Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

Marina Colasanti

A primeira edição do Paiol 2008 contou com a presença de escritora Marina Colasanti

No dia 13 de março, a escritora Marina Colasanti abriu a terceira temporada do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. Numa conversa com o mediador do encontro, o músico e diretor teatral Flávio Stein, e o público que compareceu ao Teatro Paiol, Marina falou sobre a importância da leitura na formação de cada um, analisou a situação das mulheres na mídia atual, apontou as diferenças entre a literatura adulta e a infantil e discorreu acerca do mercado livreiro e das funções da arte em geral. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.

• A guerra e os livros
Eu sou o resultado das minhas leituras. A pessoa que sou foi sendo adubada e modificada por elas. Na infância, eu lia muito por duas razões. Uma era familiar, cultural. Na Itália, minha família era voltada para isso. Meu avô era um historiador da arte, um homem muito importante nesse campo, e a biblioteca dele era o sonho de seus dois únicos netos. A outra razão era circunstancial. Eu tinha nascido na África, justamente no início da Segunda Guerra, e minha família havia regressado para a Itália. Lá, passei os cincos anos de conflito. Nos transferíamos constantemente, mudávamos de casa e de cidade o tempo inteiro. Em parte por causa da profissão de meu pai, que trabalhava com a Confederação das Indústrias. À medida que a guerra ia comendo a Itália pelo sul, íamos para o norte — onde a guerra acabaria. Por outro lado, meu pai também era de pensamento fascista. Então, ele ia para o norte para “continuar com a Itália”, digamos assim. Continuar com o que ele considerava que fosse a Itália. Nessas mudanças constantes, tudo era uma questão de segurança. Se você mora numa cidade que vai ser bombardeada, você tira dali as mulheres e as crianças e as leva para outro lugar. Assim, meu irmão e eu estávamos sempre num lugar novo, onde não tínhamos amizades, não conhecíamos ninguém. Um lugar para onde não se levavam nem brinquedos nem aquele cotidiano já armado em outra casa. Então, quando chegávamos, meus pais compravam um monte de livros e nos abasteciam com eles. Por isso, os livros eram o nosso playground, a nossa Disneylândia, a nossa alegria. Nunca ficamos sozinhos, nunca nos aborrecemos.

• Os clássicos e as crianças
E nós, meu irmão e eu, lemos muito, muito, muito. Quando as pessoas falam em clássicos e torcem o nariz, eu digo: “Não. O clássico é a seleção da seleção da seleção”. O clássico ficou porque é o melhor de tudo. Não ficou porque é um clássico. Não nasceu um clássico. Foi virando um clássico porque, à medida que o rebotalho ia sendo jogado fora, ou que os “menos bons” passavam para o escuro, eles afloravam. E são maravilhosos. Nós lemos o Orlando furioso,a Ilíada,a Odisséia, o Dom Quixote. Só não lemos Os miseráveis,de Victor Hugo, porque esse não dá para “ajeitar” para criança. Mas o resto, tudo, nós lemos. Com sete anos, eu lia Edgar Allan Poe. E ele, para sempre, morou no meu imaginário. Lendo minha literatura, você encontra aquela coisa do coração que bate emparedado. Isso habita um jovem para sempre, faz a nossa cabeça. Além de todos os livros de aventura e todos os livros de Júlio Verne. Quando chegamos ao Brasil, o presente do meu pai para as suas crianças foi uma coleção completa de Júlio Verne, a enciclopédia Tesouro da juventude — um tesouro maravilhoso — e a História do Brasil de Rocha Pombo. Mas acho que só a senhora Pombo leu essa história. É indevassável. São cinco volumes desse tamanho. Nós nunca lemos, confesso, mas meu pai achou que a gente tinha que conhecer a história do novo país.

• Olhar ao redor
Não vou olhar para trás. Como escritora profissional, eu vou olhar ao redor. Nem para frente, nem para trás. Vou olhar ao redor. E vou olhar para um redor que não aparece, vou procurar sempre o redor menos visível. As coisas muito visíveis me atraem menos. Posso ser distraída para coisas muito evidentes, mas sou muito atenta para coisas pequenas. E também vou olhar para uma presença oculta, para o universo do imaginário. Porque ele está presente aqui, olhem: aqui, não há ninguém que não seja um viajante, ninguém que não sonhe, ninguém que não faça uma fantasia. Mas você olha e não vê nada disso. Então, esse presente oculto me fascina enormemente.

• Formação do leitor
Eu tenho uma vivência como leitora. Minha postura não é uma postura teórica, é uma postura de experiência. Eu tenho a experiência da leitura como elemento formador, como bússola, como elemento orientador, como elemento estruturante. Tenho essa vivência. Quando digo que eu sou o resultado das minhas leituras, não estou fazendo uma imagem, não estou fazendo um charme, uma retórica. Estou falando a verdade. Não sei quem eu seria sem as minhas leituras, porque aprendi muito lendo. Aprendi sem me dar conta de que estava aprendendo, senão teria sido muito chato. Aprendi porque eu estava sempre debruçada sobre a vida das pessoas, sobre sua ação e reação emocional. O que um livro faz? O que um romance faz? Ele planta uma situação, bota personagens ali dentro e começa a ver como cada uma delas reage ao gesto da outra. Começa a ver o que acontece no entorno. É a dinâmica da vida que está ali. E eu, durante anos e anos, a vida inteira, estive debruçada sobre isso. É algo que forma uma pessoa, que muda uma pessoa. Isso constrói uma pessoa e, se eu tenho essa certeza, quero isso também para os outros.

“A arte tem a função que o artista quer lhe dar. Ele vai dar ao seu trabalho o rumo que acha que seu trabalho tem que ter. Se eu fosse fazer poesia política, seria um fake tremendo.”

• Mercado: assassinato de autores
O mercado não é a minha lagoa predileta. Quer dizer, não é onde eu me entenda muito. Não sou uma pessoa de mercado. Nem de capitais. Acho que o mercado, no mundo inteiro, está sofrendo uma modificação inquietante: cada vez mais ele se amplia, está cada vez maior, mas não se amplia o público leitor nessa mesma medida. Então, para que os livros sejam absorvidos, o esquema mundial tem sido aumentar a quantidade de títulos e diminuir a sua presença nas livrarias. No mercado internacional, um livro fica três semanas numa livraria. Se nessas três semanas ele não tiver sucesso, ele sai. É o assassinato dos autores. É, sobretudo, uma busca pelo best-seller em detrimento de um livro de absorção mais lenta, um produto desde o início destinado a um público menor, mas que eventualmente pode ser muito mais interessante do que um best-seller. Mas esse tipo de livro precisa de um tempo maior, precisa de chão para fazer o seu trânsito. Hoje em dia, você entra numa livraria e o livreiro não sabe o que está vendendo. Ele não precisa saber o que está vendendo porque o computador sabe. Então você diz a ele o nome de um escritor e, se você errar uma letra da grafia desse nome, o sujeito vai lhe dizer que aquele autor não existe. Criou-se um distanciamento. Também acho que se intimidam muito os leitores que não são leitores contumazes, que entram numa livraria e não sabem o que comprar. É muito difícil você escolher livros numa livraria se você não é da área.

• Países queimados
As livrarias estão se resolvendo. Os editores estão bastante felizes. As editoras estão ganhando dinheiro. O mercado está ganhando dinheiro. Não é que isso não esteja se resolvendo, mas é algo inquietante. Porque o livro que mais vende é o livro mais fácil de ser lido, o de apelo mais imediato, mais popular. Estamos em guerra com o Afeganistão? Então vamos vender um monte de livros sobre burcas, sobre a guerra, sobre o Afeganistão e o Irã, sobre pipas, sobre cachorros salvos no front. São livros de apelo muito fácil e vendem muito. O que acontece é que os escritores jovens tendem a optar também por esse tipo de livro, porque querem vender. Nós vivemos da profissão, é um direito que a gente tem. Então, acontece que esse tipo de produto é muito mais valorizado no mercado. E ainda conta com um subproduto muito bem vendido, que é o roteiro de cinema. O livro já é escrito como um roteiro cinematográfico porque o autor sabe com quem está falando. E faz um livro praticamente roteirizado, para vendê-lo imediatamente para Hollywood e, com isso, faturar mais dinheiro. Afinal, nem todo mundo pode ser traficante, prostituta ou assassino para vender sua vida para Hollywood sem ter que escrever um livro. É um esquema assustador. É um esquema também que queima países inteiros. Porque, de repente, acontece a febre do Irã. Os iranianos ficam todos sorridentes dizendo: “Bom, finalmente descobriram a nossa literatura milenar e a nossa literatura moderna”. Ledo engano. Assim que se apagar o incêndio do Irã, assim que o público se cansar do Irã, vai escolher outro país. Agora, estão procurando a literatura nórdica, dos países bem ao norte, bem gelados. O mercado queima países inteiros e depois os abandona. Nós não tivemos o boom latino-americano? Não achamos que íamos todos para o Primeiro Mundo literário? Engano. Foram quatro ou cinco. E os outros continuam como antes. Fomos rapidamente abandonados.

• Tititi de pássaras
Eu tenho TVA, não vejo o programa Saia Justa [risos]. Só o vi duas vezes, ainda com outras participantes. E chorei. Quis cortar os pulsos. Fiquei muito envergonhada. Achei burro. Morri de pena da Mônica Waldvogel, que é um amor de pessoa, uma profissional competentíssima. Pensei: “O que a Mônica está fazendo nisso? Meu Deus, coitada”. Porque aquilo era um tititi de pássaras. Era tudo aquilo que nós dizemos que não somos. Uma coisa um pouco nervosinha, um pouco exibida. Uma futilidade. Os assuntos todos ficavam na superfície, tudo aflorava; pegava-se uma coisa lá no fundo, já, já ela estava boiando e era nada. Fiquei muito mal. Cadê nós? Cadê os nossos tempos, quando falávamos coisas competentes? Mas isso está dentro das exigências da televisão, que batem outra vez na questão de mercado. Temos que ter muita gente assistindo e, para isso, temos que falar a linguagem que muita gente fala. Então, temos que simplificar a linguagem e perguntar às pessoas o que elas querem. Porque dar às pessoas aquilo que você acha que elas devem receber é autoritarismo. É uma coisa nefanda. Digo isso sabendo que estou dando minha cara a tapa. Mas devo ser uma pessoa muito autoritária, porque ainda acho que a obrigação de todo o ser humano é escolher o melhor para se oferecer, mesmo que as pessoas não tenham lhe pedido o melhor. Porque elas não conhecem o melhor, e não têm como lhe pedir uma coisa que não conhecem. Acho que, se nós sempre dermos às pessoas somente aquilo que elas já conhecem, já querem e já comem em casa, não vamos melhorar o seu paladar. Não vamos enriquecer essas pessoas. Não estaremos dando nada a elas, só tomando delas. Porque tomamos a atenção delas e não retribuímos com nada. Você dá sempre o mesmo? Pois quem dá o mesmo não dá nada. Esse meu discurso, hoje, é um discurso amaldiçoado. Sou uma das pessoas mais politicamente incorretas que vocês podem encontrar. Reconheço, fazer o quê?

“Quando as pessoas falam em clássicos e torcem o nariz, eu digo: ‘Não. O clássico é a seleção da seleção da seleção’. O clássico ficou porque é o melhor de tudo.”

• Vários processos criativos
O processo criativo é diferente dependendo do que você vai escrever. Eu “estive” cronista do Jornal do Brasil pela terceira vez recentemente. Saí no início do ano. E, se você está cronista, já sabe que toda semana vai ter que escrever uma crônica. Então, você fica ligado em todo assunto de jornal que renda uma crônica. Você fica ligado em tudo ao seu redor, buscando a crônica. Esse é um processo. Quando você senta, já sabe mais ou menos que endereço a crônica vai ter. Você já está muito pautado, porque recebeu o tamanho preciso para a crônica. Antigamente, era por linhas; hoje em dia, é por batidas, por caracteres. Então, é um negócio milimétrico. Portanto, você está bastante pautado, ali, para trabalhar. Se você escreve para uma revista, você sabe exatamente para quem está escrevendo, quem é o seu público leitor. Então, a sua bússola está apontada. Você sabe para quem está escrevendo. Se está escrevendo para uma mulher de tal idade, com tal poder aquisitivo. Você tem suas referências. Já está organizado e trabalha assim. Mas na área de comportamento, por exemplo, eu trabalhava apoiada em bibliografia. Fiz um arquivo enorme — que tenho até hoje, mas que atualmente alimento menos — com tudo que aparecia de pesquisa, psicanálise, psicologia, enquete, tudo, tudo, tudo. Tenho dados, citações, nomes, tudo. Eu não sou uma autoridade em comportamento. Então, não posso me arvorar, não sou uma socióloga, não sou uma antropóloga. Eu vou, eu estudo, eu busco. É um tipo de construção. Um trabalho de pesquisa.

• Senhora do livro
Na ficção, trabalho de maneira diferente. Primeiro, eu não trabalho aleatoriamente: “Ah, hoje eu tive uma idéia para um conto, vou escrever”. Ou: “Ah, tive uma idéia bonitinha, vou guardar”. E três anos depois: “Olha que pilha grande! Vou fazer um livro”. Não é assim que eu trabalho. Se eu tiver hoje uma idéia para um conto, eu falo: “Isso dá um conto ótimo”. Anoto a idéia num papel e escrevo em cima: “conto” ou “miniconto”. E jogo tudo numa caixa. Nem penso mais nesse assunto. Chega um momento em que eu digo: “Está na hora de escrever um livro de contos”. Ou: “Está na hora de escrever um livro de minicontos”. Ou: “Eu quero voltar aos contos de fadas”. Então, abro a caixa, pego todos aqueles papéis e começo, com a cabeça, a dançar em volta deles. Como um dervixe. Você roda, roda, roda e os deuses começam a falar com você. É um diálogo, um papo, uma coisa que vem do astral, as vozes sagradas. Aí, começo a trabalhar e só vou parar quando acabar aquele livro. Trabalho como se estivesse trabalhando num romance. E, quando estou trabalhando, sou senhora daquele livro: lembro muito bem dos tipos de palavras que usei naquele texto. Lembro das palavras e das situações que usei, para não repeti-las, pra não baterem umas com as outras. Porque estou escrevendo aquilo concentrada, estou escrevendo aquilo tudo coordenado. Aquilo é um organismo que respira, que funciona junto.

• Trabalho de miniaturista
A poesia funciona de outra maneira. A poesia tem um trabalho de forma tão intenso e tão complexo — um trabalho que você não pode deixar parecer evidente, que não pode ser percebido quando se lê —, que você leva às vezes muitos anos para escrever um poema. Você vai e você volta, você o relê, você troca uma palavra daqui para lá. É um trabalho progressivo, cumulativo. Então, há períodos em que não estou trabalhando na área de poesia e há períodos em que começo a poetar. Eu até mesmo provoco isso, começo a ler poesia, pego meus poemas antigos e volto a eles. Quando sinto que eu estou num momento bom, a partir daí é a toda hora. Você está no avião e volta àquele poema. E você sabe que ele não está pronto. Você o deixa ali e só volta dali a três, quatro dias, um mês. Gaveta, gaveta, gaveta, muito tempo de gaveta. É um trabalho de miniaturista. Sou miniaturista nos meus desenhos também. Minha personalidade é a do detalhe.

“Nem todo mundo pode ser traficante, prostituta ou assassino para vender sua vida para Hollywood sem ter que escrever um livro antes.”

• Poesia infantil
Escrever poesia para crianças é bem diferente. Por quê? Porque, para crianças, eu gosto de escrever com rimas. Eu gosto de rima, eu gosto de brincadeira, eu quero poemas lúdicos e quero, ao mesmo tempo, alterná-los com poemas sérios. Faço um poema lúdico e boto um sério depois. É um jogo complexo. Faço um poema de brincadeira e depois escrevo: “A morte não é feia nem bonita, a morte é onde a vida põe um ponto, um ponto de partida”. Com isso, eu entreguei algo bem mais denso para os garotos. Então, isso é muito bom de fazer. É muito trabalhoso, porque é certinho e, ao mesmo tempo, não pode ser certinho, senão fica chato. Mas, na poesia para crianças, de repente você introduz um tema diferente, introduz uma palavra da modernidade. Você tem que brincar enquanto faz aquilo. Mas também é fácil publicar poesia para crianças. Bom, eu não tenho problema para publicar, não tenho problema de editora. Mas acho que há uma necessidade no mercado de poesia para crianças. O diferente é que, quando você faz poesia para adultos, você trabalha com a ironia. E a ironia é uma faca afiada, é fio leve, navalha, gilete. E quando você trabalha com crianças, você trabalha com o lúdico. O lúdico é escancarado, é escrachado, é risada mesmo, é brincadeira. E você tem que dosar as coisas. É um outro campo.

• Realidade expandida
Eu não acredito que a realidade seja isso: esse copo de água que você está bebendo. Essa, das realidades, é a menorzinha, a mais insignificante, a que nós estabelecemos como única. Para o meu sentimento, um sentimento mais fundo, existem várias realidades, sendo essa a mais usual. A do imaginário é uma outra realidade, mais ampla. É um círculo que vai se abrindo indefinidamente no cosmos, no além, na morte, na razão de a gente estar aqui, no depois, no que nos trouxe. Isso tudo são realidades. Vejamos um ser humano — não, não sejamos pretensiosos —, vejamos uma serpente. Olhem o cuidado com que uma serpente é feita, aquelas escamas uma por cima da outra. Ela se mexe toda, ela não tem pata e caminha, ela perde a pele, ela se despe. É um animal maravilhoso. Foi feito do nada? Não tem outra razão de ser a não ser comer mosquitos? Não, não pode, isso não é possível. Não posso aceitar isso. É muito pequeno para a maravilha que a vida é. A maravilha — com todos os seus horrores, é claro. Porque a serpente vai comer o pobre do mosquito, e a coruja vai comer a serpente. É uma maravilha canibal, uma maravilha que tem um lado muito dramático, mas que é de uma intensidade imensurável. Então, eu acredito em múltiplas realidades. E, para mim, um grande prazer é expandir a minha realidade, viver em outra. Eu vivo tranqüilamente numa realidade em que as pessoas se transformam. Aliás, eu mesma me transformarei. Estou me transformando neste exato minuto. Porque algumas células morrem, outras células nascem, tudo se modifica. Estamos em constante modificação. Por que não vou acreditar em metamorfose? Por que eu posso ser um neném um dia e acabar como uma velha caquética, mas um sapo não pode virar um príncipe? Quem disse que não pode? Não é? Eu gosto de conviver naturalmente com essa realidade expandida. É isso. Para mim, não existe o fantástico. Para mim, não existe o imaginário. Para mim, como pessoa e também como autora, evidentemente, existe uma realidade expandida.

“O mercado queima países inteiros e depois os abandona. Nós não tivemos o boom latino-americano? Não achamos que íamos todos para o Primeiro Mundo literário? Fomos rapidamente abandonados.”

• Entender contos de fadas?
Há um equívoco em relação aos contos de fadas. Contos de fadas não são produtos infantis. Se forem, não são contos de fadas. Os contos de fadas só são contos de fadas — e essa é uma exigência do gênero — quando eles são um produto literário para qualquer público e para qualquer idade, e quando eles apresentam leituras possíveis para qualquer nível. Há aquela questão: “Será que as crianças vão entender?”. Pois se trata de uma questão absolutamente equivocada. O conto de fadas não tem que ser entendido. A criança não tem que decodificar o conto de fadas. Ela tem que gostar dele. Ela tem que se emocionar com ele, só isso. Ela não tem que entendê-lo. A melhor coisa que eu já ouvi sobre um dos meus contos de fadas foi o que me disse uma mulher: “Olha, eu li um conto seu e não entendi nada. Mas adorei”. Era tudo que eu queria ouvir. E por que isso? Porque o conto de fadas, o diálogo do conto de fadas, não se estabelece na superfície. Ele se estabelece na profundidade. Ele é um diálogo do inconsciente com o inconsciente. No repertório clássico, ele é um diálogo que vai do inconsciente coletivo ao inconsciente individual. É aquilo que o inconsciente individual tem do inconsciente coletivo. É o encontro que se faz entre eles. Daí a força dessas narrativas. No meu caso — eu espero, não posso garantir, não procurei fazer isso —, não é uma coisa que eu tenha buscado. Mas acho que houve um encontro meu, pessoal, com o inconsciente coletivo, um encontro que gerou essas narrativas que, hoje, se encontram com outros inconscientes. Então, a gente não pode nunca se preocupar com os contos de fadas. Não pode ser essa a nossa preocupação. É lógico que, por conseguinte, eu não tenho a menor preocupação em relação ao que a criança vai entender, se vai ou não vai entender, se vai compreender o meu vocabulário, as minhas palavras. Não entender palavras nunca atrapalhou a leitura de criança nenhuma no mundo. Isso é um equívoco de professores. Porque, se a criança não entende a palavra, ela vai se esforçar mais para entender o sentido do que lê, e vai se tornar um leitor melhor.

• Leitor de sentidos
Todo leitor tem que estar atento ao sentido do que lê. O problema do leitor brasileiro é justamente o seu analfabetismo funcional. Se você escrever “cadeira”, se você escrever “circo”, as pessoas sabem o que isso significa. Mas se você começar a contar a história de uma bailarina desse mesmo circo, que equilibra a cadeira no nariz enquanto anda sobre uma linha, aí já complica. As pessoas não conseguem entender o que você está escrevendo, porque acham muito complicado. Isso acontece exatamente porque elas lêem palavras, não lêem sentidos. O bom leitor lê sentidos. Quanto mais uma criança se apegar ao sentido, melhor leitora ela será. Acho até saudável que ela não entenda uma palavra ou outra, acho até muito bom. Ela vai procurar entender de outra maneira.

• Oralidade
Eu nunca procurei a oralidade. Gosto da forma literária. Foi uma decisão que tomei logo de saída. Eu não ia fazer oralidade só porque todo mundo faz. Eu queria dar, aos meus leitores, o meu conto e uma coisa a mais. Eu queria dar a eles música, poesia, literatura, texto. O texto é uma maravilha, o texto é uma coisa a mais. Então, nunca tentei fazer oralidade.

Recontar
Chapeuzinho Vermelho deve ter umas 400 edições. Isso é uma questão de mercado, de interesse. Como Chapeuzinho Vermelho é o segundo livro mais lido no mundo, depois da Bíblia, todo editor quer publicá-lo. Mas os editores não podem publicar a edição dos Irmãos Grimm sem pagar alguma coisa a quem já a publicou. É uma questão de direitos autorais. Então, eles mandam alguém fazer uma reescritura de Chapeuzinho Vermelho. E você reescreve. Você pode fazer isso. O que eu lia, quando criança, não eram reescrituras. O que eu lia eram adaptações. Eram romances adultos adaptados para jovens. No Brasil, o Orígenes Lessa fez muito isso. A Ediouro tinha um catálogo — não sei se ela ainda o veicula —, um catálogo esplendoroso, todas as suas reescrituras eram feitas por grandes escritores. Nesse sentido, a reescritura é um produto ótimo, não tenho nada contra ela. Se não quero reescrever não é por preconceito, mas por não ter tempo suficiente. Se não tenho tempo para escrever o que eu quero escrever, aquilo que é meu, não há razão nenhuma para reescrever o que é dos outros. Fiz a tradução de uma adaptação do Dom Quixote, no ano das comemorações cervantinas. Mas sou tradutora profissional. Me contratam para fazer uma tradução e eu a faço. E a adaptação era ótima, tudo bem. Mas não vou fazer adaptações. Ou melhor: adaptação nem tanto. Reescritura. Reescritura é sopa no mel. É facílimo de fazer, você faz muito rápido. Mas não me interessa, não.

• Missão, engajamento, brasilidade
Na pós-modernidade, estamos discutindo muito o pensamento em função da arte. As artes todas estão discutindo se têm uma função, se não têm. Se têm, qual seria essa função e tal. Uma discussão muito longa e muito controvertida. Eu não gosto da palavra “missão”, para falar de literatura, porque é uma palavra quase celestial. Há poetas que têm uma vocação de engajamento político na sua poesia. E há poetas cujo engajamento é com a vida. Clarice Lispector não era engajada com o social porque estava para lá de Marrakesh, para lá do social. “Para lá” no sentido de “mais adiante”. Ela estava trabalhando com o bonde na chegada, e não na saída. A preocupação dela era completamente outra, era uma preocupação metafísica. Também houve no Brasil uma mania de brasilidade. Queriam saber se algo era brasileiro, se não era brasileiro. Eu pensava: “Que coisa mais idiota, discutir isso”. Um país feito de tantas origens, de tantas culturas, de tanta gente diferente. Como é que um filho de japoneses pode ter a mesma brasilidade que um filho de alemães? Criados em ambientes alemães ou japoneses, são ambos brasileiros, mas a brasilidade deles vai se expressar de maneiras diferentes. Não existe isso, a brasilidade. Então essa é uma discussão estéril. Essas são discussões muito redutoras.

• Poesia partidária
A arte tem a função que o artista quer lhe dar. Por que ele está fazendo aquilo? Por que ele está escrevendo? Para que ele acha que aquilo serve? Ele vai dar ao seu trabalho o rumo que acha que seu trabalho tem que ter. Se eu fosse fazer poesia política, poesia partidária, seria um fake tremendo. Eu nunca fui uma pessoa partidária. Eu nunca estou nas pontas, nos extremos. Eu estou sempre questionando os extremos. O tempo inteiro, eu tento estar no meio, entre os dois — um pouco de um, um pouco de outro, sempre questionando. Jamais poderia fazer política partidária, poesia partidária. O que interessa é a intensidade daquilo que uma obra de arte transmite, a densidade do diálogo que ela estabelece com os seus fruidores. Uma das grandes críticas que se está fazendo à pós-modernidade diz respeito à sua dificuldade de fruição. O público olha uma instalação, um peixe com asas de papel crepom pendurado num fio no meio de uma sala e, embaixo dele, no chão, uma poça d’água. Isso é uma instalação? O público tem muita dificuldade de fruir esse momento artístico. Para o autor, aquele é um momento artístico; para o público, pode não ser. É um momento difícil até para isso. Porque os autores estão dizendo uma coisa e o público, eventualmente, está dizendo outra. Isso tudo está sendo revisto.

“Clarice Lispector não era engajada com o social porque estava para lá de Marrakesh, para lá do social. ‘Para lá’ no sentido de ‘mais adiante’. Ela estava trabalhando com o bonde na chegada, e não na saída.”

• Colete salva-vidas
Eu não me preocupo muito com as questões gerais. Eu tento ficar encostada no particular, ficar encostada em mim. Encostada, por dentro, nas minhas costelas. A batida do meu sangue dentro do meu corpo é a única coisa de que posso ter certeza — enquanto houver uma batida, é claro. Eu nunca fui de palavras de ordem, eu nunca fui muito de grupos, eu não sou nem muito de moda. Quando todo mundo usa algo, eu já não gosto daquilo. Eu estou de meia branca. E todo mundo está de meia preta. Veja bem: não estou atenta a mim por narcisismo. Estou atenta a mim porque este é o lugar onde consigo ser absolutamente honesta. Não a verdade do mundo, mas a minha verdade está dentro de mim, e tento me aproximar dela. Porque só posso me aproximar da verdade dos outros se estiver bem encostada nas minhas verdades. Senão, não gruda. Ou, se grudar, é algo passageiro. É uma sensação pessoal. E eu tenho que trabalhar com isso. Eu vivo com isso e eu trabalho com isso. Vamos dizer que estar encostada em mim é o meu colete salva-vidas. É onde há menos enganos, onde eu corro menos risco de me equivocar. Ficou complicado? Eu disse que era politicamente incorreta. Mas vale dizer que sou muito atenta ao social. Tento muito entender os mecanismos, mas tento entender — não tomo partidos, em geral. Pela salvação do planeta, sim. Para que não se gaste água, sim. Para essas coisas.

MARINA COLASANTI

Nasceu em 1938, na Eritréa, na época uma colônia italiana no nordeste da África. Já publicou cerca de 40 livros, entre contos, crônicas, ensaios e literatura infanto-juvenil. Foi duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti: em 1994, com Rota de colisão (poesia), e em 1997, com Eu sei, mas não devia (contos). Com formação em Belas Artes, Marina trabalhou por onze anos no Jornal do Brasil e 18 na revista Nova. É autora ainda de E por falar em amor, Contos de amor rasgados, A morada do ser, A nova mulher e O leopardo é um animal delicado, entre outros.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp