasar, uma sublimação dessa violência. Desse desejo de vingança. Uma sublimação do desejo de vingança. Aí, as coisas foram se juntando na pesquisa. Queria que acontecesse no Acre, porque o Acre me dava vários tipos de mulheres: a da floresta, dos povos ribeirinhos, das comunidades indígenas, da comunidade rural. Uma coisa foi levando a outra, aí consegui criar — buscando nas próprias lendas amazônicas — uma realidade imaginária de guerreiras vingadoras que saem atrás dos homens que escapam impunes dos tribunais e fazem rituais de canibalismo com eles. Elas se vingam, matam, se divertem muito com os atos. Era uma estrutura que permitia, também, uma espécie de contrapeso à violência. Um olhar mais bem-humorado. O contrapeso da realidade. Fiquei muito feliz de conseguir. Foi uma matemática. No começo, estava com muita dificuldade de estruturar o romance. Precisei de uma estrutura tripartida para dar conta de tudo isso.
“O que acho interessante, na vida do escritor, é justamente a liberdade.”
• Lugar de fala
Lugar de fala significa empobrecer a literatura. A literatura é um espaço de liberdade, não pode haver esse tipo de preocupação. O que significa ter lugar de fala na literatura? Que só posso escrever sobre o que vivo? Só sobre a minha experiência? Isso é de uma pobreza… É como se você colocasse toda sua imaginação numa caixinha. “Tem que ser assim agora, porque tem que ter o lugar de fala. Você não tem autoridade pra falar isso…” Eu, como ficcionista, tenho autoridade para falar sobre o que quiser. Assim como os críticos têm liberdade para odiar meu livro e achar que fiz muito mal. Que não convenço. Que os personagens que escrevi não têm densidade. Mas tenho que ter essa liberdade. Literatura e lugar de fala são duas coisas incompatíveis. Não dou a menor bola para essa discussão no âmbito da literatura. Não gasto nem tempo pensando nisso.
• Leitora experiente
Com o tempo, as exigências enquanto leitora mudam. Vou fazer 60 anos, não tenho mais todo tempo do mundo. Sempre gostei muito de jovens autores, gosto ainda, mas hoje tento correr atrás dos clássicos que ainda não li. Neste momento, estou lendo Berlin Alexanderplatz, do Alfred Döblin. É um livro, na minha opinião, tão importante quanto Ulysses, do James Joyce. Ele desestrutura e reinventa o estilo na língua alemã da mesma maneira que Céline fez no francês e o Joyce, no inglês. Hoje, minha preocupação é esta: o que ainda não li, que é cânone? Não quero morrer sem ler essas coisas. Não quero ir embora sem ter lido esses livros. Há dez anos, ou 20, evidentemente estava muito mais interessada em novidades. Agora, tem uns escritores que não consigo deixar de ler nunca. Toda vez que sai um Don DeLillo, leio. Toda vez que sai um Coetzee, leio. Tem autores que acompanho. Na época em que o Philip Roth estava vivo, também acompanhava. Então tem os escritores que acompanho, os cânones que não li e fico indo atrás. Por exemplo, não tinha lido Guerra e paz. Fui ler no ano passado. Depois de ler, você diz: “Bom, passar por essa vida sem ler Guerra e paz é só deixar de lado o principal”. Hoje em dia, então, minha preocupação tem sido ir atrás desses buracos na minha formação.