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Carlos Heitor Cony

A quarta edição do Paiol 2009 contou com a presença de Carlos Heitor Cony

O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony foi o convidado da edição de agosto do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba —, realizada na capital paranaense. Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926. Como jornalista, começou em 1952, no Jornal do Brasil. Também trabalhou no Correio da Manhã e nas revistas Manchete, Ele & Ela, Desfile e Fatos & Fotos. Atualmente, é colunista da Folha de S. Paulo e da Rádio CBN. Como ficcionista, é autor de livros como O ventre, Tijolo de segurança, Informação ao crucificado, Antes, o verão, Pilatos, Quase memória, A casa do poeta trágico, Romance sem palavras e O adiantado da hora, entre outros. Escreveu romances, ensaios biográficos, contos, crônicas e adaptações de clássicos. É vencedor de prêmios como o Machado de Assis, o Jabuti e o Nestlé. Em 1998, o governo francês condecorou-o com a L’Ordre des Arts et des Lettres. É imortal da Academia Brasileira de Letras desde março de 2000.

Na conversa que teve com o jornalista Christian Schwartz, mediador do encontro, e com o público que acompanhou o encontro no Teatro Paiol, Cony falou sobre o início de sua carreira — literária e jornalística —, discorreu acerca da influência da figura de seu pai em sua formação pessoal e profissional, comentou alguns de seus livros e explicou por que ficou afastado da escrita de ficção por 23 anos, de 1972 a 1995.

• Grandes ladrões
Ler é uma tendência natural da criança. A curiosidade da criança se volta para diversos setores, inclusive para a literatura, para os livros infantis, os quadrinhos. É uma tendência do ser humano procurar saber algo através de veículos impressos — e, hoje, também pela internet. Meu pai tinha alguns livros que eu gostava de ler para dobrar minha curiosidade do mundo. Isso é uma coisa. Agora, a influência da literatura na vida diária? Ela influencia muito os escritores. Nós, profissionais da escritura, vivemos em função disso. Somos obrigados a armazenar e, ao mesmo tempo, a decupar o que vivemos. Qualquer coisa. Depois da gripe suína, qualquer aperto de mão pode ser um mundo novo que se abre, um fato novo, uma história nova. E é isso que a gente absorve. Nós, escritores, somos grandes ladrões, ladrões dos outros e de nós mesmos. E a literatura é uma categoria espiritual da humanidade, que sempre teve o seu lugar, desde Homero — que não era um homem só, que não existiu, que era vários homens condensados num único vulto — até Paulo Coelho. Quer dizer, a gente rouba de todo lado. É uma forma de viver, é uma forma de participar, é uma forma de se realizar.

• A literatura não é uma realização
Não quero dizer que eu me realize na literatura. Fui para a literatura devido a uma dificuldade da fala. Eu era discriminado no colégio. Os diretores chamavam meu pai e diziam: “Tire esse menino daqui, ele está sofrendo muito, é discriminado porque fala tudo errado”. E, realmente, eu falava tudo errado. Mas, quando comecei a escrever, vi que ninguém zombava de mim. Hoje, zombam, mas naquele tempo não (risos). Eu pedia para minha mãe fazer um bife à milanesa, para fazer isso e aquilo. Eu deixava recados. E vi então que a letra, a literatura era o meu destino. Mas isso foi uma circunstância minha. Tem gente que vai para a literatura acreditando que ela é uma suprema realização. Eu sou contra isso. Não acredito na torre de marfim. O escritor é um profissional, é um homem. Pode ser um artista, mas é um sujeito comprometido antes de mais nada consigo mesmo.

• Ninguém me achou
Cada um tem a sua trajetória, a sua experiência. No meu caso, ser discriminado me levou a certa solidão. Eu não tentava me comunicar muito com as pessoas. Tinha um personagem das minhas crônicas, um menino que andava sempre de meias vermelhas, afastado dos outros. Todo mundo ia brincar e ele ficava num canto. Um dia, perguntaram a ele: “Mas por que você usa essas meias?”. E ele: “É que minha mãe me disse: ‘Se você for ao circo e eu perder você, verei um menino de meias vermelhas e logo saberei que é o meu filho’. Então, minha mãe foi embora, e uso essas meias porque, com elas, minha mãe pode me achar outra vez”. É mais ou menos isso. Tinha essa mecânica de “me acharem”. Mas ninguém me achou, não. Nem eu me achei.

• Osso com cê cedilha
Só uso a internet como meio de trabalho. A internet, para mim, é uma máquina de escrever aperfeiçoada. Mas reconheço que, hoje em dia, sobretudo para as gerações mais novas, é uma coisa impressionante. Meninos de sete anos escrevem na internet. E esse menino de sete, há trinta anos, dificilmente escreveria. Escreveria só se a professora mandasse: “Descreva um dia na escola, o passeio tal”. O menino escrevia obrigado a escrever. Tinha a composição, que seria corrigida, resultaria numa nota, boa ou má. Agora não. Uma criança de sete anos escreve por conta própria, porque quer escrever, porque sente prazer em escrever, porque é lúdico. Esse é um caminho que não sei no que vai dar. Enquanto estamos aqui, falando, muita gente está escrevendo. Escrevendo bobagem, mas escrevendo. Escrevendo “osso” com cê cedilha, mas escrevendo. Houve um tempo em que o vocabulário de um jovem eram cinqüenta palavras: “legal”, “tô aí”, “vai nessa”. “Qualé” resumia tudo. “Corta essa” resumia tudo. Hoje, na internet, ele não pode mais fazer isso. É obrigado a ampliar esse diálogo. Quando ele escreve “que legal”, escreve algo mais para justificar esse “que legal”. Isso significa que a internet não vai prejudicar a arte de escrever. Pelo contrário, vai ampliá-la. Agora, vai ser diferente. Na internet, não vai aparecer nenhum Tolstói, nenhum Guimarães Rosa. Mas vai aparecer muita gente escrevendo, muita gente dando conta do recado, fazendo suas reflexões sobre a vida, suas confissões, seus desabafos.

• Expressivas homenagens ao pai
Minha maior referência é meu pai, sinceramente. Arrastei isso durante anos e anos e anos. Vinte e três anos sem escrever (de 1972 e a 1995). Evidentemente, fui metabolizando muita coisa que acontecia na minha vida e, nesse particular, nesse período que passei sem escrever, meu pai morreu e eu fiquei com a impressão de que ele não tinha morrido. Se eu fosse para o ponto mais alto do Everest, aonde ninguém foi, nem aqueles campeões de alpinismo, se eu ficasse lá três dias, no quarto dia meu pai apareceria para me chatear, para reclamar de alguma coisa. Era um pavor. Mas esse pavor foi um pouco transformado em amor, porque no fundo, sem dúvida nenhuma, meu pai me marcou muito. E ainda me marca. Agora mesmo, fui comprar um apartamento e fiquei pensando: “O que meu pai acharia deste apartamento?”. “Ele não gostaria, por causa disso, disso e disso.” “Então eu vou gostar”, pensei. E comprei o apartamento. Não vou dizer que meu pai era uma pessoa muito extravagante, mas era muito vital. Ele nunca usou uma gravata, só usava um laço de pintor. Falava as coisas sem mais nem menos, sem pensar. Entrava no ônibus e falava com todo mundo. Uma vez, eu estava num ônibus, lá atrás, e ele entrou, lá na frente. Quando me viu, começou a falar comigo como se estivéssemos sozinhos: “Tua mãe está gastando muito, ela foi à feira e isso e aquilo”. Todo mundo parado no ônibus. Ninguém prestava atenção — mas todo mundo com a orelha assim. E meu pai continuava. A nossa empregada tinha a infelicidade de se chamar Felicidade. “A Felicidade é uma porca”, ele dizia. “Um dia, vi que ela foi ao banheiro e não lavou a mão.” Meu Deus do céu, as humilhações que sofri com ele. E meu pai fazia aquilo meio intencionalmente. Para ele, era natural. Ao mesmo tempo, ele tinha uma capacidade muito grande de acreditar nele mesmo. Tudo, para ele, era grandioso. Um cumprimento, para ele, era uma homenagem. Uma vez, ele foi a uma cidade qualquer e esbarrou com o prefeito em campanha eleitoral. O prefeito o cumprimentou e meu pai me disse: “Fui alvo de expressivas homenagens do prefeito”. Eu guardei essa expressão: “Fui alvo de expressivas homenagens do prefeito” (risos). O prefeito estava pedindo votos para ele. Quer dizer, meu pai era um tipo. E achei que ele seria um personagem de romance muito bom. Quando o Paulo Francis leu o meu livro Quase memória, saiu-se com essa: “Você escreveu um livro mostrando o desprezo que você tinha pelo seu pai”. Mas não era bem desprezo. No fundo, eu admirava o velho. Evidentemente, o livro é muito mais negativo que positivo. Mas foi consumido como se fosse um hino de amor ao meu pai, o que não é bem verdade.

• Substituto
Meu pai me explorou terrivelmente. Ele nunca foi um trabalhador sério. Quando saí do seminário e ele precisou levar minha mãe para Lambari (MG), meu pai negociou com o Jornal do Brasil o seguinte: para continuar recebendo seu salário, ele arranjaria um substituto. Aí, me apresentou lá. Eu, com vinte anos, nunca tinha entrado numa redação. E o JB tinha Manuel Bandeira — que era colunista —, Aníbal Freire — cuja cadeira ocupo, hoje, na ABL —, Barbosa Lima Sobrinho. Era um panteon. O pessoal, conhecendo o meu pai, mais ou menos me tolerou. Isso durou uns dez anos. Só quando ele se aposentou é que me assinaram a carteira, em 1952. Só depois da aposentadoria dele é que virei jornalista mesmo. Antes eu trabalhava para ele e por ele. Mas trabalhava bem. Eu achava que valia a pena.

• O vilão
O ventre é um romance de estréia. Quando o fiz, eu tinha de 27 para 28 anos, e muita vontade de desabafar. Criei realmente uma história muito amarga, muito negativa. E pintei a figura de um pai muito, muito, muito cruel. O pai de O ventre é um vilão. Mas aquilo passou. Aprendi muita coisa, levei muita porrada pela vida, fui preso seis vezes, parei de escrever voluntariamente e passei 23 anos assim. Algumas editoras tinham o mau gosto de insistir comigo: “Escreva, escreva”. Eu recebia cartas do José Olympio, do Alfredo Machado, da Record: “Por que é que você não escreve? Me dá um romance, eu te dou um adiantamento de tanto”. Mas, naquele tempo, eu estava bem, trabalhando na imprensa, e não tinha necessidade de fazer livro nenhum para ganhar dinheiro. Quando enfim voltei a escrever, peguei a figura do meu pai e inicialmente pensei em prolongar um pouco a vilania daquele pai de O ventre. Mas vi que a vilania do meu pai verdadeiro não era bem uma vilania, era mais uma extravagância dele, muito, muito, muito humana. E também tinha outra coisa: na literatura ocidental, o pai é o vilão. A mãe não. Ela é a deusa do lar, o sustentáculo. Jogam-se todas as plumas em cima dela. E o pai, geralmente, é aquela pessoa esquecida, de maus bofes — como era o meu pai, até certo ponto. Havia, sobretudo, o exemplo daquela Carta ao pai, de Kafka. Kafka culpava o pai por tudo. Queria falar francês, mas falava alemão — embora nascido na Checoslováquia. Ele era judeu, mas também não gostava muito de ser judeu. Queria ser outra coisa. Era tuberculoso e também não queria ser tuberculoso. E percebeu que as três coisas que mais detestava eram herdadas do pai. O pai falava alemão, ele falava alemão; o pai era judeu e ele também era judeu; e Kafka era tuberculoso porque seu pai também era tuberculoso. Por isso, jogou sobre o pai a culpa por toda a sua desdita. Se ele não tivesse pai, seria um homem feliz. Achei que isso era um pouco de exagero, mas vi que, na literatura ocidental, é muito comum a figura paterna ser tratada assim. Então, tratei meu pai de outra maneira, sem desmerecer o lado ridículo dele, que era muito grande, que era o maior de todos.

• O embrulho
Eu tinha pavor de encontrar meu pai, mesmo dez anos depois da sua morte. Era aquela coisa: “O pai vai aparecer por aqui de repente, vai me fazer alguma, vai aparecer para me deixar mal”. Então, tive um sonho, que conto na primeira parte do meu livro. Sonhei que estava almoçando no restaurante do Hotel Novo Mundo, no Flamengo. Quando desci, um dos porteiros da recepção me chamou: “Olhe, esteve aqui um senhor e ele deixou um embrulho para você”. E o embrulho era tipicamente do meu pai. Eu sabia que era um embrulho do meu pai. Pela letra, pelo cheiro. Peguei o embrulho e disse: “Papai está por aqui. O velho está por aqui, neste quarteirão, está atrás de mim. Vou esbarrar com ele de repente”. Esse pavor de esbarrar com ele de repente foi o que me fez escrever o livro (Quase memória).

“O ser humano não me inspira respeito. Eu respeito o ser humano, a mim e aos outros, só por causa da polícia.”

• Invenções paternas
Cada um tem o pai que merece, e eu talvez merecesse o meu. Meu irmão era fã dele, o considerava o supra-sumo. Meu pai inventava coisas. Dizia que esteve em Paris e nunca esteve em Paris. Mas herdei dele a paixão por Puccini. Meu pai gostava muito de ópera e de Puccini. Na Itália, com minha mulher, fui à Torre Del Lago, onde Puccini morava, um lugar muito bonito, onde fica a casa dele, as suas recordações e tal. Quando entrei lá, eu disse: “Mas essa casa eu já conheço”. Meu pai, que nunca tinha estado ali, descrevia-a com todos os detalhes. Impressionante. Ele dizia assim: “Em um espelho da sala, tem um bilhete da Sarah Bernhardt ‘ao meu amado Puccini, da sua Sarah’”. E estava lá o bilhete. Como é que meu pai soube disso eu não sei. Ele inventava, porque nunca saiu do Brasil. Ele foi uma vez à Argentina, onde foi alvo de expressivas homenagens (risos).

• Fala do trono
Eu estava enfarado da literatura e da máquina de escrever. Então, fiz um livro, Pilatos, que ia terrivelmente contra a literatura, contra a arte e o ser humano. Inclusive o Ênio (Silveira), que era o meu editor, passou quase dois anos sem publicá-lo, achando que o livro era muito radical. Ele não chega a ser pornográfico. Muito menos erótico. Quem o lê passa dois anos sem pensar em transar. Ele é antierótico de uma forma brutal, é bastante escatológico. É a história de um homem que perde o pênis num desastre de ônibus, o coloca dentro de um vidro de compota, desses para compotas de pêssego, e vive uma porção de coisas no período da ditadura, 1970, 1973, por aí. Eu achava que esse livro era uma espécie de “fala do trono”. Na monarquia, se diz “fala do trono”, quando, no início de um ano, o rei ou o monarca se pronuncia. E eu achei que Pilatos era a minha “fala do trono”. Depois daquilo, eu não teria mais nada para escrever. Realmente pensei isso. E realmente passei 23 anos sem necessidade nenhuma de escrever romance ou ficção. Tinha até ojeriza. Não entrava em livrarias, não lia jornais — ou só lia porque eu era editor de um jornal. Depois, fui para a televisão fazer Dona Beija. Mas em relação às novelas que fiz, era o seguinte: eu contratava dois escritores especializados e dizia: “Façam isso, façam aquilo”. Depois, eu via se o trabalho estava mais ou menos e dizia: “Botem isso, botem aquilo”.

• Ojeriza da máquina
Eu tinha ojeriza da máquina de escrever. Nesse ponto, o computador me fez muito bem, porque eu não agüentava mais a máquina de escrever. Inicialmente, tive medo, porque meu pai se aposentou do Jornal do Brasil um mês depois de haver entrado, lá, a primeira máquina de escrever. Ele não conseguiu vencer aquela barreira. Sabia onde estavam as letras, mas dizia: “Eu não sei pensar com a máquina. Só sei pensar com a mão”. E não se podia mais escrever a mão, porque o jornal adotou a mecanografia como forma oficial de atender ao pessoal das oficinas. Anos depois, quando entrou o primeiro computador na minha sala, pensei: “Pronto, chegou a minha vez. Vou pendurar as chuteiras, nunca vencerei isso”. Era um computador enorme, horrível, uma tela complicadíssima. Mas não só aprendi a usá-lo como também tive mais vontade de escrever. Vieram a vontade, o computador e, simultaneamente, uma superação mecânica da escrita. Eu não precisava mais botar aquele papel na máquina, rodá-lo, mexer com a tinta, sujar os dedos com a fita.

• Sartriano carioca
Há autores que me influenciaram. Basicamente os cariocas, os principais autores cariocas, que me formaram e deram, digamos assim, a régua e o compasso para minha literatura. Manuel Antônio de Almeida, com Memórias de um sargento de milícias, Machado de Assis, com toda a sua obra — a obra maior —, e Lima Barreto. Com mais influência de Lima Barreto que de Machado. Mas minha paixão maior ainda é o Manuel Antônio de Almeida. O ventre tem personagens chupados de Memórias de um sargento de milícias. Mas não fiquei só nesses autores. Me impressionou muito Rabelais. A forma do Pilatos é muito rabelaisiana. Depois uma influência que tive e confesso foi a de Jean-Paul Sartre. Tanto que, quando publiquei O ventre, a crítica toda falou sobre Sartre. Ele estava na moda. Nessa época, Sartre já havia deixado a literatura, estava na militância política, mas já tinha escrito A náusea e (a trilogia) Os caminhos da liberdade. Me marcou demais. Eu mesmo me dizia um “sartriano carioca”.

• Texto final
Outro autor que muito me influenciou foi Zola. Sartre, Zola, Rabelais, Swift — o humor de Swift — e os três cariocas: Almeida, Machado e Lima Barreto. Acho que sou um produto deles. Mas, evidentemente, com texto final do meu pai.

• Especialista em inutilidades
Eu já estou numa idade avançada. Mais de 80 anos e cinco empregos. São cinco chefes. Para tirar férias, tenho que pedir cinco vezes, tenho que enfrentar cinco chefes. Quero tirar férias duas vezes por ano, e são cinco camaradas a quem preciso provar que preciso tirar essas férias: “Estou muito cansado, não passo dessa noite”. Aí me dão férias para se verem livres de mim. Realmente, é uma tourada. Mas eu não saberia fazer outra coisa. Alguns parentes, minhas filhas e minha mulher me dizem: “Não, você não precisa disso, vamos pensar em outra coisa”. Mas eu não sei fazer outra coisa. Por exemplo, eu tenho um programa diário na CBN, por telefone, às quinze para as nove. E hoje, justamente na hora em que eu estava entrando no avião, subindo as escadas para vir para cá, me chamaram para entrar no ar. E era aquele barulho de avião, o piloto falando. Pensei: “Tenho que parar com isso, não preciso disso”. Realmente, não preciso disso para viver, mas talvez seja uma maldição do meu pai, algo que me obriga a trabalhar. Me obriga a trabalhar porque ele não trabalhou. Para se ter uma idéia, minha mãe tinha adotado uma menininha de doze anos, filha de uma empregada, e, num domingo de chuva, pela manhã, a menina estava muito triste, chorando, com saudades da mãe, que já havia morrido. Meu pai chegou de repente, viu a menina e todo mundo ali: “Ah, não chora, não”. E perguntou a ela: “Você tem uma boneca?”. E ela: “Não, eu tenho uma bruxinha”. Ele pegou a bruxinha: “Ela foi batizada?”. A menina disse que não. E o meu pai: “Então vamos batizar essa menina”. Espalhou bandeirinhas de São João pela sala toda, pegou uma goiabada e a cortou em pedaços, passou no açúcar cristalizado, comprou guaraná. Depois se vestiu de padre, com uma roupa da minha mãe. E eu fiquei de sacristão. Pois meu pai batizou a bruxinha em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e a menina parou de chorar. Ele passou das dez da manhã às dez da noite preparando a festa de batizado da boneca. Aí, às dez da noite, minha mãe quis saber: “E quando é que você vai consertar o telhado?”. E ele: “Ah, não, estou muito cansado, você só pensa nisso”. Quer dizer, ele era especializado em fazer coisas inúteis.

• Memória disfarçada
Gosto muito de reler Proust, que é um memorialista. Dizem que o gênero da memória é subliteratura, dizem que é muito fácil. Discordo. Proust é memorialista e não é subliterato. José Lins do Rego não é subliterato. Joyce fez Retrato do artista quando jovem e não é subliterato. Gosto muito de ler os memorialistas, sobretudo os de memória disfarçada, como Proust, que narram não só fatos da biografia dele, mas também fatos inventados por ele. Essa mistura do que é verdade com o que não é verdade é muito útil. Não só produz muita literatura como também me ensina muito. É sempre aquela história: a pessoa está ali, vivendo, mas quer ser outra coisa. No caso de Proust, por exemplo. É notório que ele queria ser outra pessoa. Isso é batata. Kafka também. O próprio Joyce, o Joyce final, já é um Joyce produzido. O Joyce verdadeiro está no seu primeiro livro. Prefiro mil vezes o primeiro livro dele do que os últimos.

• Grandes coisas amanhã
Meu pai tinha essa idéia de fazer “grandes coisas amanhã”. Sempre na base do amanhã. Ele precisava acordar no dia seguinte porque tinha grandes coisas para fazer. Acreditava que tudo que fazia eram grandes coisas. O dia dele era uma grande coisa. Eu estou habituado a fazer as coisas dentro das minhas possibilidades. Não quero fazer nada além das minhas possibilidades. E hoje, na situação em que estou, a única coisa que está dentro das minhas possibilidades, o único projeto que ainda posso fazer, que estou certo de ter a possibilidade de fazer, é morrer. Morrer está dentro das minhas possibilidades. Se eu disser “Meu projeto é fazer Guerra e paz, meu projeto é fazer A divina comédia”, vocês podem rir e dizer “Você não tem essa capacidade, não tem a possibilidade de fazer isso”. Agora, eu tenho a possibilidade de morrer. Ninguém pode me negar a possibilidade de morrer, e a única coisa que realmente posso fazer é essa. Agora, se até lá me vier uma idéia qualquer, não sei. De qualquer maneira, não tenho projeto nenhum. Aliás, nunca tive projetos definidos. O único projeto que tive foi o de ser padre, quando eu tinha dez anos. Não deu certo. Depois disso, fiquei vacinado. Não tive mais nenhum projeto de vida. Trabalhei no jornalismo por causa do meu pai. Escrevi por causa de uma máquina que ganhei. Enfim, tudo na minha vida foi motivado por uma circunstância.

• Um Jumbo
Para cada crônica que faço — embora minhas crônicas dêem uma impressão de facilidade —, é como se eu fosse obrigado a levantar um Jumbo. Às vezes, tento ler um jornal, pra ver se aquele jornal me dá alguma idéia. Mas, em geral, ele não me dá idéia nenhuma. Muitas vezes, para começar uma crônica, abro o computador e olho para a tela. E a tela não me diz nada, nada, nada. Então, escrevo uma coisa qualquer. Por exemplo: “E a roda rodou imunda e grossa”. É um verso do Fernando Pessoa. “E a roda rodou imunda e grossa.” Escrevo essa frase e fico olhando para ela. “E a roda rodou imunda e grossa.” E dali não sai nada. Mas botar o dedo na tecla e fazer aparecer aquelas letras na tela é um começo. É como aquelas sereias do Ulisses. O Ulisses estava passando pelo Adriático e, como as sereias cantavam, precisou se amarrar no mastro do navio, para não se atirar nas águas. Então, aquelas letras ficam ali: “E a roda rodou imunda e grossa”. São as sereias. Elas ficam cantando. Letras, letras, letras. E por aí vai. Só que eu não me amarro no mastro, não. Eu vou. Eu vou e sai a crônica.

• Dormir na pontaria
Uma crônica que leva mais de meia hora não é crônica. É esforço, é luta de boxe. Para mim, tem que ser uma coisa rápida. Ou é rápida ou não vale nada. Romance também faço muito rápido. Não sou de dormir muito na pontaria, não.

• Voltei para o meu frango
Tinha pavor de livraria. Se eu passasse por uma livraria, atravessava a rua, passava para a calçada oposta. Não tinha nada contra livrarias, nem contra os livros. Não sei. Suplementos literários, eu também não lia. Basta dizer o seguinte: fiquei na Manchete fazendo crônicas sobre Roberto Carlos, Caetano Veloso, Elba Ramalho. Fiz reportagem de polícia. Já quase com 60 anos de idade, eu ia às delegacias como repórter. Não queria nada com a literatura. Nada, nada, nada com a literatura. O pessoal diz “Ah, você estava ressentido”. Eu não tinha razão para ficar ressentido. Quando publiquei O ventre, o Ênio (Silveira) — que transformou sua editora na maior do país na época, a Civilização Brasileira — fez comigo uma coisa inédita na literatura brasileira. Ele me deu um contrato de dez anos e disse: “Esse teu livro é bom, mas eu o considero incompleto. Você ainda tem muita coisa para escrever. Por isso, vai me dar um livro por ano e vai ter uma retirada mensal de tanto, independentemente da venda desses livros”. E foi o que houve. Dez anos depois, eu tinha feito onze livros para ele. Então, eu não tinha razão para ser ressentido. Mas achava que, com o Pilatos, eu havia me despedido, havia dado um adeus. Quase no fim daquele filme do Fellini, La dolce vita, há uma festa em que as mulheres presentes resolvem fazer um strip-tease. Assim, a mulher de um dos homens, ali, se deita no chão, tira a roupa, mostra os seios e tal. Só que, entre as convidadas, tem uma stripper profissional. E o pessoal diz a ela: “Caterine, é a sua vez!”. Ela vai para o centro do palco e, quando faz o primeiro gesto para tirar sua roupa, um gesto muito profissional, alguém grita: “Você não serve, você é profissional!”. E ela: “Então, eu vou voltar a comer meu frango”. Ela estava comendo uma coxinha de galinha. Nem se incomodou. Fez o gesto, não gostaram porque ela era profissional, e ela disse: “Bom, se vocês não gostaram, vou voltar a comer o meu frango”. É mais ou menos isso que eu senti. Quando comecei a tirar a roupa, me disseram: “Não, você se profissionalizou muito, você se vendeu aos editores”. Então, voltei a comer a meu frango. Quer dizer, voltei a mim mesmo. Foi isso.

• Ser humano desprezível
Considero o ser humano um projeto falido. O ser humano não me parece digno de respeito. Lá, no relato bíblico, você lê o seguinte: Deus criou o céu, e viu que era bom; criou as estrelas e viu que eram boas; separou a terra e a água e viu que aquilo estava bom. Enfim, tudo que Ele criava estava bom. O homem, Ele não viu que estava bom. E tanto é assim que tentou exterminá-lo diversas vezes e de várias maneiras. E não conseguiu. O homem sobreviveu. Sobrepujou a Deus, sobrepujou ao dilúvio, sobrepujou a todas as catástrofes. Nínive, Sodoma e Gomorra foram destroçadas, mas sempre sobrou alguém. Então, o homem realmente resiste. É impávido. Resiste, e resiste contra quem? Resiste geralmente contra o ser supremo que o criou. Então, o homem, já por natureza, já na sua essência ontológica, é mau. Agora, se a gente for olhar a história da humanidade — não vou dizer a história de nós todos, que somos pobres seres humanos, feitos de barro, e todos sabemos perfeitamente que não valemos nada, que vamos terminar no pó, e… Enfim, não quero me prolongar nisso. Já basta o que falei aqui de bobagem. Mas, para mim, é o seguinte: o ser humano não me inspira respeito. Eu respeito o ser humano, a mim e aos outros, só por causa da polícia.

“Tem gente que vai para a literatura acreditando que ela é uma suprema realização. Sou contra isso. Não acredito na torre de marfim. O escritor é um profissional, é um homem. Pode ser um artista, mas é um sujeito comprometido antes de mais nada consigo mesmo.”

• A sociedade é corrupta
A sociedade tem que mudar, não os políticos. Porque nenhum deles, pelo menos daqueles que têm cargos executivos, está lá por conta própria. Todos têm aquilo a que se chama legitimidade. É evidente que sempre haverá o caso isolado de um camarada que comprou ou roubou votos, mas o grosso foi eleito, tem legitimidade. Eles representam uma sociedade e essa sociedade não quer se ver no espelho deles. A sociedade se julga uma vestal, uma matrona de Éfeso, uma rainha de Sabá, cheia de glória. A sociedade não peca, a sociedade não erra, a sociedade está sempre com a razão. E cobra dos seus representantes uma atitude que ela não tem. Porque a sociedade é basicamente hipócrita. Ela teve a capacidade de atravessar todas as eras sendo o algoz do indivíduo. Por mais que grandes homens ao longo da história — Cícero, Platão, Cristo, Maomé, Montesquieu — tenham tentado modificá-la, eles não conseguiram. É mais ou menos a tese de Rousseau: o homem talvez seja bom, mas a sociedade é corrupta e corrompe o ser humano. De maneira que não acho que seja o caso de os políticos melhorarem a sociedade. A sociedade é que tem que melhorar os políticos.

• Aos escritores
O escritor é como o poeta. Ele se faz. Ele pode, é evidente, aprender o mecanismo, a técnica de escrever corretamente. Pode tomar um modelo —Vieira, Rui Barbosa, Machado de Assis. Pode procurar imitá-lo inicialmente e, depois, adquirir autonomia. Tudo isso ele pode fazer. Mas se ele não tiver dentro dele aquele grau de observação, aquele poder de transubstancialização; se não souber pegar um detalhe ínfimo, pequeno, provisório, datado e transformá-lo em obra de arte, em coisa permanente; se não tiver nada disso dentro dele, ele terá que fazer outra coisa. Ele poderá ser um bom engenheiro, poderá ser um bom veterinário, poderá ser tudo, mas nunca um escritor.

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