Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

Michel Laub

A segunda edição do Paiol 2007 contou com a presença de Michel Laub

Michel Laub foi o segundo convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado graças a uma parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, formulada pelo escritor e jornalista José Castello, mediador dos encontros, Laub dissecou seus romances e falou sobre incentivo à leitura, dramas adolescentes, futebol, jornalismo e crítica literária, entre outros temas. Confira alguns momentos do bate-papo.

Nasdaq e Shakespeare
Eu tinha um amigo que dizia que toda a obra de Shakespeare não vale um ponto no índice Nasdaq. Claro que é um exagero. Mas também acho que a literatura — não estou falando de livros e idéias, mas de ficção e poesia — tem muito pouca conseqüência no mundo em que a gente vive. Isso no sentido coletivo, de mudar a maneira como as pessoas pensam e se comportam coletivamente. É claro que, em um sentido individual, a literatura é muito importante. Não só porque muitos livros mudam a maneira como pensamos. Não tenho dúvida de que boa parte da minha vida é pautada pelas coisas que li. Mas também porque a literatura — para quem escreve ou é um leitor regular — acaba se transformando numa espécie de convenção, que faz com que a vida dessas pessoas seja outra. Uma vida diferente da que teriam se não houvesse a literatura. Elas passam a fazer parte do mundo literário, passam a ter referências literárias. A maneira como pensam e falam, muitas vezes, traz ecos das coisas que leram. A literatura é a grande matriz das idéias que elas têm no seu dia-a-dia.

Expressão e aceitação
Como sou um escritor, minha vida toda é voltada, de alguma maneira, para a literatura. Pessoalmente, acho que todo mundo que escreve o faz um pouco por uma necessidade de expressão — e por uma necessidade de aceitação, também. Não dá para ser hipócrita e dizer que não tenho essa necessidade de ser lido. As duas coisas, na verdade, se ligam. Você se expressa e, para conseguir se expressar, tem de ser ouvido. Se uma expressão não é ouvida, ela é vazia. É um nada. E você também quer ser lido porque a leitura que as pessoas fazem de você é uma leitura do seu interior, que se expressa por meio da literatura. Então a literatura é uma espécie de válvula de escape na nossa vida. Algo que acaba moldando nossa maneira de ser.

“Pessoalmente, acho que todo mundo que escreve o faz um pouco por uma necessidade de expressão — e por uma necessidade de aceitação, também. Não dá para ser hipócrita e dizer que não tenho essa necessidade de ser lido.”

Monteiro Lobato na tevê
Na infância, não fui um leitor regular, típico, de literatura. Lia muito gibi, muita porcaria. E isso também me formou, de certa maneira. Mas literatura mais séria — tirando aquela que a gente lê na escola, incluindo aí Machado de Assis e outros autores do gênero —, essa leitura que teve a ver com a minha formação de escritor só veio mais tarde, quando eu já tinha uns 20 e poucos anos. Então, na adolescência, também não fui um leitor típico. O que fez com que algumas coisas que normalmente causam muito impacto nos leitores adolescentes não tenham me causado tanto impacto assim. Muita gente diz que, na infância, Monteiro Lobato lhe causou um impacto de fabulação, de entender que existe um mundo de fantasia de que você pode participar. Para mim, isso não aconteceu. Conheci Monteiro Lobato por meio da televisão. Não foi uma experiência literária. Mas quando li, com 20 e poucos anos, a obra do Rubem Fonseca, tive a idéia de que a literatura podia ser “perigosa”, entre aspas. Ela tinha uma carga de intensidade muito mais próxima do meu dia-a-dia, do que a gente vivia nas grandes cidades. Uma carga muito maior do que a daquela literatura clássica que a gente lia na escola, daqueles romances mais literários, como os de José de Alencar.

A literatura menos literária
Fui levado a ler da maneira como a maioria das pessoas é levada. Um pouco por obrigação, para fazer aqueles resumos na escola. Isso dificilmente estimula o gosto de alguém pela leitura. Mas o Rubem Fonseca tinha aqueles seus personagens marginais, aquela aventura… A fome de ficção que eu tinha — e que, na época, era saciada pelo cinema — passou a ser saciada também pela literatura. Isso a partir de autores como Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll. Alguns autores americanos que tinham essa idéia da literatura mais próxima da vida, da literatura menos literária. Acho difícil que alguém no mundo atual, criado pela televisão, com a velocidade que as coisas têm hoje em dia, se impressione inicialmente com Proust e Joyce. Isso eu só fui ter bem mais tarde, no sentido mais técnico da coisa. Quando já escrevia e já tinha uma idéia do que era a carpintaria literária. No começo, eu queria essa literatura mais próxima da vida mesmo. E aí havia esses escritores da violência urbana, das relações amorosas mais intensas.

Internet e mercado aberto
A internet, para mim, é um instrumento. Sempre a vi como um instrumento. Não consigo vê-la como um meio que se autodefine como linguagem. É claro que, de alguma maneira, a gente se contamina com isso. Mas não se trata de um tipo de escrita que eu ache muito diferente da literária. Estou falando do que se aproveita literariamente na internet, e não de uma conversa de MSN ou coisa do gênero. […] O blog tem uma escrita fragmentária, evidentemente, mas é uma escrita que já existia antes da internet. Você pega autores da literatura marginal, por exemplo. Dos anos 70. Ou pega aquela mistura de prosa e poesia, que é o que o Joca Terron faz. Não é a internet que lhe trouxe isso. Ela só permitiu que vários autores que já faziam isso se expressassem num meio apropriado, porque muitas vezes não se conseguia publicar aquilo. Existia um mercado muito fechado para a literatura nova. Um mercado que a internet abriu. E as pessoas que primeiro acabaram se reunindo na internet foram os autores que escreviam mais ou menos nesse formato. Não é que as pessoas tenham se adaptado ao blog. Os primeiros que chamaram a atenção escrevendo em blogs — a Clarah Averbuck ou o Joca — já escreviam um pouco daquele jeito. Não creio que tenham começado a escrever daquela forma por causa do blog. Mas estou falando sem saber. Talvez eles pudessem responder melhor. É a impressão que eu tenho.

Geração múltipla
Conversas sobre geração são um pouco complicadas. Eu, por exemplo, sou sempre considerado um “novo escritor”. É a minha ocupação para o resto da vida. Foi o Nelson de Oliveira quem falou que, antigamente, o escritor novo se transformava em um escritor consagrado. Hoje em dia, parece que os “novos escritores” — mesmo que já estejam há dez anos fazendo aquilo — continuam sempre novos. O Marçal Aquino é considerado “nova geração”. Talvez ele seja de duas gerações acima. E faz um texto que não tem nada a ver com os outros. Assim como o Amílcar Bettega, que está na faixa dos 40 e tem um texto completamente diferente do texto do Joca. Mas são considerados escritores da mesma geração. Então acho difícil considerar isso uma coisa única. Uma das características da nova geração brasileira é esta: ela é múltipla.

Acasos
Cheguei a ter um escritório de advocacia. Até hoje meus ex-sócios riem de mim. Acho que provavelmente não seria um grande advogado porque não tinha muita paixão ali. O nome do escritório era o nome dos sete sócios — um escritório com nome de firma americana. Não tínhamos muitos clientes. Tínhamos uma, péssima, que ninguém queria pegar. Ela foi passando de mão em mão, não pagava ninguém, só trazia problemas. Então, comecei a fazer trabalhos de jornalismo como free lancer. Por acaso, um dos editores da Carta Capital, revista para a qual eu fazia matérias, acabou indo para a editora que fundou a Bravo! e me chamou. Larguei a advocacia e passei ao jornalismo. Foi também um acaso eu trabalhar na área de cultura. Na Carta Capital, eu fazia matérias sobre política e negócios.

Velhos e grandes
Naquela época, a idéia de fazer crítica cultural era muito distante. Talvez porque não houvesse essa grande oferta que existe hoje, na internet. A maioria das pessoas que escreviam a respeito era mais velha. Pelo menos na minha visão. Elas escreviam em jornais há anos. Os grandes críticos. Wilson Martins, etc. Então, eu não me sentia preparado para fazer isso. Não fiz faculdade de letras, não tinha preparo acadêmico. E, de um dia para o outro, fui cair numa editoria de cinema, sem conhecer cinema tão bem assim. Acabei me aferrando muito às noções que eu tinha de narrativa literária. Eu fazia crítica de cinema de acordo com o roteiro dos filmes, e não crítica de cinema propriamente dita. Até hoje faço isso. Então é muito mais acaso do que vocação.

Fogos de artifício
Lancei um livro de contos em 1998. É um projeto que mandei para o Instituto Estadual do Livro, do Rio Grande do Sul. Chama-se Não depois do que aconteceu. É um livro que não me envergonha. Está lá. Foi o melhor que pude fazer na época. Mas nele não reconheço muito a minha voz literária. Há muita influência de outros autores. E é um tipo de escrita que tenta mostrar muito a sua técnica. Parece que estou soltando ali alguns fogos de artifício, para chamar a atenção do leitor.

Uma restrição
Uma restrição que possivelmente posso fazer em relação a meu primeiro romance, Música anterior, é que ele é mais literário que os outros dois. Nele, eu uso muito o mais-que-perfeito. Fizera, houvera. Você lê aquilo e a sua impressão é a de que há alguém escrevendo. Mas tenho tentado trazer o que escrevo hoje para um registro mais oral. Gosto muito do Faulkner, por exemplo. Você lê os seus livros narrados em primeira pessoa e parece que as pessoas estão ali, falando. E é uma velocidade, uma violência da fala… Aquilo só pode ser o discurso de alguém, um discurso muitas vezes incoerente, que dá voltas no mesmo lugar. Gosto muito desse registro. Então, nesse sentido, Música anterior é um pouco diferente de Longe da água — que é um pouco mais próximo de O segundo tempo, pelo menos em termos de linguagem.

Coisas pequenas
Escrevi meu primeiro romance nas horas vagas da Bravo!. Meio que no escuro. Escrevia capítulo por capítulo. A forma daquele livro tem a ver com o método que usei na época. Eu escrevia só à noite, em longas sessões. Os capítulos são maiores do que os que escrevo hoje. Meus livros, hoje, têm capítulos pequenos. Talvez pelo fato de que tenho pouco tempo e me adaptei a isso. Na época, eu ainda estava brigando com essa dicotomia. Hoje, o capítulo de pequena intensidade, além de ser uma coisa que acaba sendo legal para o leitor, também tem a ver com a maneira como vivo. Não tenho tempo para ficar uma semana só escrevendo. E parece que a criação vem de uma vez só. Depois você fica trabalhando numa cena específica. Mas, para que você consiga fazer com que aquela cena aconteça com uma intensidade tal, você tem que escrevê-la de uma vez só. E, de uma vez só, você só escreve coisas pequenas.

Certa verdade à ficção
Longe da água sempre foi considerado um livro autobiográfico. E tem, de fato, aspectos autobiográficos. Quando fui escrever O segundo tempo, um livro que não é autobiográfico, resolvi fazer uma experiência, quase uma brincadeira, uma provocação. Repeti situações de Longe da água. O personagem de um livro tem a mesma idade do personagem do outro, freqüenta a mesma praia, também foi para São Paulo. Gosto que achem que vivi tudo aquilo. Dá uma certa verdade para o que a pessoa está lendo. Pelo menos para algum tipo de leitor, que quer acreditar naquilo, como se a ficção não fosse o suficiente. Eu não tenho nada contra. Vamos alimentar isso de alguma maneira. É isso que eu faço.

Dramas adolescentes
O romance em que estou pensando agora não tem personagens mais jovens. Mas tanto em Longe da água quanto em O segundo tempo — dois livros que tratam da adolescência — escolhi essa faixa de idade porque suas histórias não são muito espetaculares. Em O segundo tempo, a história é até um pouco banal. Trata-se de um divórcio. O personagem principal está vendo seus pais se divorciarem e, por causa disso, vive um drama. É um dilema típico da adolescência.

Futebol e divórcio
Eu tinha 15 anos. Exatamente a idade do personagem de O segundo tempo. Esse é um dos dados autobiográficos no livro, mas não é muito decisivo. Eu queria tratar de futebol e divórcio. Duas coisas que, para uma pessoa adulta, não têm a mesma intensidade que para alguém de 12, 13 anos. Embora um adulto também possa torcer e se descabelar pelo seu time e eventualmente sofrer por causa do divórcio dos seus pais. Mas são coisas que você vai levando. Os adultos passam por tragédias e suas vidas continuam. No dia seguinte, estão trabalhando. Para um adolescente, não é assim. E essa intensidade me interessa muito. Por isso, os personagens adolescentes. Não tenho um fetiche por adolescentes ou coisa do gênero. Mas eles dão a essas histórias a intensidade suficiente. Se eu usasse um narrador em terceira pessoa também seria difícil. Mas como se trata de alguém, na primeira pessoa, lembrando de como sentia aquilo aos 15 anos, fica mais fácil convencer o leitor de que o divórcio dos pais do personagem foi a grande tragédia da sua vida. Alguém de 15 anos trata isso com mais verossimilhança do que alguém mais velho.

Tudo vira mel
John Updike diz que, até os 16 anos, tudo que nos acontece é muito intenso. É a primeira vez que você está vivendo aquilo, e as coisas têm uma verdadeira dimensão trágica. E, a partir do momento em que você amadurece — e principalmente se você é escritor —, começa a transformar qualquer coisa que acontece na sua vida, qualquer sofrimento, em matéria literária. É uma coisa meio masoquista. E qual é a influência da literatura na nossa vida? Ela é um mundo paralelo. Parece que você está no Second Life. Updike diz que, a partir disso, começou a transformar qualquer coisa em “mel”. É a expressão que ele usa. Tudo vira puro mel. Morre alguém e aquilo vira mel, porque dali a não sei quanto tempo ele vai escrever um livro a respeito.

Caso clínico
Todo escritor passa por essa dúvida: será que ele não está vivendo a vida dele, mas, sim, um livro — ou o seu próximo livro? Questão difícil. Porque a sua felicidade pessoal não depende da literatura. Pelo contrário. A literatura traz mais infelicidade do que felicidade. Mais angústia, mais depressão. Mesmo um escritor consagrado sempre acha que não está sendo reconhecido o bastante. É quase um caso clínico. Você passa a vida inteira correndo atrás de algo que nunca vai alcançar.

O escritor e seu dilema ético
O dilema ético do escritor é este: conseguir separar sua vida pessoal daquilo que escreve. Conseguir lidar com as pessoas a seu redor, com sua família e as pessoas que lhe são queridas de uma maneira que não seja utilitária em termos literários. Se você tem um relacionamento amoroso e depois o utiliza em um livro, isso não é algo eticamente positivo. É claro que o escritor usa muito da sua vida como matéria de ficção, até porque ele tem de partir de alguma coisa. Mas acho que, se há uma ética possível em literatura, é esta: tentar separar a sua vida pessoal da sua vida literária.

“Acho difícil que alguém no mundo atual, criado pela televisão, com a velocidade que as coisas têm hoje em dia, se impressione inicialmente com Proust e Joyce. Isso eu só fui ter bem mais tarde, no sentido mais técnico da coisa. Quando já escrevia e já tinha uma idéia do que era a carpintaria literária.”

Angustiante
É melhor já ter escrito do que escrever. Essa frase é um lugar-comum, mas não sou desses autores que sentem prazer em escrever. Sinto prazer quando termino de escrever um capítulo que considero bom, quando o olho, no papel, e vejo que não há mais o perigo de ele se desmanchar. Sinto aí um prazer de realização. Mas escrever, em si — o ato e a produção —, é muito angustiante. Quando estou começando um romance, não tenho muito esse problema. Mas depois, quando já estou no meio, há um ou dois anos trabalhando naquilo… Às vezes, meus livros demoram três anos para ficar prontos. Como não os mostro a ninguém antes de atingir um determinado nível, fico realmente em dúvida se aqueles dois anos não teriam sido jogados fora. E tenho certeza de que isso pode acontecer. Tenho muitos amigos de quem leio os livros. Respeito o trabalho deles, mas às vezes acho aquilo uma droga. E penso: “Essa pessoa ficou um, dois, cinco, dez anos escrevendo isso. Para quê?”. Bem, aquilo serviu para ele, de alguma maneira. Serviu pessoalmente. Mas literariamente? Todo escritor tem essa angústia.

As coisas são o dia-a-dia
A maneira de contar uma história tem de ser muito exata. Ela não comporta gordura nem rapidez demais. Eu tenho usado uma fórmula. Cento e poucas páginas, um pouco maior, um pouco menor que isso. Não é nada excessivo. Casa bem com o impacto que quero causar com a história. Não desenvolvo personagens laterais, por exemplo. Dou à história a intensidade do drama de um personagem. Muita gente talvez ache que meus livros são pequenos ou coisa assim. Mas não são pequenos em relação ao drama do meu personagem. É um drama só. Minha idéia é concentrar. Foi até uma crítica que recebi: as tramas dos outros personagens não são bem desenvolvidas. Se fossem, os livros seriam bem maiores, mas seguiriam outro modelo. Em busca do tempo perdido é uma série de livros sobre o tempo. Um tema meio etéreo, meio geral. Eu não quero escrever um livro sobre o tempo, a memória ou o mundo de hoje. Quero escrever sobre um personagem que foi a um jogo. O sentido, é o leitor quem vai dar, depois. Borges dizia o seguinte: primeiro você escreve uma história, com competência. A partir daí, os críticos e os leitores é que vão dizer se aquela é uma história sobre uma geração ou se é sobre a maneira como as pessoas vivem. Para mim, é difícil começar um romance com essa idéia geral. Vira algo muito pouco palpável. Você tem que escrever parágrafo por parágrafo, cena a cena, capítulo a capítulo. Se um personagem vai a casa de sua mulher, ele tem que dizer algo para ela. Não vai dizer que o mundo é assim ou assado. Mas vai dizer: “Me passe o açúcar”. As coisas são o dia-a-dia. Mais palpáveis. A nossa vida é assim. Seus grandes sentidos você só vai ver depois, quando o tempo tiver passado.

Os sentimentos do futebol
Em O segundo tempo, eu queria falar sobre um assunto que eu conhecesse muito. No caso, o futebol. E aquele período específico do futebol nos anos 80. É a coisa de que mais tenho memória, lembro de todos os jogos. Então, queria escrever um livro que se passasse naquele universo. A história veio depois. Achei melhor tratar de um jogo só, e não de vários deles, por uma questão de concentração. E eu tinha aquele Gre-Nal na cabeça. O Grêmio [time de Laub] perdeu de 2 a 1, numa virada. Eu achava aquela virada interessante. Havia nela uma expectativa que não havia sido cumprida. Como drama paralelo, escolhi o divórcio dos pais do personagem. Mas eu queria botar ali tudo que o futebol significa para a minha vida. Nick Hornby tem um livro maravilhoso sobre isso, Febre de bola.Um livro sobre os muitos anos que o autor passou indo a todos os jogos da equipe dele. Eu concentrei meu livro num jogo porque queria saber algo assim: o que os sentimentos do futebol têm a ver com a vida das pessoas?

Fonte eterna de sofrimento
Continuo bastante ligado em futebol. No livro, passo o tempo inteiro dizendo que, hoje, o futebol está morto. Mas essa também é uma maneira de mostrar a dor do meu personagem. Não vou mais ao estádio porque não moro mais em Porto Alegre [mora em São Paulo]. Mas, dia desses, me dei conta de que, em dez anos, o Grêmio ganhou apenas um título importante. Na última década, o Grêmio esteve muito mal. É uma fonte eterna de sofrimento. É impressionante. Você acompanha o campeonato inteiro sabendo que o seu time não tem nenhuma chance. É quase uma compulsão.

Texto sintético
Vejo muita gente discutir sobre jornalismo e literatura. Para mim, o jornalismo só trouxe coisas boas. Um texto sintético. Burilei meu texto de maneira satisfatória muito por causa do jornalismo. Mesmo que hoje eu queira ser mais prolixo — e hoje estou, aos poucos, me tornando um pouco mais prolixo —, trata-se de uma prolixidade mais controlada. Isso o jornalismo me deu.

Fugir de si mesmo
Longe da água e O segundo tempo são livros parecidos. O segundo tempo é mais bem-acabado quanto à linguagem e à estrutura. É mais fechado, coisa que o Longe da água não é. Mas este talvez seja mais intenso. Sua história é mais forte, causa mais reação nas pessoas. Enfim, é uma impressão minha. Acho que, de fato, dominei essa maneira de contar uma história — com alguém mais velho lembrando de sua infância. Mas chega uma hora em que você sente uma certa inquietação. Estou sentindo isso hoje. Tanto que o livro que estou escrevendo agora é radicalmente diferente. É sobre um triângulo amoroso entre adultos. Mas não só o tema é diferente. Estou escrevendo em várias vozes, uma coisa que já elimina aquele “autoritarismo” da primeira pessoa, aquela cadência, aquela versão única da história. E estou trabalhando com três pessoas narrando a mesma história. Assim, crio zonas de ambigüidade diferentes. É uma experiência interessante. Cheia de desafios. E estou encontrando muito mais dificuldades do que se eu fosse escrever outro romance sobre a adolescência narrado por um adulto. Mas isso faz parte da literatura. A oxigena. Em termos formais, não tenho muita dúvida quanto a isso. Agora, em termos daquelas questões mais profundas — o que é um escritor, o que são suas obsessões, qual é a sua voz, o que ele quer dizer —, acho que, no meu caso, talvez eu não mude muito. Esse é um livro muito diferente, talvez no tema e na forma, mas as preocupações que estão ali acabam sendo as minhas. Você não consegue fugir de você mesmo. Um escritor que queira sempre fazer algo novo no fundo é aquilo mesmo: um cara que sempre quer fazer algo novo. É a personalidade dele.

Invenção e experiência
Minha formação é muito ligada à cultura pop, mas procuro me afastar dela. Quando você começa a botar muita referência no que escreve, aquilo vira uma maneira de mostrar que você conhece algo. Literatura não é isso. Literatura é se perder ali, acompanhar o seu personagem, ter uma certa imprevisibilidade. Eu poderia certamente escrever um livro sobre o universo do rock. A minha formação é rock, televisão e a cultura dos anos 80. Isso é muito do que eu vivi. E literatura é o que você inventa a partir das suas experiências. Mas, embora meus livros sejam confundidos com autobiografias, o que eles eventualmente podem ter de bom é o que consigo descolar da autobiografia. É a invenção. Que é própria da literatura.

“A literatura traz mais infelicidade do que felicidade. Mais angústia, mais depressão. Mesmo um escritor consagrado sempre acha que não está sendo reconhecido o bastante. É quase um caso clínico. Você passa a vida inteira correndo atrás de algo que nunca vai alcançar.”

Um crítico entre os escritores
Na época em que trabalhava na Bravo!, eu me policiava para não freqüentar tanto o meio literário. Eu trabalhava como jornalista e volta e meia precisava escrever sobre o assunto. Tinha que manter certa independência. E isso é muito difícil. Você acaba encontrando as pessoas. Hoje tenho vários amigos no meio literário. E é uma coisa legal. Uma troca de experiências. Não interfere propriamente no que você faz. Tenho feito resenhas e eventualmente até falo mal de algumas pessoas. Mas tenho procurado não falar de literatura brasileira contemporânea. Já fiz resenhas em que falava mal de pessoas de quem eu gosto. Mas o ideal mesmo é escrever sobre cinema e literatura estrangeira.

Obrigatoriedade do diploma
Fico até constrangido de falar sobre esse assunto, porque sempre parece que estou falando em causa própria. Não tenho diploma e trabalhei como jornalista. Então é evidente que sou contra o diploma. Mas é importante que a pessoa tenha alguma formação acadêmica. Que não seja exatamente o jornalismo. O jornalismo poderia ser um curso de extensão de um ano ou dois. Seria uma solução bem razoável. […] Quanto ao diploma em si, como condição fundamental, a prática mostra que ele não é necessário. Boa parte dos jornalistas que conheço em São Paulo não tem diploma. Em Porto Alegre, eu sei que quase todos têm. Muitos dos ótimos jornalistas que temos — os mais velhos todos e muitos da minha geração — são de outras áreas. Alguém formado em história, direito ou filosofia pode ser muito mais útil ao jornalismo do que alguém formado em técnicas de reportagem — coisa que você aprende numa redação em um ou dois anos. Numa redação, se uma pessoa é boa, ninguém pergunta sobre o seu diploma. Difícil é achar uma pessoa boa.

Grande monólogo
Moacyr Scliar falou que a literatura, no fundo, acaba sendo um grande monólogo com você mesmo. Por mais que a crítica fale, que os leitores nos dêem uma resposta, no fundo você sabe quando acertou ou errou. Não em relação ao público. Mas em relação a si mesmo. Você quer ser lido, ser amado pelas pessoas. Mas, se você não tivesse uma necessidade de provar a si mesmo que tem condições de fazer aquilo, não escreveria.

Um dom
É claro que poderíamos ter um número muito maior de leitores no Brasil. Mas essa idéia de que o romance é o principal veículo do seu tempo, como era no final do século 19, não faz mais sentido. Você tem outras formas narrativas. Tem o cinema, a tevê, a própria internet — que, de alguma maneira, resgata a leitura. Então, existe um grande grau de desperdício na questão do incentivo à leitura. Perdem-se muitos leitores. Não só porque os professores são ruins ou porque os livros de José de Alencar sejam chatos. Mas porque algumas pessoas não vão ler. Não há muito que fazer. Quando você trabalha com incentivo à leitura, trabalha com uma faixa menor de pessoas: as que podem, de fato, desenvolver o gosto pela leitura. Isso é quase um dom. E vai desde a alfabetização da criança, desde o tipo de ensino que ela teve em casa, até a maneira como ela lida com o idioma. […] É óbvio que as primeiras narrativas que uma pessoa vai ler precisam ter certa afinidade com o mundo em que ela vive. Tenho certeza de que José de Alencar aos 15 anos é ruim. É uma linguagem do século retrasado. Machado de Assis é lento para quem tem essa idade, você só vai entendê-lo quando for mais velho. Nessa idade, você tem que ler Marcos Rey, Rubem Fonseca. Coisas que estimulam. Que dão à literatura aquele status que, muitas vezes, o adolescente não vê.

Um glamour meio torto
Paulo Francis foi um jornalista muito importante para a minha geração, porque dava à literatura um glamour que ela não tinha na nossa vida. A gente tinha a idéia de que a literatura era um conversa entre senhores numa biblioteca empoeirada, sobre Machado de Assis, num português castiço. Mas Rubem Fonseca, não. Ele traz a literatura para o dia-a-dia. E o Francis era um cara bem-sucedido, que vivia em Nova York, nos melhores restaurantes, com as melhores pessoas. E a literatura era o grande instrumento dele. Esse tipo de coisa, para um adolescente, é importante. Isso, o Rubem Fonseca tem. Seus personagens são muito atraentes, mesmo sendo bandidos, delegados de polícia sórdidos. Mas são personagens meio existencialistas, solitários, que têm um monte de mulheres à sua volta, lêem todos os livros e sabem tudo sobre todos os assuntos. Isso passa uma idéia de “glamour”, entre aspas, muito importante para a literatura. Um glamour meio torto, mas que é legal. E todos esses outros livros normalmente adotados pela escola não trazem isso. Quem tem 15 anos e está com os hormônios à flor da pele não quer saber da sociedade escravocrata do século 19. Isso ele vai estudar em história. Literatura tem de ser algo lúdico, para o dia-a-dia, algo estimulante.

Fome por ficção
Esses best-sellers como Harry Potter, histórias muito bem contadas, são um sinal de que a fome por ficção existe, de que ela está por aí. […] Só que não acredito nessa história de que quem lê Paulo Coelho um dia vai ler Proust. A não ser que leia Paulo Coelho aos 12 anos. Com todo respeito, é um nível de complexidade que esse leitor não vai adquirir mais tarde. Ele já está formado por aquilo. Acho que é nessa época, meio decisiva, dos 15 anos, que começamos a ter um contato com isso. No meu caso, foi engraçado. Não li nada dessas coisas. Achava uma chatice. Mas os gibis me deram muito isso. As revistas sobre rock. Eu gostava muito das discussões que lia nessas revistas, das críticas negativas, dos paus que um crítico dava em um músico. Isso é leitura. É uma maneira de você se familiarizar com a palavra como instrumento.

Status perdido
Tenho certeza de que todo escritor tem uma opinião sobre tudo. Mas a ficção perdeu muito status. O romance não mais é o principal veículo de ficção. O cinema e a televisão o estão substituindo. E isso não é uma tragédia. O que está acontecendo com o livro já aconteceu com o teatro. Na Grécia, o teatro era a principal forma de ficção. Hoje em dia, não é. Há muito tempo que não é. Teatro é uma coisa para cada vez menos gente. Menos até que a literatura. Isso é social. E, como o romance, o conto e a poesia não têm mais aquela popularidade, naturalmente os escritores perderam a sua importância. Caetano Veloso fala tanto porque a música é muito mais importante para as pessoas do que a literatura. E dentro da música, quem é o cara mais articulado, o que mais fala e pensa? […] Como escritor, se me ligassem todo dia perguntando algo, provavelmente eu responderia. Estariam me divulgando, não teria problema. Talvez até eu tivesse alguma autocrítica e parasse de falar. Acho até que teria essa autocrítica. Mas nunca vão me ligar.

Michel Laub

Nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, foi diretor de redação da revista Bravo!. Hoje é coordenador da área de publicações e cursos do Instituto Moreira Salles e colaborador da Folha de S. Paulo e da revista Entrelivros. Publicou três romances, todos pela Companhia das Letras: Música anterior (2001, prêmio Erico Verissimo/Revelação da União Brasileira dos Escritores), Longe da água(2004, finalista dos prêmios Zaffari/Bourbon e Portugal Telecom) e O segundo tempo (2006). Em 2005, recebeu a Bolsa Vitae de artes. É professor de criação literária na Academia Internacional de Cinema de São Paulo.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp