Foto: Guilherme Pupo
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Leticia Wierzchowski

A terceira edição do Paiol Literário 2018 contou com a presença de Leticia Wierzchowski

Leticia Wierzchowski foi a terceira convidada da temporada 2018 do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio da Fundação Cultural de Curitiba. O bate-papo aconteceu em 9 de agosto, no Teatro Paiol, em Curitiba (PR), com mediação do jornalista e escritor Rogério Pereira.

Gaúcha de Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos, em 1998, com O anjo e o resto de nós. A partir de então, não passou mais de dois anos sem lançar um novo livro. O sucesso veio já em 2002, com a publicação do romance A casa das sete mulheres, adaptado pela Rede Globo, no ano seguinte, numa minissérie. A obra também deu origem a uma trilogia homônima, de mais de 1.500 páginas, composta também por Um farol no Pampa (2004) e pelo recente Travessia (2017).

Na conversa transcrita a seguir, a autora de, entre outros, Neptuno (2012), vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura, e Sal (2013) fala de sua inusitada trajetória profissional, critica a forma que as escolas abordam a leitura, discute o sucesso e suas consequências e, entre outros assuntos, fala do romance que lança neste ano, O menino que comeu uma biblioteca.

• Descobrindo a leitura
Sempre fui uma pessoa muito criativa. Na minha casa só havia dois livros, e eles nem eram guardados dentro de casa — olha como desprezavam a literatura. Eram guardados no quartinho dos fundos, tipo um quarto de despejo, onde ficavam as coisas que ninguém dava bola. Achei os livros lá, e li. Fui a pessoa que começou a ler na minha casa. Por quê? Porque encontrei a maior possibilidade criativa. Para que brincar de boneca, se podia ler? É muito melhor. Comecei a ler, ler com fervor. Não consegui contaminar minha família. Eles leem razoavelmente, mas não da maneira que eu leio.

• Por que ler ficção
Nós todos seríamos muito melhores se lêssemos ficção. De todos os processos de expressão artística que a humanidade criou, a literatura de ficção é a que mais promove alteridade, nos ensina a sermos empáticos, ou seja, nos colocarmos no lugar do outro. E a nossa sociedade — tão egoísta, tão cheia de limitações — melhoraria muito se as pessoas lessem ficção. Porque só nos livros a gente consegue ser outra pessoa muito diferente de nós mesmos, entender suas dificuldades, seus medos, seus anseios, suas dúvidas. É o exercício mais bonito e mais construtivo que o ser humano pode fazer, o exercício da empatia, da alteridade.

• Empatia
Recentemente, aconteceu uma história que me marcou muito e mostra como a empatia resolveria tantas coisas na vida do ser humano. Estamos sempre julgando ou analisando os outros sob o nosso próprio ponto de vista, sem nunca nos colocarmos em seu lugar. Esse exercício seria transformador na nossa sociedade. Isso aconteceu em 2015, no Canadá. Não lembro todo o nome dele, mas o primeiro é William — essa história é real e, inclusive, segundo li, os direitos foram comprados para o cinema. Esse garoto tinha 14 anos — agora já deve ter 17, 18 —, era um menino normal, estudioso, que tinha uma característica: gostava muito de História, fundamentalmente a história dos povos pré-colombianos. Ele entrou num fórum de pesquisas de debates históricos na internet, comandado por um professor. Havia pessoas de vários lugares do mundo. Naquele momento, a questão levantada era por que os Maias foram a única civilização humana que construiu suas cidades longe do mar, longe da água, sendo que eles, estando ali no México e na América Central, tinham todo aquele mar por perto. Noventa e oito por cento das cidades Maias foram construídas em lugares muito altos ou no meio da selva, quase nenhuma na praia — Tulum talvez seja uma das únicas que fica na beira do mar. Como a água é fundamental para os seres humanos, não só para a sobrevivência mas para o transporte e comércio, ninguém nunca tinha entendido por que os Maias tinham escondido suas cidades. Essa questão foi levantada no fórum e todo mundo começou a debater. Depois que tudo aconteceu, esse menino foi entrevistado por um monte de veículos de comunicação. Disse que começou a pensar sobre isso e que não chegava a conclusão nenhuma. Um dia ele teve o seguinte insight: como é que vou entender um Maia pensando como um adolescente do século 21 no Canadá? Eu tenho de pensar como um Maia. Vou fazer de conta de que sou um Maia. Ele disse: só li coisas que os Maias liam, tentei comer coisas que os Maias comiam. Tentava ser um Maia. Então teve a seguinte ideia: a gente está pensando os Maias com os nossos valores, e se deu conta de que os Maias foram os grandes astrônomos da História — até hoje a gente usa conceitos da Astronomia que vêm dos Maias. Ele pensou: por que a gente está olhando para o chão? Será que a gente não deveria olhar para o céu? Os Maias olhavam para o céu o tempo inteiro. E o menino, sozinho na casa dele, pegou um mapa das constelações, comparou esse mapa com um mapa geográfico do México e da América Central e descobriu, sozinho, que embaixo de cada grande estrelas, das constelações que estavam sobre essa região onde os Maias habitavam, tinha uma cidade. Desvendou sozinho, só pensando como um Maia, uma das questões que ninguém nunca tinha conseguido concluir. E mais: ele viu que tinha uma estrela que não tinha uma cidade embaixo e apresentou isso no fórum. Acabaram pesquisando. Mandou-se uma equipe de arqueólogos para essa região, com as coordenadas já definidas, e se encontrou uma cidade Maia. O menino descobriu uma cidade Maia na casa dele, simplesmente pensando como um — praticando o exercício da alteridade, da empatia. Não sendo ele, mas tentando ser o outro. Essa é a grande lição que a literatura dá sempre pra gente: tentar exercer o olhar do outro, o sentimento do outro. Por isso é fundamental.

• Diversão
Sou partidária de uma frase do [Moacyr] Scliar: se um escritor não se diverte escrevendo, o leitor não se divertirá lendo. Escrevo porque sou feliz escrevendo. Qual é o meu dia ideal? Corri, fiz musculação e fiquei em casa o dia inteiro escrevendo. Esse é meu dia ideal. Sou feliz da vida fazendo isso. Só de noite que não, tá? Gosto de sair, também. Mas de dia, sim. Sou feliz fazendo isso.

• Personas
Com o passar do tempo — publico há 20 anos — o escritor vai aprendendo a separar as duas personas que tem dentro de si: seu lado instintivo, de inspiração, e aquele outro que sabe que um leitor está entrando na história junto com ele, que está contando uma história para um leitor imaginário. E esse leitor precisa ter os subterfúgios, as informações necessárias para entender a história que estou construindo. O leitor não pode se perder. É preciso esse exercício de controlar a história e exercer o olhar do leitor — saber que tem alguém que vai ler aquilo, que tem que entender, que você tem que dar os instrumentos para que ele possa seguir no caminho.

• Sina
É triste. Escrever é uma sina, digamos assim. Mas não tem outra maneira de viver, para mim, do que essa [escrevendo]. E, apesar de a gente ter poucos leitores, nós temos leitores. Então os leitores que me leem, que leem e gostam de livros, formam sim uma comunidade que acho que ainda tem condições de disseminar e trabalhar melhor isso.

• Difícil missão
É cada vez mais difícil, num mundo em que as coisas são muito ágeis, segurar um leitor. O García Márquez falava: é mais difícil agarrar um leitor do que um coelho. Hoje é mais difícil ainda, porque todo mundo está ali no WhatsApp. Até eu mesmo, quando estou lendo, paro para responder mensagens. A gente tem muitas demandas. Por outro lado, também, tem esse convívio com a palavra escrita. Hoje em dia, a gente escreve muito mais. Todo mundo escreve muito mais do que se escrevia há 20 anos. Todo mundo se comunica com a palavra. Talvez isso possa se reverter e ajudar as pessoas a lerem mais. Não sou assim pessimista. Vejo muita gente lendo. Claro que gostaria que fosse muito mais.

Fotos: Guilherme Pupo

“Nossa sociedade — tão egoísta, tão cheia de limitações — melhoraria muito se as pessoas lessem ficção.”

• Supressão da descrença
Um livro explica sua própria leitura — quando bem escrito — ao leitor. Todos nós, quando pegamos um livro, não sabemos o que vamos encontrar ali. Livro não tem bula. O autor tem que saber ensinar a leitura do livro ao leitor. Gosto muito de uma frase do Orhan Pamuk, que diz que a literatura se instala sob um contrato feito entre escritor, narrador e leitor. Ele chama de supressão da descrença. Toda vez que nós pegamos um livro de ficção, compramos ou o tiramos da estante, sabemos que aquilo é uma invenção. Que nem o Erico [Verissimo] sempre falava: eu me ocupo em contar histórias inventadas sobre gente que nunca existiu. O leitor pega o livro e sabe que é ficção. Nada daquilo é real. Mas, se o escritor fizer bem seu trabalho, o leitor vai ler e o livro vai acabar sendo mais importante do que a própria realidade. Quantas vezes a gente está lendo superemocionado um livro, chorando, enquanto o Jornal Nacional passa uma tragédia? E você está emocionado com o livro, e não com a realidade. Por quê? Porque a gente entrou naquele universo. Agora, toda vez que o autor comete um erro, quando você percebe uma coisa que parece não funcionar, o leitor fica meio de sobreaviso, esperando o próximo erro. Quebra-se o contrato de supressão da descrença. O leitor passa a descrer naquilo. A importância do romance é ter sua própria lógica interna — não precisa ser real, mas crível. Esse é um cuidado que tenho ao escrever: conseguir passar esse universo ficcional ao meu leitor, com todos os elementos que ele precisa para circular por aquela história.

• Desfavor
A escola lida mal, em geral, com a literatura. Com o exercício da leitura. Em algum momento na vida do aluno, isso deixa de ser uma escolha, uma opção, e passa a ser uma obrigação. A gente sempre gosta de ler, mas um livro que combine conosco. Todo mundo come, mas eu, por exemplo, detesto comer fígado. Se me obrigarem a comer fígado, vou passar mal. E o aluno vem, num determinado momento, podendo escolher o livro que quer — ler é um divertimento, um prazer — e, de repente, começa a receber uma lista de leitura obrigatória e tem que fazer uma prova sobre aquilo. Isso, para mim, é a coisa que mais afasta o leitor do livro. Infelizmente, nosso ensino tem uma estrutura que desensina a ler, ao invés de ensinar. Esse é um problema.

• Como melhorar?
O problema é que os próprios professores — estou sempre generalizando — leem pouco. Aqueles livros não significam nada para eles. Se um professor leva para sala de aula um livro pelo qual se apaixonou, a paixão contagia seus alunos. Uma das coisas mais tristes que observei recentemente foi o seguinte: o meu filho mais velho estuda num colégio grande em Porto Alegre e é leitor. Aos 12 anos, leu Cem anos de solidão. Ele lê. É claro que agora — aos 17 anos — lê menos do que lia com 11, 12, porque está namorando, saindo e tal. Mas está sempre lendo. E ele tinha que ler O continente, do Erico Verissimo. Me disse: mãe, eu calculei e tenho que ler 30 páginas por dia para chegar no dia da prova. Eu perguntei: prova? Sim, tem prova. Ele pegou O continente e claro que no primeiro dia leu 60 páginas. O cálculo dele foi por água abaixo, porque estava amando o livro. Amou ler O continente, mas foi fazer a prova e tirou nota ruim. Como é que um professor vai julgar a interpretação de um leitor? Eu sou escritora, escrevo livros. Muitas vezes, leitores vêm falar comigo, ou alunos que fazem oficina de escrita criativa comigo, e trazem comentários e analogias sobre meus livros totalmente pertinentes que nunca me passaram pela cabeça. Não foram coisas cerebrais, aconteceram sem eu perceber. E concordo. Fico até pasma. Como é que uma professora vai julgar a interpretação de um aluno em relação ao livro? Não é cartesiano. É muito mais fácil dar uma prova de matemática — sempre vai ter um número correto que eles vão acertar. Então acho isso um desserviço. Ele teve uma experiência maravilhosa de leitura e uma péssima experiência escolar. Tirou nota ruim.

• Exemplo é fundamental
Meus filhos leem bastante. Por quê? Porque convivem com pessoas que leem — os pais leram sempre — e têm acesso aos livros. Se eles têm que ler um livro na escola que acham chato, têm parâmetro para entender que no momento não estão lendo algo que gostam, mas que ler é bom. A maioria dos jovens, das crianças e adolescentes só tem o parâmetro da escola. Não têm outros livros para ler. E como isso é mal administrado na escola, estamos criando um país de não leitores.

• Literatura como remédio
Em Porto Alegre, assisti à palestra do José Eduardo Agualusa, no Fronteiras do Pensamento. Ele contou que um amigo em Angola tem o sonho de fazer uma Farmácia Literária a partir de um hospital desativado. Está tentando conseguir patrocínio. O objetivo é que as pessoas cheguem lá e digam: estou com um problema, depressão. “Ah, então você tem que ler Tolstói.” As pessoas se hospedam lá e ficam lendo por um tempo, até se curarem de suas dores e seus problemas. Acho que a literatura ensina mesmo as pessoas a melhorarem.

• Tentativa e erro
Meu pai, quando eu morava com ele, me falava: sei que tu tem talento, Leticia, só não sei para quê. Ainda bem que descobri. Sempre fui uma pessoa muito criativa. Estava sempre tentando achar uma maneira de expressar minha criatividade. Eu desenhava muito bem, então quando chegou aquele momento tenebroso em que a pessoa tem que decidir o que quer ser na vida — é ridículo, eu nem tenho certeza de nada até hoje. Por que um adolescente tem que ter certeza aos 16 anos? É absurdo. Tinha que fazer uma faculdade. Desenhava bem, tinha tendência a ser criativa. A família falou: bom, ou faz artes plásticas e morre de fome, ou faz arquitetura e vem trabalhar com a família. Meu avô polonês montou uma firma de construção civil e a família seguiu trabalhando com isso. Fui fazer arquitetura. Detestei arquitetura. Detestei. O que eu gostava mesmo de desenhar era moda. Sempre desenhei croquis de moda. Então, teve uma greve enorme na universidade, durou seis meses. Comecei a fazer corte e costura, modelagem. Aprendi a costurar. Os criativos têm uma fama de serem desorganizados. Eu sou uma pessoa de ação, por isso escrevo tanto. Produzo bastante. Estou sempre fazendo. Gosto de fazer. Mesmo no universo das ideias, tenho que trazê-las para a prática. Quando comecei a fazer roupas, saí do curso. Minha mãe ficou de mal comigo por cinco meses. Falei: vou montar uma confecção. Meu pai me falou: se tu não quer estudar, vai trabalhar. Tinha juntado uma graninha trabalhando com meu pai — sabe aquelas pessoas que ficam entediadas mostrando planta para as pessoas comprarem apartamentos? Eu fazia isso — e, com esse dinheiro, comprei umas máquinas e comecei uma confecção. Era bem jovem, tinha uns 22 anos. Uma prima, formada em contabilidade, ficou minha sócia. A gente alugou uma sala, depois duas salas. Estava dando tudo certo, a família já estava respirando aliviada comigo.

• Descoberta da escrita
Minha prima era casada, engravidou e foi ter bebê. Saiu em licença maternidade. Fiquei cuidando de tudo na confecção. Lembro muito bem desse dia, que estava esperando uma vendedora para fazer um acerto, o que não seria meu trabalho cotidiano, e as nossas costureiras já tinham ido embora. Fiquei sozinha na confecção e naquele tempo não tinha computador. A gente tinha um computador em casa, da família inteira, mas na confecção era máquina de escrever. E tinha um rádio. Não era um lugar chique, tinha um rádio só. Estava passando A Voz do Brasil. Sempre carreguei um livro na bolsa e naquele dia não tinha levado, então não tinha nada para fazer. Desliguei A Voz do Brasil. A mulher não chegava nunca. Pensei: já que não tenho nada para ler, vou escrever uma história. Coloquei uma folha na máquina de escrever e comecei. Tive uma sensação, naquele momento, um epifania até — “posso fazer tudo o que eu quiser. Só preciso de palavras”. Posso construir uma pessoa, a roupa que ela usa, a casa que ela mora, a rua, cidade. O mundo que eu quiser. Não tenho que ter orçamento, régua, escala, nanquim, tecido, molde, costureira. Não preciso de nada. Só dependo de mim e das minhas palavras.

Fotos: Guilherme Pupo

“Sou muito organizada na vida real para que ela não penetre no meu período de escritura.”

• Escrevendo desesperadamente
Todos os dias, quando acabava o horário da confecção, eu ficava mais tempo para escrever. Fui ficando cada vez mais, cada vez mais. Chegou uma hora que eu falei: Leticia, tu não pode mais enganar a ti mesma. Tu está odiando a confecção, só espera a hora de ficar escrevendo. Um dia voltei para casa, chamei meu pai e disse: olha, tenho uma notícia. Vou fechar a confecção. Todo mundo caiu de novo e tal. Meu pai falou: se tu não quer mais ter teu negócio, vem trabalhar no meu. Me deu um emprego na construção civil. Eu trabalhava das 9h às 16h, podia chegar em casa — ao invés de ficar preocupada com imposto e funcionários — e ficar escrevendo. Comecei a escrever desesperadamente, a ponto de fazer coisas absurdas.

• Em busca do sim
Sempre tive a seguinte noção: o não eu já tenho, então vou atrás do sim. Quando comecei a tentar publicar, ouvi muitos nãos. Naquele tempo não tinha e-mail, então era tudo por carta. Escrevi um monte — a maioria se perdeu, graças a Deus. Mas alguns sobreviveram, os melhorzinhos. Eu escrevia, mandava o livro e recebia uma carta de “não”. E as cartas eram sempre iguais. Eu guardava as cartas numa pasta. Um dia, pensei: não está dando, nunca ninguém vai me publicar. Vou tentar fazer uma novela. Nunca tinha feito um roteiro na vida. Peguei meu livro e transformei num roteiro. Peguei um avião, fui pro Rio — com o décimo terceiro salário da empresa do meu pai, tirei xerox de tudo aquilo, paguei um excesso de bagagem enorme porque carreguei um monte de material impresso e fui em todas as tevês levar minha ideia. Claro que o elevador estava no térreo e o troço já estava no lixo, mas nunca desisti. Um dia ganhei um concurso em Porto Alegre, um edital da prefeitura, e foi assim que publiquei meu primeiro romance [O anjo e o resto de nós], em 1998.

• Motivação primeira
Naquele momento, eu queria me distrair um pouco daquele tédio de estar sozinha numa sala fechada, sem ninguém. Espantar o tédio, achar alguma coisa para fazer, buscar companhia. E talvez também estivesse, de alguma maneira, acumulando aquilo dentro de mim e faltava a oportunidade de colocar para fora. Coloquei aquela personagem no papel e fui, e fui, e nunca mais parei de escrever. Meu ex-marido dizia que, quando eu não escrevia, ficava muito louca. Realmente é um remédio para mim, escrever. É uma cura. Nunca mais consegui parar de escrever.

• Começo instintivo
A primeira coisa que ouvi quando comecei a escrever é que eu não tinha nada para contar porque não tinha nenhuma experiência de vida. As pessoas sempre acham que você tem que viver para contar. É claro que viver torna todos mais experientes, mas um ficcionista não pode depender só disso. Porque os livros não são só sobre nós. Estamos inventando histórias. Sempre me achei da turma do Erico Verissimo: sou uma contadora de histórias. O que eu queria era tirar as pessoas de suas vidas e levá-las para outra vida, para outro espaço, tempo, experiência. Assim como fui uma leitora muito livre — ninguém dava bola para o que eu lia, ninguém me orientava nem nada; graças a Deus, sempre fui meio autodidata para tudo na vida — também fui uma escritora muito instintiva no começo.

• Num outro mundo
O [Orhan] Pamuk fala que existem dois tipos de escritores, em O romancista ingênuo e o sentimental. O ingênuo seria aquele escritor que trabalha na intuição e o sentimental, aquele que planeja sua história, calcula. Ele diz que, com o passar do tempo, o ideal é que o escritor ingênuo se transforme no sentimental. Eu comecei muito ingênua, só queria fazer aquilo, entrar naquela história e viver aquilo. Surpreender as pessoas com histórias. Sou de uma turma para a qual o personagem é muito importante. Para mim, o personagem é o sangue de uma história. Não tenho muito prazer em escrever uma história que se passe na cidade onde eu vivo, na rua em que eu moro — a não ser que queira me livrar de alguma coisa. O escritor também se livra das coisas escrevendo. Meu prazer é justamente não viver a vida que vivo. Não sou uma escritora de livros contemporâneos — problema do homem da metrópole, essas coisas assim. Eu vou para outra coisa. Gosto de viver metade do meu dia num outro mundo, que não é esse no qual tenho que viver minha vida real.

• A casa das sete mulheres
Minha história foi divertida. O meu marido, meu único marido, pai dos meus filhos, me conheceu porque leu meu primeiro romance, mandou um e-mail para a editora e ela me repassou. Ele dizia: posso pegar um avião e jantar contigo? Casei com ele e fui morar em São Paulo. Lá em São Paulo — éramos ambos leitores — ele leu, antes de mim, Os varões assinalados, do Tabajara Ruas. Falou pra mim: tem um livro aqui dentro, uma história para tu contar. Não vou te falar nada, não quero te influenciar. Lê. Quando tu lê, tu vê se acha o que estou dizendo. Peguei Os varões assinalados para ler. O livro é incrível. É essa coisa que a literatura faz: você conhece a História no colégio, só tem uma dimensão e, de repente, a boa ficção te coloca naquela vida — sangue, gente, amor, fúria. Bom, o livro é incrível. Aí, lá pelas tantas, tem uma parte que o Tabajara escreve: naquela noite, Giuseppe Garibaldi chegou na casa das sete mulheres. Porque, de fato, Garibaldi é mandado para essa região, que era da família do Bento Gonçalves para, num estaleiro abandonado, fazer os barcos farroupilhas. Isso era do lado da casa onde estavam as parentas do Bento, e ele conhece a Manuela. Li aquilo — “chegou na casa das sete mulheres” — e liguei para o meu ex-marido: tu acha que eu tenho que escrever a casa das sete mulheres? Ele falou: é. Liguei para o Tabajara e pedi para escrever um livro inspirado na casa das sete mulheres, ele falou: pode.

• Publicação
Quando comecei a escrever A casa das sete mulheres, morando em São Paulo, em primeiro lugar achava que ninguém ia publicá-lo. Pensava: quem vai querer publicar um livro em que são sete mulheres trancadas dez anos numa casa, no século 19? Parecia um tédio, né? Mas eu acreditava na história. Fui morar em São Paulo. Eu era publicada até então por editoras gaúchas — L&PM, Artes e Ofícios — e essas editoras não tinham, naquele tempo, uma penetração no sudeste do país. Eu não tinha livros em São Paulo. Então, já que me mudei para São Paulo, tentei uma editora que me distribuísse com mais equanimidade. Acabei conhecendo minha agente literária [Lucia Riff], ela me apresentou para a Record. A Luciana Villas-Boas era a editora da Record na época e comprou o livro que eu tinha acabado de escrever — um romance publicado muitos anos depois, chamado De um grande amor e de uma perdição maior ainda. Ela comprou esse livro para publicar. Assinei o contrato. No dia que assinei o contrato, ela falou: hoje nós vamos almoçar para comemorar. Fui almoçar com ela e, no almoço, ela perguntou: você está escrevendo alguma coisa a mais? Falei: estou escrevendo a história de sete mulheres, parentas do Bento Gonçalves. Ela olhou pra mim e falou: para tudo. Não vou publicar esse livro por enquanto. Eu tinha acabado de assinar o contrato. Fiquei puta da cara, né? Estou louca para publicar e ela “vou esperar tu terminar esse romance e vou te lançar com ele, porque esse livro vai fazer sucesso”. Bom, daí surtei. Comecei a escrever o livro dia e noite, dia e noite. Ela teve intuição. O livro foi realmente parar na Globo. Foi uma coisa impressionante. Mas tudo tem seu lado ruim. Carreguei, e carrego, o preconceito de fazer literatura que vai para a tevê.

• Sucesso e preconceito
Eu comigo mesma, não mudou nada [depois do sucesso d‘A casa das sete mulheres]. Mudou da porta para fora. Na época, minha editora era a Luciana Villas-Boas. Ela disse: olha, você ganhou dez anos aí, pegou um trem-bala, dez anos de trabalho em um ano. Isso aconteceu. As pessoas falavam: nossa, como você tem sorte! De certa maneira, aconteceu que eu tinha escrito um livro que caiu nas mãos da pessoa certa, na hora certa. Mas se eu não tivesse escrito o livro, outro teria caído nas mãos. Essa conjunção de fatores foi que mudou minha carreira. A minha carreira, não eu. Minha relação com as histórias continua a mesma de antes. Amo escrever, escrevo as histórias. Não estou nem aí se acham que vão ter leitores ou não. Preciso ir atrás das histórias. Mas isso mudou minha carreira, sim. Abriu portas, comecei a ser publicada no exterior. Também mudou para um lado ruim, carrego muito preconceito por causa disso.

• Consequências
O problema do ser humano é que ele rotula tudo. Tudo é sempre rotulado. Detesto qualquer tipo de rótulo. Mas, enfim, o que posso fazer em relação a isso? Quando me perguntam, falo: qual é a literatura que não é de entretenimento? Toda literatura se propõe a entreter. Evidentemente que eu também me proponho a causar outras coisas no meu leitor. Quero que ele aprenda, se emocione, se transforme lendo um livro. O que me incomodou, na época, primeiro foi que muitas pessoas que eram amigas minha viraram inimigas ferrenhas do nada, só porque fiz sucesso. O Tom Jobim falava: fazer sucesso é uma ofensa pessoal. As pessoas se ofendem. Por outro lado, foi um aprendizado que veio cedo na minha carreira. Hoje em dia já não mais, estou ficando velha e já nem dou bola para isso, mas confesso que, depois de ficar famosa com A casa das sete mulheres, virei uma pessoa e uma escritora muito mais tímida do que antes. Eu não era tímida. Era totalmente irresponsável, convivia com escritores sem ter medo deles. Depois, me afastei. Fiquei apavorada. Porque estavam sempre me criticando. Mas continuei escrevendo. E sempre tive alguns amigos escritores, enfim. Mas nunca fui uma escritora atuante no meio dos escritores. Hoje em dia já não dou mais bola para nada, faço o que eu quiser. Não tem problema nenhum. Fiz até uma trilogia, da qual tenho orgulho profundo.

Fotos: Guilherme Pupo

“A literatura também é, para mim, essa liberdade de poder consertar os erros da vida real.”

• Trilogia
Por que demorei tanto para escrever a trilogia? Você imagina passar anos falando desse assunto. A casa das sete mulheres tinha um esquema que era contar os dez anos da Revolução Farroupilha, então chegou uma hora que a revolução acabou e eu tinha que acabar o livro, senão ia estragar minha ideia. Só que, assim que terminei o livro, comecei a escrever uma continuação. Antes de saber que viraria série, comecei a escrever. Escrevi quase 200 páginas. A casa das sete mulheres saiu em maio. Em agosto, o Jayme Monjardim [diretor de cinema] ligou para a minha casa do nada e disse: quero adaptar seu livro para a tevê. Fiquei meio chocada. E aí o negócio foi todo rápido. Em setembro já estavam no Rio Grande do Sul procurando locação. Quando comecei a ajudá-los, me dei conta que não dava para escrever e falar o dia inteiro sobre isso. Guardei as 200 páginas que tinha escrito. Quando a série estreou e fez um sucesso danado, o Jayme me ligou, no final das gravações: Leticia, tu tem vontade de continuar? Falei: já tenho até 200 páginas. Ele falou: então termina. Porque, de repente, consigo emplacar uma continuação d‘A casa das sete mulheres. Quando peguei as 200 páginas para ler, me dei conta que elas não serviam mais de nada, porque colidiam frontalmente com o imaginário coletivo que a série A casa das sete mulheres tinha criado. Eu mesma, até hoje, quando penso no Garibaldi, penso no Thiago Lacerda. Como é que o leitor não vai pensar? Tudo aquilo que eu tinha feito não servia. Joguei fora e comecei de novo. Quem é que não tentaria? Vou tentar ter outra série na Globo. Escrevi Um farol no Pampa, que tem como centro da história a Guerra do Paraguai. Me afasto da Revolução Farroupilha e vou para a Guerra do Paraguai. Mas não virou uma série. Aí, quando fiz Um farol no Pampa, disse: um dia vou terminar isso aqui. Só que fiquei muito tempo falando sobre esse assunto, então os anos passaram e não tive vontade. Só em 2016 retomei a ideia.

• Organização
Eu sou superorganizada. Sou partidária do Pablo Picasso, que falava: “que a inspiração me pegue trabalhando”. Porque, assim, um músico pode fazer uma música linda — não é um menosprezo, é uma sorte — numa noite. Pode. Agora, para o escritor é humanamente impossível que ele escreva um romance numa noite. Em dez dias até pode ser, um livro curto. Mas, se você não se organizar, se perde no que está fazendo. E a coisa mais comum que acontece é o escritor se perder no próprio labirinto que construiu. Então sou muito organizada para trabalhar, e sempre escrevi bastante. É claro que também jogo muita coisa fora, mas produzo com facilidade. Não tenho bloqueio criativo. Sei da onde vim e para onde vou.

• Coerência interna
Me preocupo com a coerência interna do romance. Porque a literatura não é só sobre o que aconteceu, mas sobre o que poderia ter acontecido. Depende do que eu quero falar. E, de fato, a História também é uma versão dos fatos. Quando fui pesquisar, para escrever A casa das sete mulheres, encontrei três historiadores que davam causa mortis diferentes para o Bento Gonçalves, que morreu dois anos depois do final da Revolução Farroupilha. Um dizia que ele tinha morrido de um problema pulmonar — totalmente viável, dez anos na guerra, no frio, na chuva —, outro dizia que ele tinha morrido de doença venérea — também totalmente viável, não tinha penicilina — e outro dizia que ele tinha morrido de tumor no cérebro. O Tabajara Ruas, no seu romance, provavelmente escolheu a versão tumor no cérebro porque, no livro dele, o Bento vai ficando progressivamente com dor de cabeça. Pensei: coitado do Bento, não vou matá-lo de doença venérea. Escolhi o negócio pulmonar. O romancista é um ilusionista. Não tem que saber tudo sobre alguma coisa, mas as coisas fundamentais. As coisas certas, eu diria. O grande erro de muitos romances históricos é que o escritor pesquisa tanto, e ele tem tanto orgulho de tudo que sabe, que quer colocar tudo que sabe no livro. O Erico Verissimo escreveu a trilogia O tempo e o vento só lendo jornais da época. Só. Não leu um livro de História. Ele fala: “se eu pesquisasse demais, ia encher meu livro de mobília desnecessária”. Eu até pesquiso bastante, mas criei uma sistemática de pesquisa. Pesquiso para ver se me interessa ou não. Sou uma romancista. Está escrito lá: ficção. Não estou nem aí mesmo.

• Redes sociais
É muito fácil você dizer coisas sem estar lá fisicamente. As pessoas, nas redes sociais, as mais virulentas, são como cachorros atrás do portão. Sabe aqueles cachorros que ficam latindo quando você passa na rua, daí abre o portão e eles ficam mansos? Você entra e eles são bem mansinhos. As pessoas são assim, vão lá e dizem: tem que morrer mesmo. Você vai ver e é uma vovozinha superboazinha que precisa de uma válvula de escape, a rede social. Tento não julgar as pessoas pela rede social. Algumas coisas que acontecem são insuportáveis. Mas, por exemplo, eu nunca expulsei uma pessoa da minha rede social. Ela pode me chamar do que quiser. Digo: olha, não vou te tratar da forma que você me trata. Fica aqui falando suas besteiras, tudo bem. Bola pra frente.

• Para crianças
Adoro fazer ficção para crianças. Acho um alívio. E criança é uma coisa maravilhosa. Chamava meus filhos para opinarem sobre algo e eles diziam: está horrível, mãe. Adoro isso, essa honestidade da criança. Tem que ganhar a criança já num primeiro momento. Comecei a escrever para crianças por ver crianças crescendo ao meu redor. A criança tem um olhar maravilhoso do mundo que a gente vai perdendo depois de adulto, e a convivência com crianças nos relembra a criança que nós fomos. Todo escritor é um pouco criança para sempre, ainda mais se for geminiano como eu. A minha literatura infantil acompanhou a história dos meus filhos — coisas que aconteceram com eles viraram livros.

• Método de trabalho
Acredito na organização. A criatividade é naturalmente desorganizada, é um mundo desorganizado. Todo criativo é ansioso, angustiado. Eu sou também. Então, criei um método de trabalho: nele, é quase como você esticar uma corda num precipício. Sei que se eu for caminhando agarrada nessa corda não vou cair, por mais que tenha tonturas e a tendência seja me espatifar lá no chão. Sempre trabalho da mesma forma: primeiro, determino horários de escrever. Porque mesmo que esse seja minha profissão, a vida real é muito urgente — invade a ficção. Sou muito organizada na vida real para que ela não penetre no meu período de escritura. Esse clichê que a gente fala todo dia de “não parei um minuto hoje” não pode funcionar para o escritor. O escritor tem que ter tempo sobrando para olhar para o computador. Para pensar, analisar seus personagens. Então, quando estou escrevendo um romance, acordo às seis da manhã. Seis e vinte estou sentada diante do computador. Assim, pelo menos até por volta de 10h20 trabalho na minha ficção. Nesse horário, o WhatsApp está quase em silêncio, as pessoas estão começando o dia. Tudo é mais quieto e funciona bem para mim. Meu filho pergunta: por que você levanta tão cedo, mãe, se você não tem patrão? Digo: tenho, estão todos dentro do computador esperando a mamãe.

• Turnos
Todos os dias sento às 6h20, se estou fazendo romance, e divido meu turno de trabalho em três partes. Na primeira parte, sempre releio tudo que escrevi no dia anterior, para entrar de novo na história, corrigir, tirar repetições, tirar bobagens, limar o texto. Vou fazer isso várias vezes, mas todos os dias começo com o que fiz no dia anterior. Aí por duas horas eu escrevo e, na última uma hora, planejo o que vou fazer no dia seguinte. Porque, ainda mais num romance histórico, em que tem muita informação para colocar, se você ficar olhando nas suas pesquisas e anotações o fogo se perde. Vejo todas as cenas que vou escrever no dia seguinte, busco todas as informações que preciso para elas e deixo ali. Não é literatura, são só anotações — 30 homens, 200 bois puxando dois barcos pelo Pampa, eles andaram nove dias embaixo de chuva, frio, um barco atolou, os barcos pesavam tantas toneladas. Tudo isso eu anoto, para não ter que pesquisar. No outro dia, quando vou escrever, tudo que tenho que saber está ali, daí faço a literatura. Faço a ficção.

• Inspiração não basta
Não adianta você ter método e pesquisa se não tiver inspiração. Não tiver talento para fazer. Mas acho que uma pessoa que só tem inspiração e não tem organização, não avança. Vai escrever um livro na vida.

• Estruturando o romance
Vou acompanhando a trajetória do personagem. Romance é um jogo de xadrez que você se propõe a jogar consigo mesma. Toda história traz as suas facilidade e dificuldades. Às vezes você nem sabe bem qual é, só descobre quando começa a fazer a pesquisa. Por exemplo, n’A casa das sete mulheres, como montei a estrutura do romance? De cara, pensei: são dez anos, vou dividir um capítulo para cada ano. Quando comecei a montar uma linha do tempo com os fatos, para ver tudo que tinha acontecido e o que eu precisaria inventar, me dei conta de que, embora quisesse dar ênfase à história de Manuela e Garibaldi, o Garibaldi só ficou um ano ali. Ou seja, a história principal era um décimo do livro. Como que eu ia fazer isso? Tinha que solucionar esse problema. Então, a partir daí, trouxe a Manuela para ser uma das narradoras. Porque, quando se tem um narrador em primeira pessoa, se está entrando no universo psicológico dele de uma maneira muito profunda. Apesar de o Garibaldi não estar fisicamente na história, se a Manuela contasse partes da história, ele estaria na cabeça dela. E também, para solucionar isso, esses diários da Manuela não são cronológicos. Alguns deles são escritos depois, quando ela já está velha, quando o Garibaldi até já morreu. Portanto, ela poderia ter uma dimensão, um olhar, uma análise diferentes do que aquilo que vinha acontecendo se ela estivesse contando no momento em que acontecia. Penso nesses jogos narrativos antes de começar uma história.

• Manuela e Anita
No caso da Anita e do Garibaldi, trouxe a Anita como uma das narradoras do livro para manter a linha, afinal, queria fazer uma trilogia. Se a Manuela narrava no primeiro livro, achei justo também que a Anita narrasse. Até porque as mulheres são só pegadas na história, pelo menos até hoje. A História foi feita por homens, para homens. Quando fui estudar a Manuela, que é uma figura totalmente desimportante — até A casa das sete mulheres estrear na televisão, ninguém sabia quem era a Manuela, não tinha nada dela. Hoje em dia, você põe lá no Google Manuela de Paula Ferreira e tem um monte de fotos dela. Mas eu não achei nada sobre a Manuela, só o que o Garibaldi falou sobre. Quando fui fazer a Anita e Garibaldi, pensei: vai ser tudo diferente, uma das grandes heroínas do mundo. A Anita Garibaldi está enterrada numa praça em Roma — coitada, foi enterrada pelo Mussolini ainda, o mausoléu dela foi feito pelo Mussolini. Você não tem noção, ninguém sabe nem quando a Anita nasceu. Ela era filha de uma família pobre que teve dez filhos, o pai só registrou os homens. Dava muito trabalho, para que ele iria registrar as mulheres? Não há nada sobre a Anita, só suposições. Sabe-se dela quando ela estava do lado do Garibaldi. E isso me espantou muito. Por isso, resolvi dar voz para que ela contasse a sua história. São essas coisas que me fazem construir esses meandros do romance.

• Direitos iguais
Considero que a mulher tem o mesmo direito que o homem. Nem mais, nem menos. Eu trouxe a Anita porque ela é uma mulher que quebrou todos os paradigmas. Foi uma mulher incrível. Me considero igual a qualquer homem, para o bem ou para o mal. Sempre que vou ao restaurante com um homem, digo: vamos dividir a conta. Acho isso justo, também. Adoro um homem que pague a conta para mim, que abra a porta do carro, que seja generoso. Mas isso não é uma obrigação, é uma escolha. É assim que penso o mundo.

• Cem anos de solidão
Muitos livros me marcaram, evidentemente. Mas o primeiro que me abalou foi Cem anos de solidão. Eu tinha um pouco de vontade de escrever e, quando li o livro, pensei que a realidade nem sempre é o que nossos olhos veem. Pode ser outra coisa. Aquilo me fascinou. Meu primeiro romance publicado, O anjo e o resto de nós, brinca com essa coisa do realismo mágico, porque isso foi uma fascinação para mim. O García Márquez foi uma revelação. Eu lia muito, e não comprava livros. A gente não comprava livros, não tinha esse acesso ao livro como existe hoje em dia. Eu pegava na biblioteca do clube que frequentava. Peguei Cem anos de solidão numa sexta de tarde, e me lembro que passei todo o final de semana só lendo. Minha mãe dizia: vem pelo menos almoçar. Eu ia com o livro. Cem anos de solidão foi um livro que me marcou profundamente.

Fotos: Guilherme Pupo

“A importância do romance é ter sua própria lógica interna — não precisa ser real, mas crível.”

• Fontes de inspiração
Cada história tem uma gênese. Por exemplo, A casa das sete mulheres veio da leitura de outro livro. Eu também me interesso muito pelas histórias que as pessoas contam. Fico juntando histórias. Vou lançar um romance agora em outubro — O menino que comeu uma biblioteca — e é a história de um menino — começa menino — na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Ele tinha um pai, uma mãe e um avô que era professor de literatura da Universidade de Cracóvia. Quando os nazistas invadem a Polônia, a primeira coisa que eles fazem é reunir a inteligência polonesa — os professores, os artistas — e fuzilá-la sistematicamente. Eles entraram nessa universidade e mataram todos os professores. Num desses episódios, no meu romance, esse avô é morto. E o menino perde o pai e a mãe. Essa história, o meu avô me contou. Meu avô veio da Polônia para o Brasil em 1936 e depois, quando a Segunda Guerra eclodiu, ele foi lutar — lutou como voluntário com os poloneses, e não com as tropas brasileiras. Quando a guerra acabou, meu avô desembarcou na Normandia — fez França, Holanda, Bélgica, Dinamarca e estava na Alemanha quando Hitler se suicidou. A Polônia fechou suas fronteiras para o mundo e ele não pôde atravessar para saber se a família estava viva ou morta, porque se ele entrasse lá, como polonês, ficaria preso, retido. Ele ficou dois anos trabalhando na Europa, nos serviços de paz, voltou para o Brasil e se naturalizou brasileiro, num processo que demorou oito anos, para então poder ir ver sua família. E quando ele foi para lá, voltou e contou muitas histórias sobre o que as pessoas tinham vivido na Segunda Guerra. Uma das histórias era de um menino que tinha vendido a biblioteca do avô no mercado negro para poder comer. Era o que ele podia fazer. Peguei essa história e construí o romance, que é sobre esse exercício da empatia. A leitura aproxima as pessoas. No meu romance, esse menino vai começar a vender livros para um oficial nazista que adorava literatura, estava na máquina nazista, mas era um grande leitor, e conhece esse menino. A literatura aproxima esses dois inimigos.

• Liberdade sobre o mundo
Adoro uma frase da Clarice Lispector: “escrever é a minha liberdade sobre o mundo”. Escrever é uma liberdade. Acho que a literatura serve para a gente mudar a realidade, se vingar da realidade. Fazer realidades paralelas. Isso, para mim, é a coisa mais maravilhosa que existe. Eu resolvo tudo na ficção. Quando me separei, fiz um romance chamado Navegue a lágrima. Pensei: vou me separar, isso vai dar merda, vai dar errado. E comecei um romance sobre isso. No meu romance, guardei meu casamento. Não quero mais voltar para o mesmo marido. É o meu melhor amigo, mas sempre digo para ele: nosso casamento está lá, no Navegue a lágrima. A literatura serve para eu salvar coisas nela. E para mudar coisas. Por exemplo, fui muito íntima do irmão mais novo da minha mãe, que era meu padrinho. Quando nasci, ele tinha 12 anos. A gente poderia ter sido irmãos. Minha avó, mãe dele, morreu quando ele tinha 11 anos. Portanto, quando minha mãe casou, logo depois ele acabou indo morar com a minha mãe. Ela era a irmã mais velha e ele sentia falta de uma figura feminina. Eu cresci com ele. Há 10 anos, quando ele tinha 48 anos, morreu. Escovando os dentes. Ele era um homem supersaudável, corria, nadava. Teve morte súbita. Aquilo foi um horror pra mim. Fiquei um tempão muito impactada, porque não pude me despedir do meu tio. Até que um dia falei: claro que posso, vou escrever um livro para isso. Escrevi um romance chamado Os Getka — o nome é horrível, desobedeci minha editora. A história de uma família polonesa, a família Getka. Nesse livro, de certa maneira, com muita ficção em cima, o personagem principal seria o meu tio Ricardo. Escrevi esse livro durante 10 meses — sonhei com ele todas as noites enquanto escrevia, todas — e, quando acabei, falei: deu. Me resolvi com meu “dindo”. A literatura também é, para mim, essa liberdade de poder consertar os erros da vida real.

• Biblioteca ideal
Minha biblioteca afetiva ideal está lá em casa. Não faltariam Philip Roth, Nabokov, García Márquez, Eça de Queirós. Não faltaria a Alice Munroe, aquela escritora canadense que amo. Não faltaria o Erico Verissimo. Teriam mais romances. E toda a poesia de Sophia de Mello Breyner, toda a poesia da Adélia Prado, do Neruda. Seria uma biblioteca de ficção. E com uma prateleira bem grande de livros de história, porque eu estou sempre buscando inspirações na história.

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