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Luiz Alfredo Garcia-Roza

A sexta edição do Paiol 2006 contou com a presença de Luiz Alfredo Garcia-Roza

O sexto encontro do projeto Paiol Literário — realizado em parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — trouxe em novembro a Curitiba o escritor carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza. Sob mediação do escritor e jornalista José Castello, foram discutidos a importância da leitura, filosofia e, principalmente, a literatura policial, entre outros assuntos. Acompanhe aqui alguns momentos do encontro realizado no Teatro Paiol.

• Conhecimento
A literatura não produz conhecimento. Não busca a verdade. E também não tem nenhuma finalidade prática. Então, o que você faz com ela? E o que ela faz com você? Por que todo esse apego à literatura? Eu poderia dizer que ela entrou na minha vida como uma distração. Um passatempo ou coisa assim. Mas a gente sabe que não é isso. Nela, há algo mais forte, que nos pega mais intimamente, mais intestinamente. Digo que a literatura não produz conhecimento porque ela não é um discurso conceitual. Ela não se propõe a isso porque não produz conceitos. Quando muito, provoca opiniões. Mas não é uma produtora de conhecimento, como a ciência, por exemplo. Ou como a filosofia.

• Verdade e ilusão
Digo que a literatura não busca a verdade porque, enquanto ficção, ela mente. Fundamentalmente, ela mente. Está muito mais para a ilusão e para a mentira — a palavra mentira, nesse caso, é um pouco pesada, pois é um termo psicológico muito conotado. Mas a literatura é, quando muito, produtora de ilusões. Ou produz ou busca a ilusão. É nessa medida que eu digo que ela não procura a verdade. Também não está preocupada em dizer o que é o real. Isso é tarefa da filosofia e, sob certos aspectos, da poesia. O poeta, de alguma maneira, busca a verdade. Evidentemente, ele busca a verdade de uma forma diferente da adotada pelo cientista. Mas a literatura não. Sobretudo, a ficção não.

• À distância
A literatura não tem nenhuma função prática. Ninguém paga o supermercado ou o aluguel no fim do mês lendo literatura. Então, por que esse peso, por que a importância dela? O que ela faz com a gente? Sinceramente, eu não saberia responder com precisão. Ela mexeu comigo mais do que a filosofia. Mas, da filosofia, eu consigo manter uma certa distância. A filosofia está sempre falando sobre. E todo discurso que fala sobre já está distanciado. A literatura não fala sobre. Ela fala. A literatura é muito mais da ordem da expressão que da ordem da manifestação, da indicação.

• Mundos possíveis
Então, o que ela fez comigo? Por que me interesso pela literatura? Porque ela me leva para mundos possíveis. Ela me aponta mundos possíveis. E o faz sem nenhuma presunção. Não o faz naquele sentido de “ora, mas que coisa maravilhosa, eu vou viajar pelo desconhecido”. Não. Há sempre um mundo possível num livro que eu abro. E isso é uma coisa que me fascina profundamente. A relação que tenho com o livro é muito íntima. É a intimidade de entrar em um mundo que é tanto o da trama quanto o dos seus personagens. É como se, enquanto leio, estivesse me fazendo co-autor da leitura daquele livro. E, portanto, criador. Acho que isso foi o que me pegou desde o início da minha relação com a literatura.

A literatura não produz conhecimento. Não busca a verdade. E também não tem nenhuma finalidade prática. Então, o que você faz com ela? E o que ela faz com você? Por que todo esse apego à literatura?

• A minha avenida Nevski
Mas então ela não presta para nada? Não produz conhecimento, não busca a verdade, não tem finalidade prática? Bem, ela não busca a verdade. Mas produz, na gente, um efeito de verdade. Se eu considerar que essa produção de efeito de verdade é um efeito de verdade — e não a verdade no sentido metafísico —, então acho que há um conhecimento aí. Por exemplo: quando leio Dostoiévski e vejo Raskólnikov andando pelas ruas da sua cidade, aprendo algo sobre a São Petersburgo do século 19. Até hoje, tenho vontade de ir até lá para conhecer a avenida Nevski. Como é essa avenida? É algo que me fascina desde os meus 16 anos. Mas aquilo é a minha avenida Nevski. Não é a avenida Nevski. Sequer adquiri um conhecimento empírico da avenida Nevski. É uma fantasia. É esse efeito de conhecimento e de verdade — que não é nem conhecimento nem verdade — que constitui a minha avenida Nevski. E isso, para mim, basta. Isso me enche a alma. Vem carregado de intensidade. É o que a literatura faz comigo. Ela me provoca, bole e mexe comigo, me comove psiquicamente. Como diria Freud, ela comove a minha corporeidade. Sou comovido pelo ato de ler. E, dependendo do autor, isso realmente fica muito forte. Agora, como isso funciona dentro do mundo contemporâneo? Não sei. Seria uma coisa muito genérica. Não saberia dizer.

• Busca fictícia
O que sustenta a literatura policial é uma busca da verdade. Mas essa busca da verdade, na verdade, é de mentira. O meu personagem, Espinosa, é fictício. E sua busca é fictícia. Enquanto investiga um crime, ele está procurando uma verdade específica: a daquele crime. Mas o texto, o livro, a narrativa enquanto tal, não busca a verdade.

• Morte: problema
Tenho uma maneira de encarar o romance policial. A tônica dele, o foco dele, é a morte. O assassinato. É o foco do romance policial e o foco da questão do homem. Se há uma questão central no homem é a morte. A morte pelo assassinato, ou a de qualquer outra natureza. No caso do assassinato, há duas maneiras de encará-lo. Você o encara como um problema ou como um enigma. Como um problema, ele é algo a ser equacionado, formulado claramente e resolvido. Um problema se resolve. Trata-se de um processo dedutivo que você demonstra. Podemos interpretar o assassinato, portanto, como um problema humano a ser equacionado, formulado e solucionado hipotética e dedutivamente. Essa é a tradição dos detetives e dos autores policiais que optam por uma estrutura cerebral de investigação. Hercule Poirot, por exemplo.

Sou comovido pelo ato de ler. E, dependendo do autor, isso realmente fica muito forte. Agora, como isso funciona dentro do mundo contemporâneo? Não sei. Seria uma coisa muito genérica. Não saberia dizer.

Morte: enigma
Outra maneira de se encarar o assassinato é como enigma. Se um problema nós resolvemos, um enigma nós deciframos. É o que um enigma pede. E, para mim, a morte é um enigma, na medida em que a entendo como algo essencialmente ambíguo. O enigma busca uma verdade, mas o modo pelo qual ela é apresentada é sempre ambivalente. O enigma joga com signos ambíguos. Um assassinato é muito mais complexo do que a pura dedução que nos leva à descoberta de um assassino. A novela policial fica muito mais rica quando perde um pouco dessa sua coisa cerebral, dessa sua característica cartesiana. Não me agradaria, nunca, fazer um romance policial cartesianamente. Cartesianamente, a gente faz filosofia racionalista. Esse racionalismo, em um romance policial, deixa de fora o que, para mim, é o essencial: o enigma da morte.

• Espinosa e os signos
Mais do que qualquer outro investigador ou policial, Espinosa é, por excelência, um indivíduo que opera no registro do enigma. O mundo, para ele,não é o mundo da racionalidade. Não é um mundo de idéias claras e distintas. É um mundo de ambigüidades, confusões e complexidades. É o nosso mundo. O mais simples de nós é um poço de complexidades. Dedução nenhuma daria conta disso. Daí, a psicanálise — esse processo que, a rigor, não tem fim, porque nunca se chegará à solução do problema. Pelo contrário: ele vai se ramificando, multiplicando-se, ampliando-se. Então, Espinosa, de alguma maneira, sabe que o crime é mais enigmático do que problemático. Ele sabe que, para chegar à posse de um enigma, deve jogar com seu próprio imaginário. Jogar com o que a realidade lhe oferece de ilusório e de ambíguo. O crime solicita a sua decifração. E Espinosa é um decifrador de signos, mais do que um solucionador de problemas.

• Coisa quente
Antes de escrever o meu primeiro livro de ficção, O silêncio da chuva (1996), eu nunca tinha escrito nada do gênero. Nem aquele papelzinho que você faz e guarda na gaveta para, quando crescer, ler e ver se presta para alguma coisa. Mas sempre fui um leitor. E de literatura policial também. Mas minha trajetória foi igual à de muita gente. Comecei com Monteiro Lobato. Dele, fui para Edgar Rice Burroughs e o seu Tarzan. Então, Conan Doyle, Agatha Christie, etc. Depois é que fui conhecer Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Foi quando vi que a literatura policial tinha coisa quente, boa, interessante.

• O charme e a soltura
Desconfio que sempre mexi com romance policial. Fiz três coisas na vida: filosofia, teoria psicanalítica e romance policial. São três práticas da suspeita. O psicanalista não é aquele que acolhe a palavra do paciente como sendo a verdade desse paciente. Ele a compreende como aquilo que, de alguma forma, está encobrindo a sua verdade. E ela se fará presente pelos atos falhos do paciente, por seus tropeços e esquecimentos, pelos descaminhos da sua fala. Então, o que ele tem que fazer é operar uma suspeita, uma prática de suspeita, sobre essa fala, para chegar a algo que seria a verdade do seu desejo. O romance policial é filho dileto e direto dessa prática. Então acho que sempre estive voltado para a mesma coisa. É como se a minha vida fosse uma série de variações em torno de três temas: filosofia, teoria psicanalítica e romance policial. Só que o último é muito mais interessante. Em que pese o valor da filosofia, ela não tem o charme do romance policial. Mas, sobretudo, não tem a sua soltura.

• Ser Deus
Tanto a filosofia quanto a teoria psicanalítica são procedimentos conceituais. Você os opera com conceitos. Eles falam sobre. Sobre o ser, o conhecimento, o homem, sobre Deus. E falam conceitualmente sobre. O discurso conceitual é muito constrangedor. A teoria psicanalítica, idem. Porque ela, enquanto teoria, é extremamente rigorosa do ponto de vista conceitual. Você fica ali, em um trilho, contido e constrangido pela produção teórica de Freud. E o romance policial é uma libertação. Nele, não há constrangimento algum. Nele, você está no lugar da criação. Você deixa de ser comentador e vira criador. Vira Deus. E é uma delícia ser Deus. Você cria o seu mundo, mata e desmata as pessoas. É um negócio fascinante. Eu lamento ter descoberto isso aos 60 anos de idade. Perdi um tempo enorme dessa brincadeira. Claro que ela também não é tão brincadeira assim. Às vezes, dá mais trabalho do que a produção conceitual.

• Pelo avesso
Dos 59 para os 60 anos, quase morri. Estive entre a vida e a morte durante 15 dias. E você não se defronta com a morte e sai assobiando. Quero dizer: aquilo me tocou. Acho que cada um de nós tem o direito, senão a obrigação de, um dia, virar sua vida pelo avesso. Então, rompi com a academia exatamente no momento em que eu estava melhor dentro dela. A pós-graduação que eu havia criado tinha dado certo. Tudo estava funcionando maravilhosamente bem. Minhas publicações conceituais, minhas pesquisas, minhas orientações de tese — tudo estava bem. Então, era o momento de sair. Saí quase que de mansinho, pé ante pé. E disse: “O que vou fazer?”. Não tive dúvidas: escrever romances policiais. Aquela seria uma forma de retomar temas como sexualidade, morte, assassinato, parricídio, etc. Temas com os quais eu já vinha mexendo havia muito tempo, que tinham a ver com o meu interesse pela filosofia grega e pré-socrática, pelo aedo da Grécia arcaica, pela própria temática da tragédia grega. Era uma maneira de retomar aquilo tudo criadoramente. O romance policial nos permite isso.

A ética não deve ser uma qualidade acessória. Ninguém deve usá-la como se usa uma blusa nova. Ética é uma coisa que nós somos, e não que nós temos. Ninguém tem ética. É-se ético. Não somos éticos por favor à ordem constituída. Nós o somos por obrigação. É uma obrigação com nossa consciência.

• Spinoza e o policial ético
No Brasil, ninguém que seja professor universitário durante 40 anos — e que tenha sofrido os efeitos da ditadura militar — resolve, um dia, fazer ficção policial e criar um herói delegado. Ainda mais com a tradição de polícia repressora e grosseira que temos neste país. Aqui, o policial é visto como um indivíduo violento, brutalizador. Mas polícia existe em qualquer lugar do mundo. Ela pode ser assim, mas pode ser diferente. E, sobretudo, um policial pode ser ético. Ele não tem que ser corrupto. Ele não tem que ser um boçal, um estúpido. Ele pode ser um homem normal, um funcionário público ético. Um personagem assim só poderia se chamar Espinosa. [Baruch] Spinoza talvez tenha sido o pensador mais ético de toda a história da filosofia. Jamais fez concessões de espécie alguma, a ninguém. Tanto que tentaram matá-lo e excomungá-lo, por sua honestidade e integridade ética. A ética não deve ser uma qualidade acessória. Ninguém deve usá-la como se usa uma blusa nova. Ética é uma coisa que nós somos, e não que nós temos. Ninguém tem ética. É-se ético. Não somos éticos por favor à ordem constituída. Nós o somos por obrigação. É uma obrigação com nossa consciência. Assim, como decidi que meu protagonista seria um policial, pelo menos quis lhe dar um nome que carregasse essa possibilidade ética, ligada ao filósofo Spinoza. Daí o nome Espinosa. É uma homenagem.

• Delicadeza de alma
Espinosa não é propriamente um culto. É um sujeito que tem uma certa delicadeza de alma. E teria essa mesma delicadeza sendo policial, dentista, comerciante ou jornaleiro. Ele é um sujeito delicado, sobretudo com o outro. O outro tem uma grande importância para ele. E o livro, esse gosto que Espinosa tem pela leitura, só faz alimentar essa característica, no sentido de que ler alimenta a sua alma. Mas ele não é, propriamente, um culto. Ele lê anarquicamente. Não é um intelectual. Ele é sensível.

• Desqualificado
Há uma desqualificação do romance policial. É como se ele fosse uma literatura menor. Uma vez, eu disse que, na casa da literatura, o romance policial não podia passar da cozinha. Não tinha licença para chegar à sala de visitas. E, de fato, ele tem a sua superficialidade. Tanto que eu raramente, ou nunca, uso o termo “romance policial”. Uso “novela policial”. Mantenho aquela distinção entre novela e romance. A novela seria temporalmente mais reduzida. O número de personagens também. Ela se passa mais no registro da horizontalidade, no plano dos acontecimentos. Não se pretende a grandes vôos. Não tem nenhuma pretensão metafísica. Não quer dizer grandes verdades. A única verdade em questão, na novela policial, é a seguinte: “Quem matou?”. Ela, de certo modo, é rasa. Mas esse raso, esse superficial e esse horizontal não têm caráter pejorativo. A novela policial é horizontal porque, no seu universo, você não encontra o “grande ídolo”. Não há o James Joyce, o Dostoiévski, o Conrad da literatura policial. Não existe aquele sujeito que, se aparecesse na sua frente, o faria gaguejar. O mais notável autor policial, se chegasse aqui, bateria um papo conosco, sem verticalidade ou idolatria.

• Subliteratura
A novela tem uma certa platitude. Ela é plana. Cresce em complexidade horizontalmente, mas não se propõe a nenhuma transcendência. Não tem nenhuma pretensão metafísica no sentido de busca do real. Ela se mantém no plano da realidade, sem buscar essência nenhuma para além dessa realidade. Sem fazer filosofia. Comparada a certos romances, que têm uma estatura metafísica, ela é menor. Agora, a qualidade de seu escrever não é necessariamente menor. O velho e o mar, de Hemingway, só tem um personagem. Dois, se a gente incluir o peixe morto. É um livro que se passa em um barco, no mar, e é um belíssimo texto literário. Não pode, por nada disso, ser considerado “subliteratura”. Por outro lado, não vou comparar O velho e o mar com Os irmãos Karamázov. Não dá. Um é quase a obra de uma vida. O outro é algo muito mais circunstancial. Mas, literariamente, eu não estabeleceria um desnível de valor entre eles. Agora, de complexidade literária, sim.

Não me agradaria, nunca, fazer um romance policial cartesianamente. Cartesianamente, a gente faz filosofia racionalista. Esse racionalismo, em um romance policial, deixa de fora o que, para mim, é o essencial: o enigma da morte.

• Copacabana e eu
Eu nasci em Copacabana. Cresci em Copacabana. Não moro mais lá. Mas, em Copacabana, passei grande parte de minha vida. Cresci com Copacabana. Quando eu era pequeno, Copacabana era pequena. Ela só tinha casas. Não tinha prédios. A gente jogava futebol na rua e, ocasionalmente, parava para um carro passar. Hoje, você nem pode atravessar a rua, no sinal. Você vive ameaçado. Mas crescemos juntos. E Copacabana sou eu também. Nós nos fazemos espírito e corpo. Ela é um dos meus personagens, não é um cenário. O Rio de Janeiro, e Copacabana particularmente, não é o cenário das minhas histórias: é o seu corpo. Assim, minha relação com o Rio e com Copacabana é física, mesmo. Amorosa. E muito íntima. Conheço profundamente Copacabana, cada detalhe dela.

• O mundo dos escritores
Trabalho solitariamente. Não me dou com nenhum escritor. Conheço vários deles. Eu me dei, durante um bom tempo, com Rubem Fonseca. Mas antes de eu começar a escrever. Quando comecei, paramos de nos freqüentar. Por um certo pudor meu. Podiam pensar que eu estava me utilizando dele como suporte. Então, curiosamente, nossa relação quase cessou. Exatamente a partir do momento em que comecei a escrever ficção. Sempre li Rubem Fonseca. Ia para as livrarias esperar os seus livros saírem; era sempre um dos primeiros a comprá-los. Mas sempre tive um temor, muito grande, de que, nessa relação pessoal com um escritor — sobretudo com um escritor forte como Rubem —, eu perdesse um pouco o meu próprio pé. Prefiro mancar sozinho a usar um outro como muleta. Então parei. Foi uma pena, porque gosto dele. É uma pessoa muito interessante. Conheço vários outros escritores, no entanto. Conheço o Affonso Romano de Sant’Anna. Nós nos encontramos ocasionalmente, no restaurante. Mas não me dou com escritor nenhum. Não que eu tenha algo contra escritores. Mas é porque não sou um ser muito sociável, entende? Meu trabalho em literatura é muito solitário.

• Expediente solitário
Escrevo sozinho num lugar só meu. É um escritório montado fora de casa. Num prédio residencial, no Centro do Rio. Na Beira-Mar. Um lugar bonito. Ali não tem empregada, não tem faxineira, não tem ninguém. Só eu. Dou expediente lá. Saio de casa, pego o metrô e vou para lá. Almoço na cidade, no Vilarino. E trabalho até o fim do dia. Reservo a parte da manhã para a administração familiar. Mas, a partir das 11 horas, começo a escrever e vou até as cinco da tarde. Em casa, não escrevo, porque a minha mulher [Lívia Garcia-Roza] também escreve. E aí é muito escritor num lugar só.

• Pesquisa
Vou aos lugares. Falo com guris de rua, vejo onde moram, cavouco os buracos onde se metem. Não muito mais que isso. Só fui, literalmente, mais a fundo, em Berenice procura. Grande parte desse livro se passa nos subterrâneos de Copacabana, numa galeria de metrô abandonada, gigantesca. Uma coisa assustadora. Atualmente, é a linha Siqueira Campos, que vai até o Cantagalo. Mas eu a visitei quando ainda era uma obra interrompida, a 20 ou 30 metros de profundidade. Absolutamente silenciosa, fria, úmida. Se você morresse ali, nunca mais seria encontrado. Um túnel muito grande, escuro. Então, para aquele livro, eu precisava dessa experiência: queria ver como é que alguém se sentia num lugar como aquele. Mas foi quase que por acaso que fui até lá. Num feriado, eu estava passando por perto quando vi aquela boca aberta, com um vigia na frente. Conversei com o sujeito. E ele me disse: “Se o senhor quiser, pode olhar”. E entrei. Sozinho. Foi uma bobagem. Quando estava no meio daquela coisa, é que me dei conta da tolice que tinha feito. Mais underground que aquilo, impossível.

• O poeta
O poeta não fala sobre o amor. Ele faz o amor falar. Ele não fala sobre a amada. De alguma maneira, ele a faz falar. E assim com a dor, o sofrimento, a realidade. O poeta tenta fazer a realidade se expressar pela palavra. Mas a busca do poeta pela verdade é diferente da busca do cientista pela verdade. Um opera com conceitos e hipóteses. O outro não. O poeta é uma coisa especial. Ele não é um ficcionista. Eu faço ficção, desavergonhadamente. Sou um mentiroso profissional. O poeta não. Ele não está mentindo. Ele tem uma proposta, uma pretensão de verdade. Mas essa minha distinção é puramente impressionista. Por favor, não a tomem como análise literária.

• Semi-anárquico
No começo, meu modo de escrever era anárquico. Eu pegava um determinado episódio, bem singular, e a partir dali ia desenrolando uma história. Mas isso era terrível. Num conto, você pode fazer isso. Mas, num livro, lá pela página 150, você já perdeu o fio daquele negócio. Porque você não tem uma espinha dorsal pela qual se orientar. Você não sabe se algo que está dizendo na página 128 é coerente com o que aconteceu na página 15. E aí tem que voltar e conferir. Esse é um modo perigoso e cansativo de escrever. Faz você precisar varrer o seu texto várias vezes depois de escrever, para ver se foi mantida a sua consistência lógica. Com o tempo, substituí esse modo anárquico por um semi-anárquico, em que imagino, mais ou menos, algo que vai começar em A e terminar em B — mas tenho uma vaga idéia de A e de B e nenhuma idéia em relação ao que está no meio dessas letras. Numa entrevista a você [José Castello], Milton Hatoum falou sobre sua maneira de encarar a criação. Disse que ela seria uma ponte. Só que essa ponte começaria do outro lado, não deste lado, onde estamos. O livro seria a nossa travessia até lá. Achei a imagem muito bonita. Você vê o outro lado da ponte — é lá que você quer chegar — e, por isso, tem que fazer a travessia — que é a própria construção da narrativa.

• O caldeirão de Freud
Em Além do princípio do prazer, Freud nos fala sobre uma bruxa, uma feiticeira. Ele relaciona o ato de criar com a atividade dela diante do seu caldeirão. A bruxa vai remexendo aquilo, jogando ali uma asa de morcego, um rabo de rato… Até tudo entrar em ebulição. Ou seja: deixe sair dali a sua loucura, com todos os seus bichos, suas ameaças. Depois, você captura isso formalmente, racionalmente. Todo o trabalho criador — e o trabalho de Freud, embora conceitual, foi criador — tem que ter esse momento da bruxa. É quando você permite que o seu imaginário aflore. Deixe esses fantasmas aflorar. A matéria-prima do escritor é a realidade, não o real, e o seu imaginário. Você tem de deixá-lo aflorar. Tem de se permitir uma certa loucura. Mas, ao mesmo tempo, tem de manter a razão ali, na porta, para tomar conta do broto.

• O detetive
Ele é o personagem central de uma novela policial. Mas não necessariamente o mais importante. Ele é central porque funciona como o centro de gravitação da história. Mas o essencial não se passa nele, se passa fora dele. Nos melhores romances policiais, o detetive é uma espécie de pomo de atração. Mas o essencial se passa no seu entorno. […]Ele é o maestro num concerto em que a figura principal seria o pianista, o violinista.

• Berenice
Eu queria dar umas férias ao Espinosa, e trabalhar provisoriamente com outro personagem. A primeira coisa em que pensei foi numa mulher. Inicialmente, uma prostituta. Achava que a prostituta poderia ser uma boa personagem, na medida em que, no seu meio, ela tem uma troca social muito rica, muito forte. Mas também achei que, dessa forma, ficaria muito preso ao submundo da prostituta. Aí me ocorreu a idéia de criar uma motorista de táxi. O taxista está em contato com uma variedade populacional muito grande e, como a própria Berenice diz, no seu livro, funciona como uma espécie de caixa de ressonância das conversas dos seus passageiros.

O discurso conceitual é muito constrangedor. A teoria psicanalítica, idem. Porque ela, enquanto teoria, é extremamente rigorosa do ponto de vista conceitual. […] E o romance policial é uma libertação. Nele, não há constrangimento algum. Nele, você está no lugar da criação. Você deixa de ser comentador e vira criador. Vira Deus. E é uma delícia ser Deus. Você cria o seu mundo, mata e desmata as pessoas.

• Homens de ação
Enquanto os detetives europeus são mais intelectuais, os americanos são mais operativos. São homens de ação. Não apenas em relação aos criminosos que perseguem, mas também em relação às figuras femininas que o cercam. A ficção policial americana é dominada pela figura feminina. Em todos os romances de Chandler e Hammett, as figuras centrais são femininas. São mulheres fortes, dominadoras, ricas, assassinas. O detetive é aquele que vai se confrontar com essas personagens. É uma relação de ação e de interação, muito mais que de pensamento. Agora, nos romances europeus isso não acontece. E, nos brasileiros, também não. Não necessariamente. Espinosa não é um sedutor. Não é um conquistador. Ele tem um caso com a namorada dele.

• Delegacias
Quando eu estava escrevendo O silêncio da chuva, queria saber como funcionava uma delegacia. Uma das primeiras pessoas que procurei foi Rubem Fonseca. E ele me disse: “Eu já esqueci de tudo isso, não lembro mais, não”. Rubem foi delegado de polícia, mas durante muito pouco tempo. Aí fiquei um pouco perdido. Tinha medo de cometer uma série de inverossimilhanças. Mas tenho um amigo advogado criminalista. E falei para ele: “Você vai me fazer um favor. Vai percorrer comigo algumas delegacias, durante o dia, durante a noite, durante os feriados, nos dias normais. Em diferentes situações. Para eu ver como funciona esse negócio, para eu saber que fantasmas habitam os policiais, numa delegacia”. Há delegacias, no Rio, em que os policiais trancam a porta de madrugada. Passam-lhe o cadeado e acabou-se. Ficam lá dentro. Então, ele me levou para ver essas coisas. Mas eu tinha que ir acompanhado. Não podia chegar numa delegacia e dizer: “Sou escritor, preciso saber como isso aqui funciona”. Primeiro, porque eu ainda não era escritor. E, segundo, porque não é assim que se faz.

• Estatuto da criação
O processo criativo é muito louco. Se não for louco, você não cria, você produz. Essa é a diferença. No trabalho conceitual, você produz textos. Todo trabalho conceitual é um trabalho de produção de texto. Você está sempre comentando o texto de alguém que comentou o texto de alguém. A história da filosofia — não sei se foi Hegel quem disse isso — é a história dos seus epígonos. Ou seja, todo filósofo é um comentador do filósofo que o antecedeu. Na ciência também é assim. O que se pede hoje em dia, numa universidade? Que você produza papers. E isso tudo é uma teia, uma trama, é um fantástico universo fechado. E vai chegar uma hora em que tudo isso vai virar um nó, e não vai mais a lugar nenhum. O trabalho criativo não. Ele não é um trabalho de produção. Nele, você cria uma coisa nova. Pode ser uma porcaria, mas você a criou. E essa criação tem esse estatuto anárquico, ou pelo menos esse momento anárquico, que é quando essas figuras, personagens e idéias emergem. Nos momentos mais inadequados, inclusive.

No Brasil, o policial é visto como um indivíduo violento, brutalizador. Mas polícia existe em qualquer lugar do mundo. Ela pode ser assim, mas pode ser diferente. E, sobretudo, um policial pode ser ético. Ele não tem que ser corrupto. Ele não tem que ser um boçal, um estúpido.

• A idade de Espinosa
O meu personagem Espinosa é histórico ou não? Em O silêncio da chuva, ele tinha 42 anos. E o que eu faço com ele? No ano seguinte, Espinosa deve ter 43? E, no outro, 44? Já escrevo há dez anos. Ele teria, hoje, 52? O personagem é histórico ou não? Cristalizo Espinosa nos 42 anos? Ele continuará sempre com essa idade? É uma dúvida atroz. A própria permanência do personagem pede que algo aconteça. Ele é amante de uma moça há não sei quanto tempo. E não acontece nada? Eles vão ficar sempre naquela enrolação? Simenon fez o seu Maigret se aposentar, envelhecer. Conferiu historicidade ao seu personagem, mas só depois de um certo tempo. E olha que ele escreveu uma loucura de livros: quase 400. Pois durante um bom tempo, Maigret foi aistórico. De repente, começou a apresentar certas características da idade, como que sugerindo que sofreria alguma mutação, passando de aistórico para histórico. Eu estou sentindo a necessidade de, pelo menos, dar alguns sinais de historicidade para Espinosa. Inevitavelmente, chegará uma hora em que isso vai ter que acontecer. A historicidade dele não precisa obedecer à minha cronologia ou à do leitor. Ele pode ser mais lento. Mas de qualquer maneira pode mudar.

• Inabitação
Na literatura policial, acho Patrícia Highsmith uma beleza. Acho Cornell Woolrich uma beleza. Acho Chandler e Hammett muito bons. São autores que me habitam há muito tempo. Agora, fora da literatura policial, essa enumeração é vastíssima. Tenho uma predileção particular por Dostoiévski. Gosto imensamente de Conrad, Melville e Faulkner, para citar os mais clássicos. Gosto muito de um americano contemporâneo, Cormac McCarthy, que escreveu a Trilogia da fronteira, um escritor belíssimo. Enfim, falar de preferências é difícil, porque tem muita gente boa. Agora, quanto a quem me influencia, é impossível dizer. De certa maneira, você vai sendo habitado por esses autores e personagens. Essa presença, eu chamo de “inabitação”. Com isso, quero dizer que sou habitado por uma série de autores e personagens literários.

O poeta não fala sobre o amor. Ele faz o amor falar. Ele não fala sobre a amada. De alguma maneira, ele a faz falar. E assim com a dor, o sofrimento, a realidade. O poeta tenta fazer a realidade se expressar pela palavra.

• Nietzsche
Acho Nietzsche um autor esplêndido, um dos gênios da contemporaneidade. Ele está exatamente no limiar, na fronteira onde estão os pensadores que operam a passagem da filosofia moderna para o pensamento contemporâneo, ou do pensamento da identidade para o pensamento da diferença. É um conjunto em que Freud e, mais tarde, Deleuze e Foucault também se incluem. Eu, de minha parte, incluo nele um pedaço de Hegel. Nesse bolo, Nietzsche é de uma generosidade espantosa. Não só no comentário que ele faz do pensamento grego e pré-socrático — é genial, assim como são os seus livros e os seus textos. Assim falou Zaratustra é uma beleza. Mas nunca consegui tirar Nietzsche da filosofia e botá-lo na literatura. Porque a minha entrada nele foi via filosofia. Então, para mim, apesar de ele ser um filósofo não-conceitual, ou pelo menos não-conceitual classicamente, Nietzsche permanece sendo um filósofo. Não o abordo pelo lado da literatura. Quando o cutuco, cutuco o filósofo, e não o literato. […]Deleuze diz que Nietzsche não trabalhava com conceitos, mas com personagens conceituais. E é interessante isso. Ou seja, é como se o pensamento conceitual de Nietzsche fosse “atuado”. É como se ele fizesse um teatro com aqueles personagens conceituais. Ele fazia filosofia ao vivo. Uma visão interessante. Mas continua para mim com a marca do filósofo, muito forte.

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