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Luiz Vilela

A nona edição do Paiol 2007 contou com a presença de Luiz Vilela

Luiz Vilela foi o nono convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, Vilela falou de sua formação como leitor e escritor, da construção de seus famosos diálogos, de religião, cinema, teatro, entre outros assuntos.

• A literatura e a vida
Acredito que a literatura possa influenciar as pessoas. No entanto, essa influência nem sempre é percebida pelo autor, porque o livro é publicado e solto no mundo e nunca se sabe em que mãos ele vai parar. É muito daquela imagem usada pelo Robert Louis Stevenson, comparando a publicação de um livro à mensagem atirada ao mar numa garrafa pelo náufrago. Não sabe se a mensagem chegará a alguém; e se chegar, não se sabe a quem chegará. Pessoalmente, já tive vários testemunhos de pessoas que me disseram coisas impressionantes. Eu não imaginava que um livro meu pudesse provocar tal coisa na vida de uma pessoa. Um leitor disse-me: “seus livros mudaram a minha vida”. Por discrição, não vou reproduzir aqui os detalhes da conversa. Mas me disse que tomou rumo na vida depois de ler determinados livros meus. Se aconteceu isso com determinada pessoa, você faz uma ilação — palavra um pouco pedante — e pode imaginar o que acontece com outros leitores dos quais o escritor nunca vai tomar conhecimento. É claro que há outras manifestações: pessoas que mandam cartas, e-mails; às vezes são pessoas que você não conhece, que descobrem seu endereço e mandam algum comentário. É aquela coisa do leitor que gosta do livro e isso também acontece conosco: um livro de que você gosta muito gera o impulso natural de comunicar ao autor: “Olha, gostei muito do seu livro; ele foi muito importante para mim”. Mas essa discussão toda — se a literatura pode mudar a sociedade — é um papo, para usar as palavras do Machado: “a gente aprende questões que nos levariam longe”. Acho que é uma conversa muito demorada e por enquanto fica este meu testemunho pessoal com relação à influência de meus livros em algumas pessoas e, portanto, da literatura, da literatura que eu faço. Comecei a escrever com 13 anos e já tenho 50 anos de atividade literária. Posso dizer com todas as letras que foram 50 anos sem parar de pensar um dia sequer na literatura.

• O início como leitor e escritor
Na minha casa, por felicidade, havia livros por toda parte; era uma casa cheia de livros. Havia livros até no galinheiro. Então, esbarrava-se em livros o tempo todo. Meu pai e minha mãe liam, meus cinco irmãos também liam — sou o mais novo. Vivendo desde muito cedo nesse meio dava vontade de ler, porque eu via as pessoas lendo e parecia uma coisa muito interessante, porque prendia a atenção deles; às vezes, ficavam horas lendo um livro. Então, tive tanta vontade que acabei aprendendo a ler antes de entrar na escola. Perguntava para um e para outro, e aprendi a ler sozinho. Na época, naturalmente, lia os livros destinados à minha idade, os infantis; com o passar dos anos, comecei a ler o que mais interessava a um adolescente. Costumo dizer que, chegando aos 13 anos, tive um pulso de escrever. E hoje eu verbalizo esse pulso da seguinte forma: se as estórias que eu lia eram tão interessantes, como seria escrever tais estórias? Acho que foi isso que me levou a experimentar. Foi uma empolgação, um deslumbramento. Lembro-me da primeira estória que escrevi: foi num caderno escolar, página atrás de página, personagens nascendo, personagens morrendo e aquele negócio não acabava nunca. Foi o começo e eu continuei escrevendo. Em uma tarde, por exemplo, escrevi cinco contos, um atrás do outro. Baixou o santo e aquela coisa desesperada não parava. Desde então, nunca tirei férias da literatura. Nesse período, dois fatos foram muito importantes para mim. É muito importante uma palavra de uma pessoa próxima. Com 14 anos, numa prova de português, o padre pediu uma redação. No lugar da redação, escrevi um pequeno conto na sala de aula. Dias depois, ele entregou as provas corrigidas e na minha ele escreveu no alto: “você tem pinta de escritor”. Para um menino de 14 anos ler aquilo foi sensacional. No ano seguinte, em Belo Horizonte, onde fui continuar meus estudos, fiz o curso clássico no colégio Marconi. Lá, um professor de português pediu uma redação e eu escrevi um conto. E quando chegou na prova oral, ele parou e perguntou: “Quem é Luiz Junqueira Vilela [nome completo do autor]?” Eu era muito tímido naquela época; escondido lá no fundo, levantei o dedo, e ele me disse: “você pode ir embora, não precisa fazer prova; sua redação está um colosso, havia anos que eu lia uma redação como a sua. Vai embora, já te dei 10 na redação”. Estou contando, não para fazer bonito, mas pela importância desses estímulos no começo. Acho que com ou sem estímulo, eu continuaria escrevendo, mas isso teve um peso enorme. Uma palavra de um leitor é muito importante. Isso acontece em todas as artes. O impulso inicial é importante.

• A solidão e o brinquedo
Eu sentia muita solidão. Solidão de existir. Embora com cinco irmãos — mas há uma diferença grande entre mim e a irmã acima. Solidão não no sentido de ficar muito tempo isolado. Até porque fazia tudo a que tinha direito como menino do interior: jogava futebol, roubava fruta no vizinho, criava passarinho… Mas eu sentia — e acho que sinto até hoje — uma solidão muito forte. Passava muitas horas sozinho, brincando com soldadinhos. Tinha também uns bonequinhos e fazia roupas, armas e reproduzia os filmes assistidos no cinema. A nossa diversão era cinema; não havia televisão. Então, eu reproduzia e fazia cidades, construía prédios, casas, havia os caubóis com seus cavalinhos, vaca. Acho que a literatura foi um substituto desses brinquedos. Então, se você me perguntasse o que é a literatura para mim (tentei a viagem inteira pensar uma bela resposta para vocês aqui no Paiol Literário, só que não consegui até agora), eu diria que ela foi um brinquedo do adulto para substituir o brinquedo da criança.

• Questão de necessidade
É a necessidade de criar, não consigo ter outra explicação. Eu já tenho certo nome na literatura. Então, não precisaria mais escrever. Mas não é isso e nunca foi isso. É realmente uma questão de necessidade. Eu estou lapidando um novo romance; no entanto, tive de parar porque de repente veio uma vontade, uma coisa louca, de escrever um outro romance, os personagens vão acontecendo e você pára as coisas ao seu redor, porque não consegue mesmo ficar sem. Está em você e tem de botar para fora, senão fica incomodado.

• Obsessão e fases da escritura
Sou muito obsessivo. A rotina do mega-super-hiper obsessivo que sou é parte do texto. Aquele primeiro esboço, na hora em que você solta os cachorros, que é uma fase que você não sabe bem o que está fazendo. Aliás, perguntam muito: “qual é a fase que você acha mais interessante do seu trabalho?” Eu acho a fase inicial muito angustiante, porque não se sabe o que se está fazendo; não se sabe se aquilo no final vai ficar, se será aproveitado, se aquilo, enfim, vai parar na editora ou no lixo. Agora, a grande fase, a que considero mais agradável, mesmo com todo trabalho que ela dá, é a da lapidação de todo o texto. Você já tem o pássaro na mão, sabe que o livro está ali, falta trabalho, às vezes meses, anos de trabalho, mas o livro está ali, você o conquistou. Está ali na sua mesa. Essa fase pode demorar muito, porque é aquilo que todo escritor faz: lê, relê, guarda na gaveta. Uma coisa que aconselho muito a jovens escritores é: “além de reescrever muito, quando você tiver muita dúvida sobre seu texto, coloque na gaveta, feche, jogue a chave num lugar difícil de ser encontrada”. É isso que faço com certos textos: “vou guardar essa coisa aqui e não quero nem olhar”. Às vezes, devido ao trabalho demasiado que deu, sente-se certa náusea, certa repulsa pelo texto. Depois que o texto está mais limpo, assim que o mato foi capinado, o processo que uso, que aprendi com Flaubert, é a leitura em voz alta. Isso eu faço com todos meus textos. Eu leio de ponta a ponta. Aí noto as imperfeições do texto. Escrever é uma coisa e quando se fala/ouve o texto é outra. É quando descubro a fluência, a naturalidade das frases e, principalmente, dos diálogos. Escrevo muitos diálogos e eles têm de soar da maneira mais natural possível. Aí vem uma sutileza até difícil de explicar. O natural não é exatamente como todo mundo fala. Não é o chamado diálogo de gravador. Uma vez um crítico, querendo me elogiar, comparou meus diálogos com os de gravador, como se eu tivesse um gravador escondido, ouvindo as pessoas. Tempos depois um crítico do Jornal do Brasil, também querendo me elogiar, disse que meus diálogos não eram de gravador. Eram diálogos elaborados. É um diálogo elaborado. Então, a naturalidade da fluência não pode pegar em nada. Você tem de ler e sentir. Se tem musicalidade, então se chega quase a cantar os diálogos. Aí, sim, vejo perfeitamente. Uma vírgula a mais ou a menos pode desequilibrar a frase. É muito importante que o texto flua. Como fazer isso? Não é um processo mecânico. Na falta de outra palavra, chamarei de alquimia. É preciso realmente entrar no personagem. Vou citar um caso do meu último livro — Bóris e Dóris —, em que um homem e uma mulher conversam. Tem de ser aquela mulher e aquele homem. Tem de falar como ele, rir como ele, exatamente como é. Então, o que eu faço? Há um corredor lá em casa; escondo-me no fim desse corredor para ninguém ouvir e achar que sou maluco. Lá, fico falando com os personagens; quando é briga/discussão, grito também, mas não posso subir muito o som, senão param na rua e vão ver o que está acontecendo lá em casa. Isso não ocorre uma única vez. Depois que repasso tudo, faço outra leitura.

Comecei a escrever com 13 anos e já tenho mais 50 anos de atividade literária. Posso dizer com todas as letras que foram 50 anos sem parar de pensar um dia sequer na literatura.

• Cortar, emagrecer, engordar
Há uma fase intermediária, entre a de soltar os cachorros e a lapidação, que é realmente quando se molda mais o livro. É quando se cortam personagens, às vezes, acrescentam-se personagens, mas é uma fase demorada do livro. Mas você já olha com a cabeça mais fria. Estrutura o livro. De repente, há uma passagem ali isoladamente e você acha que é uma passagem boa, interessante, mas no contexto do livro ela não funciona. Se está demais, você vai cortar; se está faltando, você tem de escrever. É uma fase demorada também. Às vezes, acho que é nessa fase que o livro se define. Se o livro terá uma qualidade, essa qualidade já está ali presente. A novela Te amo sobre todas as coisas foi uma coisa curiosa, um caso exemplar. Ela tinha já atingido certo tamanho e eu dizia “tem muita coisa para cortar, tem muita gordura”. Eu lia, cortava uma parte, passava os dias, lia novamente e ia tirando, cortando. Uma hora, parei e a novela ficou tão no osso que falei “está faltando um pouco de carne”. Comecei a escrever mais algumas partes; ela engordou demais; teve de emagrecer novamente. Então, falei que era hora de parar, de esquecer o livro por uns tempos, já estava entrando naquele processo de paranóia. Perde-se a noção, fica uma coisa doentia mesmo. Você lê e muda a vírgula, e acha uma porcaria. No dia seguinte, você lê novamente e, então, muda demais, sinal de que tem alguma coisa desequilibrada. É a hora de parar e retomar o texto depois. Então, você olha com mais serenidade. Dá um trabalho, é um trabalho de louco, no meu caso. Há loucos na família, e costumo me definir como um dos loucos, mas no meu caso é doido manso, não agrido ninguém. Às vezes, agrido com meus livros.

• Viver em Ituiutaba
Voltei a Ituiutaba por razões pessoais, família, e não foi uma volta programada. Fui passar uns dias, fui ficando e estou lá há bastante tempo. Em relação à cidade, a imagem que muitos fazem é certo clichê. Os jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, toda vez que falam da cidade, dizem: “o cara mora numa cidadezinha no interior de Minas”. Até parece que toda cidade do interior de Minas é uma cidadezinha. Não entendo isso como uma diminuição nem nada; é aquele clichê preguiçoso de jornalista: “Ah! Lá no interior? É Minas? Cidadezinha do interior de Minas”. Não é cidadezinha não. Faço muitas críticas à cidade, como a qualquer outro lugar. Acho que não existe lugar ideal, nem mesmo o que a gente nasceu. Às vezes, a pessoa pensa que é aquela vida tranqüila, do poema do Drummond: “O homem vai devagar/ O burro vai devagar/ Devagar a vida passa/ Eta vida besta meu Deus”. Acabou. Não existe mais esse interior. Pelo menos em Minas não existe. A não ser lá nas montanhas, bem escondidinho. Porque na minha região não tem montanha. Esse é outro clichê: “está lá nas montanhas de Minas”. Na minha região não tem montanha nenhuma, é planíssimo. Tem uma serrinha, que eu chamo de Baú, porque parece um bauzinho. Então, Ituiutaba hoje, lamentavelmente, é um microcosmo brasileiro, de violência, violência, violência. São 90 mil habitantes, numa cidade de porte médio, numa região muito rica, que é o triângulo mineiro, perto de Uberlândia — uma cidade impressionante em termos de crescimento, com mais de 600 mil habitantes. É uma região muito violenta, de muito tráfico de drogas. Mas qual cidade hoje não é? Antes, eu saía dos botecos, altas madrugadas, trocando as pernas e tudo. Hoje, depois de certa hora não ando sozinho. […] Isso aí virou uma bandalheira, o país da bandalheira. Você é assaltado pelos caras que estão lá em cima; é assaltado pelos caras que estão na rua. É o país dos ladrões. Hoje, o Brasil é o país dos ladrões. Assino em baixo. Não espero mais nada deste país.

• A condição humana
Às vezes, as pessoas pensam que faço literatura voltada para os costumes do interior. Isso eu não faço. Embora algumas vezes exista o cenário da cidade do interior, esta não é minha preocupação como escritor. Desde o primeiro livro, a minha preocupação sempre foi a condição humana. É o ser humano com suas alegrias, tristezas, angústias, felicidade, encontros, desencontros, etc. É isso que me interessa. Em termos temáticos, vou da infância à velhice, passando por toda a gama de coisas que acontecem com o ser humano. Então, é isso que me interessa — o ser humano: “esse bicho da terra tão pequeno”, como dizem os versos de Camões.

• O falso recluso
A fama de recluso é injusta. Não que eu ache ruim ser recluso. O simples fato de estar afastado dos grandes centros reforça um pouco essa idéia. Eu tenho amigos no Brasil inteiro, pessoas que escrevem, e meus editores. Tenho livros em várias editoras. Tenho contatos permanentes. O trabalho de escritor, como já disse, exige muito tempo, muito silêncio, muita concentração. Mas freqüentemente recebo convites, encontros para participar, palestras, encontro com escritores. De um modo geral, atendo-os. Não sou recluso não. Desde meu primeiro livro [Tremor de terra, lançado em 1967], sempre participei de eventos literários. Fui à televisão, fui para o exterior, fiquei nove meses nos Estados Unidos participando de um programa de escritores. No entanto, não fico aí na estrada porque isso realmente tem uma medida. A partir de um ponto, isso pode prejudicar seu trabalho e o principal é sempre o livro. Não adianta ficar só falando? É o caso de alguns escritores.

• Clássicos e poesia
Eu mais releio do que leio. Acompanhar a produção literária atual é difícil, porque é muito grande. Acho que é uma coisa extremamente positiva, sempre vejo com bons olhos. Mas é impossível acompanhar, porque se for ler tudo que sai, você não tem mais tempo para escrever. Então, leio os jornais, leio os cadernos culturais… Obviamente meu interesse é pelos clássicos. Leio mais os poetas. Meus dois preferidos são Drummond e Fernando Pessoa. Já sei de cor quase todos os poemas deles. Leio pelo vício de ler. Gosto de poesia mesmo. Leio também T. S. Eliot e Rimbaud.

• Sobre o novo livro
A religião é o tema do meu próximo romance: Perdição, que será lançado em 2008. O personagem é um jovem pescador do interior. Ele está à margem de um lago (esse é o começo do livro). Pára um carro, descem dois caras de terno e gravata, bem apessoados, dizem que estão ali perdidos, que estão indo para a cidade e começam a conversar. Eles gostam do tipo do rapaz. Dizem ao rapaz que são pastores de uma nova religião e o convidam para se juntar a eles. Na Bíblia, no começo do evangelho, Cristo andando à beira do lago vê São Pedro pescando e diz: “doravante serás pescador de homens”. Isso é basicamente um trampolim para a ação. O rapaz se entusiasma, vê os caras de terno e gravata, carro bacana, se empolga e acaba indo para o Rio de Janeiro. Ele passa a ser o pastor Pedro. Volta para a sua cidade de carrão, bacanão, e todo mundo fica impressionado. É a fase de ascensão social. Em seguida, ele começa a entrar no mundo das drogas. Há uma reviravolta na vida dele, separa-se da mulher, volta para o interior e inicia uma série de ações que complicam sua vida. Volta para a cidade em situação bem precária, quase de mendigo, passando fome. Vai ser um romanção. Tem muita coisa.

Quero que meus livros vendam bem, obviamente, senão não os publicaria. Mas meu interesse maior não é esse. Quero ser lido e ser entendido.

• Comercialização da fé
Está muito presente no livro uma passagem da Segunda Epístola de São Pedro, cujo título é Os falsos mestres. São Pedro se dirigiu aos cristãos, apenas para citar uma frase, alertando sobre os falsos mestres: “E por avareza, farão de vós negócios com palavras fingidas”. Esta frase transpõe para os nossos dias. Aqui, acolá, alhures. Esse aspecto da comercialização da fé está presente com muita força em Perdição. Essa coisa do mundo hoje. Sou ateu absoluto. Gosto muito da Bíblia, leio santos, adoro Santo Agostinho. Leio outros autores cristãos. Eu tive formação católica. Na época em que estava na fase já adiantada do livro, um jornal da cidade me perguntou: “o que você está escrevendo? Tem alguma coisa para a gente divulgar?” Eu falei: “estou escrevendo um romance, quero publicar ano que vem”. O repórter pediu-me que falasse um pouco sobre o livro. E eu falei que é sobre um pastor de uma “dessas” igrejas novas. Não usei nenhum outro adjetivo. Falei: “dessas igrejas novas que estão por aí”. Fiz um resumo da história. O jornal publicou a notícia da seguinte forma: “é sobre um pastor de uma igreja evangélica”. Passaram-se alguns dias, me telefonou uma pessoa que não se identificou e disse: “O senhor vai publicar um livro? Eu li no jornal”. E começou assim um interrogatório discreto. “É aquilo mesmo que fala lá?”, perguntou. E começou a mudar o tom de voz. Eu falei: “escuta, quem é você? Até agora você não falou seu nome, você está falando daqui de Ituiutaba?” O cara desconversou e logo desligou. Passaram-se mais alguns dias e lá pelas dez e meia da noite, eu estava no quarto lendo, e ouvi um barulho forte e assustador na sala. O chão estava cheio de cacos de vidro, e havia uma pedra grande no chão. Se estivesse na sala, a pedra teria acertado a minha cabeça. A pedra atingiu exatamente o lugar onde costumo sentar. No dia seguinte, chamei a polícia, fiz um B.O. Não adianta nada. Mas é um desabafo da gente. Deixei passar dois dias, até esfriar os ânimos lá em casa. Chamei o vidraceiro para arrumar o vitrô. O cara foi lá na sexta-feira. Nesse dia, por volta da meia-noite, o mesmo barulho. Até parece invenção minha: outro barulho assustador na sala. Daí falei: “não é possível”. O mesmo cara quebrou de novo, minha janela, o meu vitrô. O vitrô recém-trocado estava estilhaçado. Desta vez não havia pedra. O cara veio, saltou a grade com uma barra de ferro, e bateu com tanta força que entortou a persiana. Agora, não posso dizer que tenha uma ligação de causa e efeito com aquele telefonema, mas intimamente acho que tudo leva a crer. Com todo o respeito pelas pessoas que são evangélicas, que têm fé e tudo, mas devem saber que alguns dos membros dessa igreja usam a violência com relação aos seus fiéis. Não é nenhuma novidade. Vocês que são bem informados sabem disso. Algum tempo atrás lá em Ituiutaba, meu tio escreveu num jornal alguns artigos sobre os pastores que estavam extorquindo uns coitadinhos. Ele, um sujeito italiano, de sangue quente, escreveu uns artigos denunciando. Um dos pastores o ameaçou, veladamente, de morte. Radicais existem em todos os lugares. Estou falando com respeito, porque conheço evangélicos, figuras ótimas, pessoas de bom coração que jamais ameaçariam ninguém.

• A opção pelo diálogo
Não foi uma escolha assim clara. Acho que foi uma tendência, uma inclinação para usar mais o diálogo. Os meus primeiros contos — alguns que cheguei a publicar com 14 anos em um jornal — já tinham bastante diálogo. Quer dizer, é uma coisa que está na minha natureza de escritor. Não sei explicar muito bem por quê. Talvez porque quando eu li os livros de literatura, eles me tocaram muito. Gostava muito de ler diálogos. Às vezes, passava rápido pelas partes descritivas: sempre achei muito chato quando o autor começa a descrever. Quando via que tinha um diálogo na frente, eu ia depressa para chegar logo a ele. Talvez seja uma atração mais a ver com o ser humano, da condição humana, porque no diálogo se diz tudo. Uma vez um crítico do Rio de Janeiro utilizou uma expressão até simples, mas que considero muito exata: disse que descrevo sem descrever. É um pouco isso. Com o trabalho, vamos aprendendo certos truques. Não gosto muito da palavra “truque”, que dá a idéia de uma coisa vulgar. Vamos dizer que é técnica. A palavra mais adequada seria técnica. Em Bóris e Dóris,eu não falo, por exemplo, que a mulher estava vestida com tal roupa. Aquela parada que, na maioria das vezes, denuncia o escritor primitivo, que tem pouca tarimba. Ele pára para descrever: “era um dia assim e assim, no dia seguinte…” Quando vejo “no dia seguinte”, falo: “isso é má literatura”. Então, o personagem chega e fala: “Você está de shorts, está com uma blusa assim e assim”. É o modo como falamos. Sem que o leitor perceba, o autor/narrador está descrevendo o personagem. Isso às vezes é um artifício, mas que tem todo um trabalho para soar natural. Se faço isso de maneira forçada, o leitor percebe. Sou o primeiro a perceber que não está bom. Tem de ser muito harmônico dentro do texto. Fui descobrindo que se pode dizer quase tudo por meio do diálogo. São 50 anos de prática. Se hoje meu diálogo presta, é porque teve muito trabalho.

• Cinema e teatro
Já fui convidado para escrever peças de teatro e roteiros de cinema. Nunca aceitei. Minha praia é outra. Às vezes, a pessoa acha que por escrever diálogo também escreverá roteiro. É muito diferente. Vários contos meus foram montados no teatro ou viraram filmes. As experiências são boas. O teatro nunca me atraiu. Aquela coisa: “bravo! bravo!”. Fico constrangido quando alguém bate palma, prefiro me esconder. Sou apaixonado por cinema desde criança; sou fascinado. Hoje raramente vou ao cinema. Em Ituiutaba, havia dois bons cinemas. Hoje, existe um. A redução das salas de cinema é um fenômeno. Transformaram-nas em loja de 1,99 ou em igrejas. Na minha infância, era cinema todo dia. E eu via tudo, seriados, os famosos seriados da nossa infância, filmes. Lembro que ficava fascinado com os filmes de cowboys. Via e acompanhava pelos jornais de fora, colecionava, recortava os anúncios de filme, colava no caderno. Lia, freqüentava cineclube. Lembro uma vez que ia passar A grande ilusão, de Jean Renoir, filme que recomendo que todos assistam. Mas o filme ia passar num cinema de bairro, bem distante de onde eu morava. E a tarde ameaçando chuva, vindo um toró; e eu fui. Claro que eu ia. Peguei um ônibus, porque não tinha dinheiro para o táxi; era estudante na época. E não me arrependo de forma alguma. Que filme! Comecei a me aprofundar, conhecer os grandes diretores da época. Minhas grandes paixões até hoje são Chaplin e John Ford.

• A obra de arte
Não se explica uma obra de arte. Quando muito, dá-se uma idéia do que é a obra. Se for uma boa obra de arte, ela escapa de qualquer explicação. Não sei se vocês conhecem a história do Bonar, um pintor expressionista. Depois que alguns quadros dele foram para um salão de exposição, de vez em quando ele ia lá visitar suas crias. Ele chegava perto e ficava tentado a levar escondido um pincel e um pouquinho de tinta para tentar pintá-los, retocá-los.

• Literatura comercial
A literatura comercial é uma opção do autor. Se é isso que ele quer, há lugar para todo tipo de literatura. Não é o que eu desejo. Quero que meus livros vendam bem, obviamente, senão não os publicaria. Mas meu interesse maior não é esse. Quero ser lido e ser entendido. Há autores que querem fazer literatura comercial e há leitores que gostam desse tipo de literatura. Sou democrático: não tenho nada contra esses livros, só não os leio.

• Livros demais
Penso muito sobre essa avalanche de informação a que estamos submetidos, não só na internet, mas nas próprias publicações. Há tanto livro, tantas revistas. Eu fico pensando: “há leitor para isso tudo? Vai chegar em alguém? Vai ter alguém para ler?” É tanta coisa. Eu lá no interior de Minas (é claro: tenho certo nome), as pessoas me conhecem, acabam me descobrindo, e recebo uma quantidade imensa de livros, de todos os tipos. Eu toquei nesse ponto na Flip há uns três anos, e falei que me impressionava esse esmagamento, tanta coisa: “é livros demais”, eu disse. Em Livros demais! [Editora Summus], o mexicano Gabriel Zaid fala exatamente disso. Fala sobre a quantidade de livros, da angústia do autor, “meu livro vai chegar a alguém?”. Eu não quero que mandem mais livro para mim. Tenho livros demais e não sei o que fazer com todos eles. É enlouquecedor. E hoje, de passagem em São Paulo, dei uma olhada na livraria e vi o último livro do Ruben Fonseca [O romance morreu] e em determinada crônica ele fala dos livros — o que faz uma pessoa com tantos livros? Eu gostaria de encontrá-lo e dizer que a impressão que tenho é que os livros copulam durante a noite, porque de manhã, eu juro, há mais do que havia na véspera. Um dia havia uma pilha lá e eu notei que ela tinha aumentado e eu não tinha posto mais nenhum livro lá, a menos que alguém tenha colocado sorrateiramente. Eu vivo este problema: o que fazer com tanto livro. Doar? Mandar para uma biblioteca? Jogar fora? Vender? Até nisso há problema. Jamais teria coragem de jogar um livro fora, por maior porcaria que seja. Parece meio bobo, mas não faço. Tem dia que chego em casa e não há lugar para dormir na cama. Está tomada por livros. Daqui a pouco, eles me expulsam de casa. Vou morar na rua e eles, em casa.

• Novas palavras
Acho que os avanços tecnológicos, os novos meios de comunicação e as novas palavras não devem preocupar ou assustar o autor. Se ele está, por exemplo, escrevendo algo que se passa hoje e há personagens conversando em determinado contexto em que existem esses meios de comunicação modernos, fatalmente terá de usar essas palavras novas, porque já fazem parte do vocabulário das pessoas. O uso do inglês, que muitos acham exagerado, eu considero em certos casos até importante. Não sou xenófobo. É assim que a língua evolui. Hoje, várias palavras que consideramos português vernáculo há muitos anos não eram. Eram palavras que entraram da Espanha, da Itália, da Alemanha, dos árabes… Acredito que o autor não deve se fechar a nada. Deve estar aberto a tudo. Se for importante para a trama, para a verossimilhança, se ele está escrevendo uma história “realista”, onde há discussões do mundo de hoje, o autor precisa utilizar as novas expressões. Caso contrário, pode construir uma coisa falsa. Tudo depende do talento do escritor. Com o perdão do exagero, um exemplo bastante grosseiro, o personagem fala: “vosmecê vai hoje ou não vai?” Não tem cabimento. Muita coisa que veio do inglês, mas está no inglês porque veio dos latinos. A língua é uma mistura que não é de hoje.

Há autores que querem fazer literatura comercial e há leitores que gostam desse tipo de literatura. Sou democrático: não tenho nada contra esses livros, só não os leio.

• Cinema, TV e internet
Nada abala a literatura. Quando surgiu o cinema falou-se: “a literatura dançou, está com os dias contados”. Não aconteceu. A literatura não apenas sobreviveu ao cinema como incorporou várias técnicas dele. É o caso bem visível do escritor americano John dos Passos: a preocupação com os cortes, com a síntese. Coisa que eu faço muito em meus livros. Devo muito ao cinema. Aprendi muitas técnicas para usar na minha obra. Aí, surgiu a televisão e comentou-se a mesma coisa. Sempre há Cassandras prontas para enterrar a literatura. Os livros continuaram, a literatura continuou e a produção de livros é imensa. Considero uma bobagem criticar a televisão. Pode-se criticar a qualidade dos programas. Há coisas ótimas e também muita porcaria. Vejo muito pouco televisão. O melhor programa da televisão é o botão desligado, fora da tomada. A televisão te dá a coisa pronta. Você tem a imagem (perdoem-me a redundância). O livro é a palavra, e a criança tem de criar na cabeça, imaginar tudo. Cada leitor cria seu personagem. Então, exercita. Diante da televisão, você não imagina, já recebe a coisa pronta. Para a criança, a imaginação é importantíssima. Com o livro infantil, ela cria e interage. Mas quem gosta de ler vai ler, apesar da televisão. Até com a televisão ligada. Quem gosta de ler vai continuar lendo. Mais recentemente chegou a internet. “Ah! Agora o livro acabou, a palavra desapareceu.” Mas paradoxalmente, como vários já observaram, a palavra está sendo usada mais do que antes. Na internet, é preciso se comunicar com palavras.

• A formação do leitor
É um trabalho lento. Eu me queixo de muitos professores. Mas existem pessoas fazendo bons trabalhos nessa área. São professores abnegados. A culpa não é das crianças. A culpa é dos adultos. Como querer que uma criança leia quando o pai nunca abre um livro? Não gosta de livro. Acha que ler livro é perder tempo. Essa criança vai ler? Às vezes, pode até ler, mas é mais difícil. Tudo começa em casa, na família, nos pais. E depois na escola, com os professores. Infelizmente, conhecemos muitos professores que não gostam de livros, não gostam de ler. Então, fica difícil. Jogam contra. Se dentro da escola joga-se contra, o que esperar de uma criança que não tem ainda conhecimento da vida, do mundo? Ela não embarca na leitura.

Luiz Vilela

Nasceu em Ituiutaba (MG), em 1942. Formado em Filosofia, foi jornalista em São Paulo. Aos 24 anos, estreou na literatura com o livro de contos Tremor de terra, ganhador do Prêmio Nacional de Ficção. Em 1974, ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria contos, com O fim de tudo. É autor, entre outros, de Os novos, O inferno é aqui mesmo, Entre amigos, Histórias de família e Bóris e Dóris.

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