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Milton Hatoum

A quinta edição do Paiol 2006 contou com a presença de escritor Milton Hatoum

O quinto encontro do projeto Paiol Literário — realizado em parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — trouxe em outubro a Curitiba o escritor amazonense Milton Hatoum. Sob mediação do escritor e jornalista José Castello, foram discutidos a importância da leitura, a formação dos leitores, influências literárias, a construção de sua obra, política, educação, entre outros assuntos. Acompanhe aqui alguns momentos do encontro realizado no Teatro Paiol.

Conhecimento do mundo
A literatura é uma forma de conhecimento do mundo. E o mundo que se conhece é o das relações humanas. A verdade da literatura não é uma verdade. Quando você lê um romance, você encontra nele uma verdade que não é puramente ontológica. Mas é a verdade das relações humanas. Ali existe um conteúdo de verdade, conflitos e dramas traduzidos pela linguagem. Existe, por exemplo, uma fazenda chamada Curralinho, em Minas Gerais, onde Riobaldo encontra o seu primeiro amor. Existe uma descrição de São Petersburgo, num romance russo, ou de uma cidade hipotética, onde existia uma igrejinha famosa, a igrejinha de Proust, em Combray. Então, a literatura é uma forma de acesso ao conhecimento do mundo traduzido pela linguagem. O mundo das relações humanas, conflituosas. Porque a literatura não resolve nada. Mas é também uma possibilidade de se conhecer geografias imaginárias, muitas vezes construídas a partir de uma experiência real. Eu também fui alimentado por tudo isso.

Cantor manauara
Saí de Manaus muito jovem. Quase um curumim, um piá. Tinha 15 anos. Não foi fácil deixar aquele grande útero que era a minha cidade. A vida noturna em Manaus. Eu era cantor. Cantava de tudo: música italiana, The Beatles, bossa nova. Cantava em bailes de debutantes, no Sheik Clube. Um pouco do Omar, personagem de Dois irmãos, sou eu mesmo. Mas, na juventude, a gente sempre acha que pode tudo. Eu achava que podia ser cantor. Não estudei música. Tocava pandeiro. Pandeiro e nada é a mesma coisa. Quem não toca nada toca pandeiro. Na verdade, quem toca pandeiro conhece percussão. Eu não conhecia nada. Fazia segunda, terceira voz, essas coisas que se aprendem no banheiro, cantando. Cantava na primeira banda elétrica de Manaus, a Stepping Stones Jr. “Stepping stones” era uma música horrível do The Monkees — um conjunto horrível também, que meus amigos adoravam. Eu preferia The Doors, Emerson, Lake & Palmer… Enfim, eu vivia essa vida amalucada, numa cidade muito pequena. A gente fazia serenatas para as namoradas dos amigos. A Manaus de 1967, 1966, era uma cidade de 300 mil habitantes.

Escola politizada
E tinha a escola. Tinha a farra e a vida noturna, mas tinha a escola, o Colégio Estadual do Amazonas, o antigo Pedro II, onde li os primeiros livros importantes da minha vida. Depois, em Brasília, parece que houve uma cisão. Minha vida se dividiu entre esse paraíso amazônico e a vida em Brasília, muito pesada. Caí num colégio politizado, o Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília, de 350 alunos e 60 professores. Um colégio de elite, infelizmente fechado pelo regime militar. Foi um laboratório. Meu primeiro Sartre, li nesse colégio. Depois muita literatura brasileira, estrangeira também. Teatro. Foi uma referência muito forte na minha vida. Em Brasília, enfim, eu me envolvi com o movimento estudantil. Pichei muitos muros contra o regime militar. Ainda gostaria de pichar, às vezes. Não perdi a verve da política.

Brasil descoberto
Descobri o Brasil em Manaus, quando li um conto do Machado de Assis chamado A parasita azul. E depois, no Colégio Estadual, quando li trechos de Os sertões. E li Fogo morto e Vidas secas, também. Descobri que o Brasil e o meu mundo não se restringiam ao meu lugar, à minha paisagem, às pessoas com as quais convivia. Existiam outros mundos. E me interessei muito por isso. É incrível que existam tantas coisas diferentes. Esse foi o primeiro impacto. Também li alguma coisa do Erico Verissimo.

Encontro com Flaubert
Meu primeiro contato com a literatura estrangeira se deu por meio de uma professora, mulher do vice-cônsul da França em Manaus, de quem sinto saudades até hoje: Madame Liberalina. Eu tinha 12 anos, e ela, 80. Era quase um ídolo para mim. A casa dela era muito afrancesada; a biblioteca e o jardim, esplêndidos. Eram as mil e uma noites manauaras. E ela foi muito paciente comigo. Traduzia algumas coisas do Flaubert, do Maupassant. Eu pensei: “Vou aprender francês para ler esses caras”. […] O conto Um coração simples, do Flaubert, para mim, ainda menino, foi impactante. A Madame Liberalina me perguntava: “Você percebe como o narrador se esconde nesse texto?”. Eu não percebia nada. Não podia perceber. Mas percebi que as relações sociais da França de 1870 se repetiam na Manaus de 1960. É como se o Brasil da segunda metade do século 20 estivesse ainda vivendo o descompasso de uma França do século 19. E entrei naquele mundo, sobretudo no mundo social do Flaubert. Nele, há uma dimensão simbólica importante, há mil recursos estilísticos. A frase dele é muito trabalhada. Aparentemente, é simples. Mas é uma simplicidade que nos engana, sempre. Um pouco como a poesia do Manuel Bandeira. Você pensa que é simples, mas não é. […] Então, a literatura me trouxe outros mundos. O mundo, para mim, sem a literatura, viraria algo muito chato. Uma coisa sem sentido. Hoje, sem a literatura, não sei o que eu faria. Não faria nada. Seria um bestalhão.

A literatura é uma forma de conhecimento do mundo. E o mundo que se conhece é o das relações humanas. A verdade da literatura não é uma verdade. Quando você lê um romance, você encontra nele uma verdade que não é puramente ontológica. Mas é a verdade das relações humanas.

Formação
Minha mãe, um dia, comprou as obras completas do Machado de Assis. Eram aquelas edições de capa dura dos anos 50. Foi a primeira coisa que li. Li as Histórias da meia-noite, porque achava que tinha algo a ver com suspense. E não parei mais de ler. […] Minha formação, porém, se deu na escola, que é onde se dá a formação mais sólida dos escritores. Quando um escritor europeu, ou mesmo americano, passa pela escola, tem ali uma formação consistente. Ele pode ser um autodidata, pode ter um pai ou um avô leitor ou escritor, mas a escola é fundamental. Não só para a formação de um escritor, mas para a formação de um bom leitor. É difícil formar um bom leitor. E você não o forma numa escola precária.

Trens e bibliotecas
No Brasil, temos poucas bibliotecas. Que muitas vezes não renovam seu acervo. De um modo geral, a leitura e os livros são caros no Brasil. E o poder aquisitivo do brasileiro é baixo. Tudo é contra a leitura no Brasil. […] Quando você vai a uma biblioteca na Europa, ela está cheia de gente em silêncio, lendo. Aqui, não há uma tradição de leitura. E talvez isso seja uma falha do nosso processo histórico, mesmo. Você anda de ônibus ou entra num avião no Brasil e ninguém está lendo. As pessoas não lêem. E nos trens? Não há trens. O Brasil optou pela rodovia. É uma insanidade. Em muitas cidades de porte médio no Brasil, não há uma boa livraria. Incrível. Você vai a uma cidadezinha norte-americana como Berklee, de 50 mil habitantes, e encontra dez, 12 grandes livrarias. Então, falta alguma coisa.

Relutância
Nunca tive a certeza de que devia publicar um de meus livros. Sempre fui movido pela insegurança. Até esses prêmios que ganhei, às vezes, eu acho que… Loucura, nem vou falar. Mas relutei muito. Antes de publicar meu primeiro livro, entreguei-o para alguns amigos lerem. Para o Davi Arrigucci Jr., que escreveu a orelha. É um grande crítico, foi meu professor na FAU. Lá, eu assistia também às aulas da Irlemar Chiampi e do João Alexandre Barbosa, que faleceu recentemente. Também entreguei o livro para o Raduan Nassar. Telefonei para ele, na maior cara-de-pau, e disse: “Você não me conhece. Tenho um manuscrito e gostaria que você o lesse. Prometo passar na sua casa e não falar de literatura. Só de jardinagem, galinhas e não sei mais o quê”. E ele: “Se você promete, então venha, deixe seu manuscrito e vá embora”. Foi curto e grosso. Mas fiquei duas horas falando com ele. E depois, ele também leu o Dois irmãos. Hoje, acho que ele não lê, de fato. Não está mais interessado. Mas fiquei amigo dele. A gente troca algumas idéias.

Se você começa a escrever um texto sem ter experiência de vida, ou com uma experiência de leitura muito limitada, vai precisar de muito talento, garra e alguma coisa mais. Porque a vida conta muito para quem escreve.

Distância para escrever
Comecei a escrever Relato… sem saber onde aquilo ia dar. Como sempre, eu sabia o começo e o fim do livro. É uma obsessão minha. Geralmente, começo pelo fim. E eu sabia onde terminava. Comecei a escrever, portanto, embaralhando aquelas memórias. Tinha mais ou menos uma idéia dos seus personagens. Manaus estava muito longe temporalmente, espacialmente. Então eu podia criar com a maior liberdade. Isso me ajudou muito. Fui me distanciando de Manaus: morei em Brasília, São Paulo e Santos, depois na Espanha, na França. Fiquei muito longe e a distância ajudou. Quando comecei a sonhar em francês, eu disse: “Agora tenho que voltar. Se não, não volto mais”. Comecei a escrever Relato… na Europa e não sabia se ia terminá-lo. Comecei-o na França e o terminei em 1987, em Manaus. Levei cinco anos escrevendo aquele livro.

Fracassos
A história de um escritor é a história de um fracasso. Não há nada mais humano do que fracassar. Você fracassa no amor; às vezes, em momentos decisivos não só do amor. Às vezes, fracassa quando vai votar. Às vezes, você é caluniado. Mas não fracassa quando não responde às calúnias. O silêncio é fundamental.

A pressão do mercado
A pressão do mercado cresceu exponencialmente. É importante também falar da vaidade das pessoas, porque este é um mundo de talk shows, onde se explora muito a imagem de todos. Nesse mundo, o microfone do escritor é low power, bem baixo, para poucos. O escritor não é uma figura midiática. Já foi, num certo momento, na época de Sartre. Acho que existe, sim, uma pressão muito grande do mercado. Mas nunca fui pressionado para publicar. Devo ser honesto: meus editores nunca me pressionaram. Os leitores também não me pressionam. Porque, se eu publicar qualquer coisa só por publicar, vou perdê-los. Não são bobos. Um bom leitor sabe quando um livro é “matado”, quando é pueril, quando a linguagem não foi trabalhada. Porque os meus leitores não são leitores de auto-ajuda. Quem lê um livro de auto-ajuda não vai ler o meu romance, disso tenho absoluta certeza. Agora, há também escritores que publicam muito por necessidade, para sobreviver, porque vivem disso. Desde o século 19. Balzac fazia isso. Flaubert era um homem rico, que vivia no meio das vacas, na província, gastando sua herança. Não precisava morar em Paris, gastava pouco. Quando viajava, ia ao Oriente. Mas não tinha a necessidade de ganhar dinheiro para viver. Há escritores que têm essa sorte: só publicam o que gostam.

Falta de musas
Os amazonenses são um pouco sacanas, gostam de brincar. Um dia desses, um tio meu me falou: “Em Manaus, dizem que o Ibama está lhe caçando, por causa dos Jabutis”. O Jabuti é um símbolo da paciência, da obstinação, talvez. E, também, para que pressa? Acredito em talento, não em vocação. Não gosto daquela coisa de “ah, a criação literária…”. Como se ela fosse uma obra divina e você vivesse cercado por musas. Às vezes, é até bom ser inspirado por elas. Mas as musas estão em falta, ultimamente. Você tem que trabalhar mesmo. Tem que ter talento. E o talento está diretamente relacionado ao trabalho. É aquilo que Baudelaire dizia: “A inspiração é irmã do trabalho”. Do trabalho cotidiano. O trabalho com a linguagem é uma coisa necessária para quem quer escrever. Escolhi um gênero que exige paciência. É quase inacreditável que você leve cinco anos para escrever um romance e uma pessoa o leia em cinco horas. É, de fato, uma opção flaubertiana. Flaubert não escreveu muito, se comparado com seus contemporâneos. Mas há escritores que escrevem muito pouco e são bons e grandes escritores. Não é o meu caso, é bom frisar. Mas é o caso do Raduan e do Juan Rulfo.

Rotina de escritor
Quando eu dava aula era um caos. Eu escrevia nos momentos mais improváveis. Muitas vezes, só à noite. Ou muito cedo. Eu não podia escrever de enfiada. Mas me disciplinei. Era uma das coisas que eu mais queria. Desde que acabei Dois irmãos, em São Paulo, acordo cedo e corrijo o que escrevi na noite anterior. De manhã, você está com a pilha nova, vê as barbaridades que escreveu um dia antes. E corrige tudo, passa a limpo. Aí, à noite, volta às barbaridades… E vai avançando aos poucos. Eu leio durante a tarde. Muitos escritores dizem que, enquanto escrevem, não lêem. Eu não poderia ficar cinco anos sem ler: enlouqueceria. Leio muito quando escrevo. Paro de escrever, às vezes, quando não estou conseguindo nada. Leio e releio certas coisas. Uma coisinha aqui, outra ali. Faço minhas crônicas para a revista Entrelivros, para a Terra Magazine. Vou tentando manter uma disciplina.

Otimismo e sobrevivência
A cota de otimismo que existe nos meus livros cabe ao narrador. À sobrevivência do narrador e ao seu trabalho com a memória. Só percebi isso quando estava no meio de Cinzas do norte. Novamente, o meu narrador estava escrevendo sobre o passado. Isso tem a ver com a idéia da literatura como uma evocação da memória, uma reescrita do passado, uma invenção do passado, um acerto de contas com o passado. Tem a ver com trazer o passado para o presente. Mas não um passado morto: um passado que vibre no presente, que repercuta de uma maneira tensa. Isso também tem a ver com a idéia do narrador que acaba sozinho. Que nos remete um pouco à história do próprio romancista, aquele que se isola para escrever. É uma atividade solitária, às vezes cansativa. Tantas coisas acontecendo e você lá, num quarto, a portas fechadas, trabalhando durante anos. E se pergunta: “Mas que diabo estou fazendo aqui? Tanta coisa acontecendo e eu nessa solidão”. Parece um convento. Uma castidade. É a solidão do ato de ler também.

Qual é a história clássica do romance? É a trajetória de um indivíduo em busca de um sentido para essa vida. Só que não o encontra. Então, o romance é uma tentativa de entender o que deu errado na vida.

Literatura ideológica
A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve. Mas os intelectuais devem se posicionar de forma honesta em relação a elas. É assustador quando vejo algumas pessoas defenderem a política do Bush, por exemplo. Até no Brasil tem disso. Nos Estados Unidos, nem se fala. Há os intelectuais ligados ao Pentágono, aos neoconservadores. A própria Condoleezza Rice veio de Stanford. Lá, eles têm uma elite intelectual de ultradireita. Mas aqui, quando vejo um intelectual se entusiasmar com a política do Bush, acho uma falta de compostura. Porque, para os americanos, um brasileiro defender o Bush não significa nada. Não estão nem aí para o que se diz aqui. Estão mais preocupados em monitorar o que acontece na América Latina, para que lado os governos estão indo. […] Mas acho que o alcance ideológico da literatura, no fundo, é um pouco isso: se ela tomar partido, enfraquece.

A política e a celebração da vida
Grande sertão: veredas, que é um texto de um lirismo extraordinário, fala também da violência brasileira e do sertão, dos grupos armados, dos grupos políticos entre aspas, dos jagunços e dos acertos de contas, da barbárie e também da hierarquia dentro da barbárie. Livros como Vidas secas também falam disso. E, no fim, não deixam de ser uma celebração da vida. Você vai falar de quê? Dos dramas humanos. A questão é como falar disso, como falar sobre certas contradições. Porque, quando a literatura toma partido, ela sofre algum prejuízo estético. Mas há, por exemplo, um romance político como Conversa na catedral, de Vargas Llosa. Há Cem anos de solidão, que trabalha com essas catástrofes políticas, com a natureza da América Latina, como se fossem ciclos recorrentes de tragédias sem fim, não só colombianas. O próprio Pedro Páramo, do Rulfo, fala da revolução mexicana de uma maneira muito singular, por meio de fantasmagorias. Há um morto que fala, personagens mortos que reaparecem. Há a brutalidade de Pedro Páramo, esse patriarca autoritário. Tudo isso deve ser muito bem trabalhado pela linguagem. Tive esse cuidado no Cinzas…, porque é um livro que tem um fundo político, dos anos 60 e 70. Não queria que fosse um romance político, muito menos um que falasse ostensivamente do regime militar. Mas ele não poderia não falar, silenciar sobre isso. Porque Manaus, nos anos 70, foi praticamente destruída por um coronel prefeito. Eu me inspirei nessa figura para criar um personagem.

O tempo e alguns conselhos
Se eu tivesse mais tempo, leria mais. Depois que você cruza a linha do equador da vida, não tem mais tempo para ler tudo que chega às suas mãos. Se eu fosse ler tudo, não faria mais nada. Não teria mais condições de trabalhar e passaria fome. Também tenho muito pouca coisa a dizer. Não sou um bom conselheiro. Só posso falar da minha experiência. Temos que passar, primeiro, pela experiência da vida e, depois, pela experiência do leitor. Se você começa a escrever um texto sem ter experiência de vida, ou com uma experiência de leitura muito limitada, vai precisar de muito talento, garra e alguma coisa mais. Porque a vida conta muito para quem escreve. E a leitura não é inseparável da vida, do cotidiano, da experiência humana, que é tão rica. Os amores, os desamores, os fracassos, as memórias. Aos 40 anos, você já tem um passado; aos 20, seu passado ainda não foi maturado. Você tem que deixar o peixe pegar gosto. A caldeirada tem que ser bem curtida. Minha experiência foi essa. Demorei muito para publicar. Terminei meu primeiro livro aos 35 anos. Não me arrependo. Mas cada pessoa tem seu ritmo, suas expectativas, sua ânsia. Tudo depende muito da ansiedade de cada um. Não sou muito ansioso para terminar, publicar. Ao contrário, fico deprimido quando termino alguma coisa. Digo: “E, agora, o que vou fazer?”. Se eu pudesse não terminar… E tudo, também, vai caminhando para um silêncio… Aquilo que vibra muito vai se apagando. Suas ilusões vão se perdendo. Sua serenidade cresce num ritmo vertiginoso. De fato, isso eu herdei do meu pai. Uma certa serenidade, uma paciência com o mundo. É fundamental para viver e sobreviver. Há tantas tragédias, loucuras, crueldades e absurdos por toda a parte, tantas mentiras, que você tem que manter um pouco de serenidade. Para os jovens, posso dizer o seguinte: às vezes, você se deixa levar pela vaidade. E, às vezes, você se deprime devido a críticas negativas. Então eu diria: não se envaideçam tanto e não se deprimam tanto.

Trecho de Relato… relacionado à fala de Hatoum, abaixo.
“Indaguei-lhe, sem mais nem menos, se andava em busca do Paraíso, de algum paraíso terrestre.

— Não é uma pergunta que se faz a um simples sirgueiro — contestou com a placidez de sempre; e, caminhando até o balcão, acrescentou: — O paraíso neste mundo se encontra no dorso dos alazães, nas páginas de alguns livros, e entre os seis de uma mulher.”

Quando um escritor europeu, ou mesmo americano, passa pela escola, tem ali uma formação consistente. Ele pode ser um autodidata, pode ter um pai ou um avô leitor ou escritor, mas a escola é fundamental. Não só para a formação de um escritor, mas para a formação de um bom leitor. É difícil formar um bom leitor. E você não o forma numa escola precária.

Existe o paraíso?
Todos os meus paraísos são paraísos perdidos. É o que acha a personagem deste trecho de Relato… Mas Flaubert agradece, porque é uma citação dele. Confesso a vocês. Mas fica entre nós. Isso o Rascunho não pode publicar. É claro que pode. Isso é uma carta do Flaubert. E eu a achei tão bonita, que coube na voz da minha personagem. Porque a gente se apropria de muitas coisas, não é? Em Cinzas…, faz-se um comentário: “Nada é puro, autêntico, original”. Você tem um passado literário. Você lê livros para também se apropriar deles, de alguma forma. Há tantas coisas boas nos livros, que você não resiste: vai lá e pinça. Mete a mão. De leve. É o único roubo que não dá cadeia. Porque são frases já adaptadas, que aparecem em outro contexto. Mas, na minha idade, já não acredito em paraíso nenhum. Nem na Amazônia, que está sendo destruída. É terrível. Em poucos anos, tudo aquilo será destruído.

Mulheres nos livros
As figuras femininas na literatura têm a ver com a minha vida. Com minhas leituras e também com a posição da mulher numa família. Primeiro, numa família do norte; depois, numa família mediterrânea, que pode ser árabe, judia, italiana, espanhola. Quando escrevi Dois irmãos, eu morava num bairro de São Paulo habitado por muitos judeus. E várias mães judias me perguntavam: “Mas como você descobriu tal história da minha família?”. Eu perguntava: “Como? Isso aconteceu?”. Mas é claro. São sociedades e culturas muito parecidas, onde as mães desempenham papéis centralizadores. A relação da mãe com os filhos é quase um arquétipo. A mãe é uma figura simbólica forte. Está também nas Mil e uma noites. Xerazade é uma figura poderosa, capaz de convencer pela palavra. Enfim, também há grandes personagens da literatura que me influenciaram. No romance francês do século 19. Figuras femininas fortes. Não se iludam: Madame Bovary não é tão fraca e submissa quanto pensam. Uma mulher adúltera, naquela época e naquele lugar, não pode ser tão fraca e submissa. Aliás, Flaubert quase foi preso por causa disso. Foi processado.

A sobrevivência do escritor
Não há segredo e não há milagre. Com Dois irmãos, tive sorte. Também não acredito muito em sorte. Houve uma confluência de coisas que aconteceram. Coisas improváveis. Aconteceu que o livro começou a ser vendido, a ser adotado em escolas e universidades, e conquistou um público leitor considerável. Isso me deu possibilidades de viver dele. Ao mesmo tempo, tive a sorte de ter uma agente, na Inglaterra, que vendeu o livro para nove países — que pagam direitos autorais, adiantamentos. Pagam pouco. Para um brasileiro desconhecido. Para mim, pouco é muito. Mas vivo modestamente. Dá para viver. Lembrem-se de que fui professor durante muito tempo, e vivia do meu salário. Há professores aqui? Então: vocês estão vivos, não estão? Viu como vocês sobrevivem? E não são milionários. São professores obstinados, que gostam da sua profissão, que trabalham pelo Brasil, pela educação do povo brasileiro. E são mal remunerados. Sobretudo na universidade e na escola pública. São Paulo, o estado mais rico do Brasil, paga um salário vergonhoso aos seus professores. Por isso, está lá embaixo no exame do Enem. Ainda trabalho como professor, eventualmente. Dou palestras, cursos. Escrevo crônicas. Há os direitos autorais. Mas não sei até quando vai durar. Daqui a um ano, tudo pode acabar. Estou prevenido. Ano que vem, vou morar um tempo nos Estados Unidos. As universidades americanas pagam bem. Farei essa viagem para poder sobreviver. Não é fácil. Se eu fosse um escritor europeu ou americano, com um livro premiado, estaria vivendo muito bem, para o resto da vida. Mas também acho que não se deve esperar muito da literatura. Se você quiser ser rico, não pense em ser escritor. Vá ser publicitário, empresário e pronto. Estou falando na maior honestidade. No Brasil, poucos escritores verdadeiros ganharam muito dinheiro. Jorge Amado viveu bem. Rubem Fonseca vive bem. Mas trabalhou, durante muito tempo. Geralmente a literatura é uma atividade paralela. Eu consegui que ela virasse uma atividade central. Muitas outras coisas se tornaram paralelas na minha vida. Mas depois de muito tempo e devido a todo um conjunto de circunstâncias favoráveis. Mas não sei quanto tempo dura. Tenho meus gastos, gosto de viver bem. Tomo meus vinhos. A vida em São Paulo é a mais cara da América Latina. Mais cara que em Nova York, sem ter o movimento cultural de lá. Então, você tem que se segurar.

Nunca fui pressionado para publicar. Devo ser honesto: meus editores nunca me pressionaram. Os leitores também não me pressionam. Porque, se eu publicar qualquer coisa só por publicar, vou perdê-los. Não são bobos.

Jabuti ao sol
Eu não esperava por nenhum dos Jabutis que ganhei. Quando ganhei o primeiro, com Relato…, e me telefonaram, em Manaus, achei que fosse um trote. Prêmio? Foi algo inesperado. Melhor não esperar nada. […] Não vou esperar, não quero ganhar, não quero ser um colecionador de prêmios, quero ter bons leitores. E isso, o contato com o leitor nas escolas, nas universidades e num evento como este; o contato com os que de fato se interessam por literatura, isso, sim, é um grande prêmio. Mas gosto de prêmios. Só um louco não gostaria de ser contemplado com um prêmio tão importante e tradicional quanto o Jabuti. E, agora, veio com um dinheirinho também. Melhorou: ficou um Jabuti reluzente. Não com pérolas, mas com um brilho. Um Jabuti ao sol. Au soleil.

Educação
A única coisa em que acredito é na educação. Na qualidade da educação pública no Brasil. Só acredito que o Brasil dará um salto qualitativo se acontecerem duas coisas. A primeira: uma maior distribuição de renda. É um absurdo esse país ser um dos mais desiguais do mundo sob o ponto de vista da distribuição de renda. A segunda: a melhoria da qualidade do ensino. Tem que melhorar. Mas, para isso, os professores têm que ganhar um salário digno. Não há milagre, não há outra perspectiva. O que o Cristovam Buarque dizia? Que tentaria dobrar o salário dos professores em quatro anos. Mas é tão complicado, porque isso depende do repasse de verbas aos municípios e aos estados, do controle dessa verba destinada à educação… Há desvio de verbas, há verbas mal-aplicadas. Mas, há nichos de experiências positivas, de escolas públicas que funcionam mesmo pagando salários muito baixos. Mas temos que melhorar as condições das bibliotecas públicas, das escolares. Têm que ser bibliotecas de verdade, e não salas para a diretora comemorar seu aniversário. Bibliotecas de fato, vivas. Tive o privilégio de estudar em boas escolas. Elas acabaram por causa da política do regime militar, que não investiu mais em ciências humanas. Orientou o ensino à tecnologia, barbarizou o salário dos professores. E está aí o senhor Jarbas Passarinho, escrevendo seus artigos. Como se fosse um arauto de quê? Agora o ACM e o PFL são arautos da ética? Que loucura é essa? Em que país a gente vive? Que passado eles têm para falar em ética e cobrá-la dos outros? Destruíram o ensino público.

Tentativa frustrada
Não conheço muitos livros que transmitam alguma mensagem de esperança. De esperança, talvez. Mas de felicidade e de bem viver, não. Ao contrário, os grandes livros trabalham com situações-limite. Assim, a obra de Dostoiévski. A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, uma das coisas mais terríveis da literatura. De fato, ela dramatiza a vida. Mas é uma tentativa frustrada. Qual é a história clássica do romance? É a trajetória de um indivíduo em busca de um sentido para essa vida. Só que não o encontra. Então, o romance é uma tentativa de entender o que deu errado na vida. É claro que não queremos isso para a nossa. Não quero que aconteça comigo o que acontece com meus personagens. Por outro lado, a história do romance é essa: é uma cisão na sociedade burguesa, é a crise do individualismo. Quando o romancista olha para o horizonte, o que ele vê? A solidão. Então, é a história dessa solidão. Grande sertão é uma aula sobre romance. Porque, no fim, você descobre que a vida daquele jagunço que contou sua história, uma vida que foi tão colorida e vibrante, não deu certo. Ele foi um chefe guerreiro, um urutu branco, um grande líder. Mas o amor dele, o seu amor homossexual por Diadorim, não deu certo. Se tivesse dado, não seria um romance. Seria outra coisa. Às vezes, algum romance tem um final mais edificante, menos dramático. De modo geral, como Borges dizia, a felicidade nos é dada de graça, mas quando se trata de literatura, nós temos que ir atrás das desgraças. Porque a felicidade e o bem-estar não causam conflitos. O conflito existe no trauma, no sofrimento e na dor, que são elementos da literatura. Na traição, no desespero e na violência, elementos de tramas narrativas. Em qualquer literatura existe isso. Na Carta ao pai, de Kafka. Você pode dizer: “Bom, será que é verdadeira? Será que o pai dele foi isso?”. Muito do que Kafka escreveu, sobre esse mundo opressivo, violento, burocrático, administrado e vigiado, veio da relação dele com o pai. E Carta ao pai é terrível. Eu não gostaria de ter um pai como aquele. Coitado daquele moço. Era só sofrimento. Um pai que proíbe o filho de se casar com a namorada porque ela não é da classe social dele. Que o faz sofrer porque queria que ele fosse comerciante. Imagina: ser escritor! É um drama humano. O leitor percebe quando um drama, de alguma forma, faz parte de sua vida, mesmo que ele não tenha vivido esse drama. Ele acredita na situação. Às vezes, sofre com os personagens, ou ri com eles, porque há tantos subgêneros, tantas variações. Há a comicidade, há o riso. Talvez por isso, os livros de auto-ajuda façam tanto sucesso. Porque prometem muitas coisas. Porque nosso mundo é o mundo do desamparo. Por que o mundo está tão religioso? Porque as pessoas estão desamparadas. Então elas buscam algum amparo, algum tipo de consolo na religião, na auto-ajuda. Toda a sociedade precisa disso.

Acredito em talento, não em vocação. Não gosto daquela coisa de “ah, a criação literária…”. Como se ela fosse uma obra divina e você vivesse cercado por musas. […] Você tem que trabalhar mesmo. Tem que ter talento. E o talento está diretamente relacionado ao trabalho.

Um Brasil de trapaceiros
O Riobaldo é um personagem de grande dignidade. A obra machadiana, sim, está cheia de oportunistas, arrivistas, vigaristas. De mulheres que casam para subir socialmente. Mas o Osman Lins tem personagens de grande dignidade. Suas figuras femininas são maravilhosas. Alguns personagens de Clarice Lispector têm muita dignidade na sua loucura. Há muitos personagens trapaceiros na literatura brasileira, sim, mas não são todos. Pelo amor de Deus. Se fossem, seríamos o estereótipo da malandragem. Discordo totalmente quando falam que o povo brasileiro tem uma tendência à trapaça, ao jeitinho. É um insulto. Esse país não exporta bilhões graças à sua malandragem. É devido ao trabalho. As pessoas trabalham nos portos, na construção civil, nas fazendas, na agricultura. Os empresários trabalham. Tem empresário honesto, que paga imposto. É um perigo generalizar a sociedade brasileira, por causa de alguns políticos. Pode ser uma coisa perigosa essa falta de estima e de crença. Há regiões no Brasil dignas de qualquer país de primeiro mundo. E eu não queria que meu país invadisse outro e matasse 600 mil pessoas, como aconteceu no Iraque. Sentiria vergonha se meu país fizesse isso com a Bolívia ou com a Venezuela. Meus amigos americanos sentem vergonha de seu governo. E com muita razão. O que me envergonha é a mesma coisa que o MV Bill falou na Flip do ano passado: no Brasil, morrem 40 mil jovens por ano, na sua maioria negros e mulatos, vítimas da violência. E nos falta indignação para combater isso. Para combater o trabalho escravo, infantil. Mas dizer que somos uma sociedade de pilantras? Não aceito. Meus amigos, as pessoas que conheço, meus leitores, todos trabalham. A pessoa que trabalha na minha casa sai do fim do mundo em São Paulo, coitada. Viaja três horas para chegar no serviço. Eu me sinto envergonhado de ter essa pessoa na minha casa. Ela deveria ganhar um salário digno, ter INSS, hospitais. Pelo amor de Deus. Agora: há vigaristas na nossa literatura. Malandros. Macunaíma não é um vigarista. É um brasileiro confuso. De identidade múltipla. Multifacetado. Que não é sem caráter. É sem nenhum caráter. Ele é muitos. A idéia do Mário de Andrade não era falar da malandragem. Era falar desse Brasil múltiplo, mestiço, que somos. Perguntaram-me se eu me sentia um amazonense deslocado. Sou brasileiro antes de ser amazonense. Por isso, não gosto muito do regionalismo. José Castello é um carioca que foi adotado por Curitiba. Ele pode ser muitos. Por isso, a epígrafe do Cinzas… é aquela, do Guimarães Rosa: “Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares”. Posso me sentir curitibano, paranaense, gaúcho, nordestino. Que loucura é essa de dizer “sou daqui”?

Experiências
Eu estou aí para a vida. A minha geração experimentou todo tipo de experiência. Nem me pergunte quais. […] Eu não fujo da experiência humana. Nem da realidade. Da mais crua e violenta realidade. Isso não só é importante para a minha literatura, mas também para a minha vida. Porque, mesmo que eu não escreva livros, terei uma experiência de vida. Não sou um caçador de experiências. O importante na vida e na literatura é o imprevisível. Às vezes, o inesperado é mais emocionante do que aquilo que é programado, desejado. E quando o inesperado não acontece, você o imagina. Quantas situações não imaginei, quantas não imaginamos todos os dias? Esse conflito na literatura só faz sentido se for resolvido pela linguagem. No fim de tudo, é a linguagem que vai dar sentido, densidade e espessura à sua experiência.

Líbano
Pensei em escrever um pequeno livro sobre o meu pai. Sobretudo depois desse ataque criminoso contra o Líbano, que destruiu o país, que matou mais de 1,2 mil libaneses. Escrevi uma crônica sobre isso. Fiquei chocado. Felizmente, meu pai não está vivo. Ele morreu em 1998. Ele não suportaria ver um ato tão violento, tão brutal contra a população civil de um país. Há muitos anos, desde que viajei com ele ao Líbano, em 1992, penso em escrever sobre meu pai.

Manaus e a geração shopping center
Morei em Manaus de 1984 a 1999, e me envolvi muito com a cidade. Ela continua a ser destruída e reconstruída o tempo todo. E eu achava que a cidade devia ser uma personagem. […] Era uma necessidade minha, trabalhar com a cidade. Mas fui a uma faculdade em Manaus e um jovem me perguntou onde ficava tal praça. Ele nem conhecia mais a sua cidade. Falei: “Vá direto por essa rua, até o fim, dobre a esquerda e depois continue. Perto do rio, você encontra esse lugar, a Ilha de São Vicente”. Hoje, esse é um exemplo de relação com uma cidade. A geração shopping center só vai conhecer o shopping center. Será difícil para ela escrever sobre sua cidade. Só conheci um shopping center aos 22 anos. Não sabia o que era shopping, muito menos televisão. Na minha infância, televisão não existia. A experiência oral, desses contadores de histórias, a experiência de vivenciar a cidade, é muito rica para quem quer escrever.

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