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Affonso Romano de Sant’Anna

A segunda edição do Paiol 2006 contou com a presença de Affonso Romano de Sant’Anna

O segundo encontro do projeto Paiol literário — uma parceria entre o Rascunho, Sesi Paraná e Fundação Cultural de Curitiba — trouxe a Curitiba o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, que acaba de ganhar o Prêmio Jabuti com o livro de poemas Vestígios. Durante mais de duas horas, ele falou sobre a importância da leitura na vida das pessoas, a poesia, a literatura, a arte, as vanguardas, entre outros assuntos. Mediado por José Castello, o encontro lotou o Teatro Paiol, como já havia acontecido no bate-papo com Ignácio de Loyola Brandão, em junho.

Tudo é leitura e interpretação
A gente vive numa sociedade em que poucas pessoas são dadas à leitura. Sempre fico pasmo quando lembro que, em mais de 80% das cidades brasileiras, não há livrarias. E as grandes cidades têm livrarias concentradas em algumas áreas. Não têm no subúrbio. Fico constrangido quando tenho que lembrar que há cerca de três mil municípios sem biblioteca por aí. No entanto, estamos dentro de um quadro em que se fala constantemente sobre a leitura. Ler é um privilégio em um sentido bem amplo. Quem lê está interpretando o mundo. Ou seja, aquela cabeçada do Zidane no jogador italiano, na final da Copa, produz leituras. Nós vemos aquilo e produzimos raciocínios e significados sobre aquilo. Somos solicitados o tempo todo a ler o universo. O cientista, o físico, lê o tempo todo através da sua lente, das suas pesquisas. O astrólogo está lendo, o biólogo está lendo nas células. Tudo é leitura e interpretação.

Ser ruim
Na minha casa, éramos seis irmãos. Duas moças e quatro rapazes. Todos tiveram a mesma formação. E só eu escrevo. Há um mistério nas opções pessoais, que talvez só a psicologia, só a psicanálise explique um pouco. Por que eu, de repente, escolhi o instrumento palavra como elemento agenciador de minha relação com o mundo? É porque sou ruim em tudo mais. Sou bom só nisso. Tentei tocar instrumentos e não consegui, tentei várias coisas. A coisa que sobrou para mim foi essa.

Poesia moderna
Um dos problemas da poesia moderna é que ela não soube recuperar essa coisa tão primitiva — e tão moderna — que é a oralidade da poesia modernista. De alguma maneira, ela se desviou; em certo momento, virou algo prosaico e se afastou da declamação. Custou a recuperar um tipo de fala. Levou tempo. Só quando os jograis de São Paulo nos anos 50 começaram a declamar poemas modernos é que se percebeu que poesia moderna pode ser falada de uma maneira diferente. E por isso é que eu gravo vários CDs de poesia. É outro departamento… Um dos problemas da chamada poesia de vanguarda no Brasil, no rastro da década de 50, é achar que poesia era visualidade, e só. Pode ser, também, mas isso é uma redução, um empobrecimento. Há vários tipos de enfoques, de dicções, e a oralidade é fundamental. Tanto é que, quando você está dando cursos de criação literária, quando certas pessoas querem algumas sugestões sobre leitura de poesia, eu sempre digo: “Olha, leia em voz alta o poema”. A leitura do poema em voz alta começa a desdobrar significados que, antes, estavam ocultos ali. Tanto que cada leitor pode lhe dar inflexões diferentes.

Drummond e as possessões
Teve um momento em que eu parei de ler Drummond. Eu disse: “Se eu continuar lendo esse rapaz, isso vai me criar um problema”. Fiz isso para poder reassumir o meu ritmo. Alguns autores são possessivos. João Cabral é outro. Tem um ritmo, um negócio. O sujeito se aproxima do Cabral e começa a fazer poesia cabralina. Recentemente, participei do júri do Prêmio Cidade de BH. Na área de poesia, havia não sei quantos livros que eram Manuel de Barros puro. Tinha lá uma porção de Leminskis. Na ficção, sempre aparece Guimarães Rosa. O jovem autor tem que tomar cuidado. Você não pode sair por aí querendo escrever um livro de poesia, um romance, e achar que as pessoas vão acolhê-lo só por causa disso. Porque uma coisa é você ter bons sentimentos e querer contar uma história e escrever um texto; outra coisa é ser lido e virar um autor. Você tem que descobrir qual é a sua voz. O Cauby Peixoto começou imitando o Nelson Gonçalves. A Ângela Maria começou imitando a Dalva de Oliveira. Na literatura, é a mesma coisa. E não adianta: se você nasceu para ser João Gilberto, não pode querer se Pavarotti. E vice-versa.

O jovem autor tem que tomar cuidado. Você não pode sair por aí querendo escrever um livro de poesia, um romance, e achar que as pessoas vão acolhê-lo só por causa disso. Porque uma coisa é você ter bons sentimentos e querer contar uma história e escrever um texto; outra coisa é ser lido e virar um autor. Você tem que descobrir qual é a sua voz.

Vanguarda
O nosso século, o passado, é o século das vanguardas. A palavra vanguarda virou realmente algo muito forte na época. E, no campo das artes, se você não fosse James Joyce, Ezra Pound ou Maiakovski, você não estava com nada na literatura. Você tinha que sempre estar na cabeça, na última coisa. Ou seja, a arte no século 20 desenvolveu uma coisa perversa — e da qual temos que nos livrar rapidamente — que é confundir arte com olimpíada. Cada olimpíada tem uma marca nova. O atleta correu tanto, agora ele tem que correr mais. Fazer tantos gols. Então, muito vanguardistas vêm com essa idéia falsa. É uma idéia ideológica de um século que tinha uma noção de vanguarda, de progresso, de utopia. A utopia comunista, a utopia fascista. Um século que raciocinava através de radicalismos — que têm lá o seu charme, mas têm os seus equívocos.

Século revisado
O século 20 viveu à custa de três coisas do século 19: psicanálise, marxismo e arte moderna. Ele se apoderou delas e as levou ao paroxismo. O comunismo deixou de ser uma coisa teórica. Vieram grandes regimes que dominaram grande parte da Terra. E o marxismo, colocado em prática, revelou-se um fracasso. […] Teve um momento, no século 20, em que quem não fizesse análise não podia ir a uma festa. Se você não fizesse análise de grupo, estava liquidado. E a psicanálise entrou num processo de revisão. O marxismo entrou em revisão. Mas ninguém quer fazer a revisão da arte moderna. Por que as pessoas não querem aceitar essa empreitada?

Arte moderna
A gente batalhou contra a ditadura, enfrentou generais, repressão, censura… E de repente vamos calar a boca dentro do nosso ambiente? É demais. O Arnaldo Jabor, um dia, encontrou-se comigo, na rua, quando eu estava escrevendo aqueles artigos polêmicos sobre arte moderna e me disse: “Aqueles seu artigos. É isso mesmo e tal”. E começou a falar sobre várias coisas, dizendo que concordava comigo plenamente. Eu falei, então, que ele precisava escrever sobre aquilo, porque aquele assunto não era meu. Os intelectuais têm que participar dessa discussão. Aí ele falou uma coisa sensacional: “Eu falo mal de general, falo mal de político. Mas, dessa gente, tenho um medo que eu me pelo!”.

Zidane e a pedagogia
Eu sou caçado a pau por aí. Certos grupos têm pavor de mim, tiram-me de antologias, não citam meu nome aqui e acolá. Eu não existo para certas pessoas. E isso faz parte do jogo. O meu temperamento é esse, não vou tentar agradar ninguém. Tenho que tentar ser o que eu sou. Mas acho que pertenço a uma estirpe. Há várias estirpes de intelectuais, de artistas. Cada um tem a sua, e não é que uma seja melhor do que as outras. Mas existe essa. Pelo meu DNA, é nela que eu me encaixo. A estirpe da pessoa que vive o seu tempo. Que participa do seu tempo. Opina sobre o seu tempo. E isso implica em sair do espaço muito limitado do fazer versos. Muita gente faz versos. Outros fazem poesia. E isso, às vezes, sai do espaço literário. Você se torna, de certa maneira, um homem público. Já dizia Vargas Llosa que, na América Latina, ser escritor é uma responsabilidade dupla. Junto a uma massa de pessoas que não têm acesso à informação, você se transforma em um líder. Querendo ou não. Nós somos pedagogos, de qualquer maneira. Todos nós somos pedagogos, pelo nosso exemplo. O porteiro é um pedagogo. A maneira como ele lida com as pessoas na portaria, como ele conversa com elas. Ele está dando um exemplo de atitude. O presidente da República, se tivesse consciência disso, o presidente de qualquer país. Qualquer gesto seu é pedagógico, é o gesto de um líder nacional. O Zidane é um pedagogo. O gesto dele tem uma pedagogia. Merece uma análise curiosíssima. Como é que o sujeito joga para o ar a sua coroa, com é que joga para o ar toda a glória? “Mãe e irmã, não!” — todo mundo tem o seu ponto de resistência. Por isso é que nos cursos de engenharia há uma disciplina que se chama Resistência dos Materiais. Todos nós temos um ponto de resistência a partir do qual não vamos além. Eu também tenho.

Alegrar a vida
Existe um tipo de poesia por aí que faz você se perder no meio da leitura. Você não sabe o que o poeta está dizendo, onde ele está indo. É como se fosse uma enfiada de metáforas e alusões. O leitor fica meio confuso e acaba se afastando desse tipo de poesia. A melhor poesia que sempre houve e que sempre teve uma relação com o público é quente. Garcia Lorca não tem erro. Você lê Garcia Lorca e ele entra para a sua vida, para sempre. Então, falta uma poesia que seja assim: para alegrar a vida.

O fim de tudo
Nas artes plásticas, alguns artistas contemporâneos decretaram que a pintura acabou, que o desenho acabou, que a figura acabou, que a natureza morta acabou. Você tem a arte conceitual, tem as instalações. Mas, se você pega a ficção brasileira, estão todos usando um livro, que é um objeto tradicional. Não é como nas artes plásticas, em que acabaram a tela, o pincel, a pena, a gravura. Não. Estão usando o livro. E todos estão contando uma história. O autor pode ser sofisticado, como Luiz Ruffato; pode ser mais retilíneo, como João Ubaldo. Mas todos estão contando uma história, todos têm personagens, têm um princípio, um meio e um fim. Na literatura, os autores já deram a volta por cima, já saíram desse imbróglio. As artes plásticas ainda estão dando essa volta no parafuso.

Xamãs
Há algo intrigante, algo que bate com um dos nossos problemas de hoje. Primeiro, o escritor midiático: estabeleceu-se e criou-se essa categoria. O escritor que escreve para jornal, ou que tem alguma coisa a ver com a televisão, ou que sabe se relacionar com o público. Ele se torna mais um porta-voz, e fica mais exposto do que os escritores que não têm esse temperamento, que não aceitam esses desafios. Porque nisso há um ônus, há um risco. Por um outro lado, há uma coisa curiosa acontecendo com a literatura contemporânea, em nível internacional, sobretudo: os escritores estão dizendo as coisas mais sensatas em relação a certos problemas universais. As coisas mais tocantes, as mais corretas, não estão sendo ditas necessariamente por antropólogos, sociólogos e filósofos. Não são eles que estão escrevendo as melhores coisas sobre a questão do Afeganistão, do Iraque, de Israel, da Palestina, sobre a questão africana. São os romancistas desses países, desses lugares, que, de repente, começaram a surgir e começaram a ser ouvidos. Quer dizer, a literatura ainda é capaz de dar um recado. O que prova que os escritores preservam uma certa credibilidade. Não é à toa que, em tribos primitivas, o xamã era o indivíduo que dialogava com a história e com o seu tempo. Os artistas ainda têm esse atributo dos xamãs.

Eu sou caçado a pau por aí. Certos grupos têm pavor de mim, tiram-me de antologias, não citam meu nome aqui e acolá. Eu não existo para certas pessoas. E isso faz parte do jogo. O meu temperamento é esse, não vou tentar agradar ninguém.

Biblioteca Nacional
A Biblioteca Nacional foi um acontecimento imprevisto e enriquecedor na minha vida, uma experiência fantástica que me permitiu conhecer as vísceras do dragão, saber como funciona a administração pública. Foi um aprendizado de Brasil muito grande. A gente pensa que sabe o que é a burocracia, mas não sabe. […] E, no serviço público, não se tem dinheiro para fazer nada, mas, se você quiser, você faz. Pode não fazer 100%, mas pode fazer muito. A desculpa de que não se tem dinheiro é, na maioria dos casos, só uma desculpa. Há um grupo de pessoas tão ansiosas para fazer coisas, sobretudo na área da cultura, tanta gente com boas intenções… No meu caso, sabem o que aconteceu? Uma série de pessoas já aposentadas e que nunca haviam trabalhado numa biblioteca me pediu para trabalhar lá, de graça. Para ajudar o projeto que nós estávamos desenvolvendo. Viam que ali havia um negócio em andamento. […] Então para mim, a Biblioteca Nacional foi muito importante. Claro que, do ponto de vista literário, não tanto. Durante seis anos, eu praticamente não escrevi nada de novo, a não ser crônicas em jornal. A coisa era acachapante. Eu chegava em casa às dez horas da noite, quase todo dia, já exausto. Não tinha alma para mais nada. Até fiz um poeminha sobre um incidente doméstico que ocorreu uma vez, quando cheguei, totalmente estropiado, com a alma amarfanhada, o terno amarrotado, aquele gosto de café de repartição pública na boca. Cheguei em casa assim, e encontrei um bilhete da Marina (Colasanti, sua mulher) sobre a mesa: “Hoje, 8 de agosto de 1994, meu marido perdeu um pôr-do-sol no Dois Irmãos, o canto de um sabiá que veio no terraço e o nascer de uma orquídea”. É uma covardia.

Leituras
Um livro muito importante na minha adolescência foi A arte de escrever, de um francês chamado Antoine Albalat. Uma porção de dicas práticas sobre como é que você pode condensar o seu texto, sobre como lidar com os adjetivos, como evitar repetições, lugares-comuns. Fiquei tão entusiasmado que resolvi escrever um artigo onde eu praticava tudo que tinha lido naquele livro. Foi meu primeiro artigo para jornal. Eu havia lido uma peça de Shakespeare e tentava aplicar adolescentemente tudo aquilo que havia aprendido. O artigo se chamava Que horas são? São horas de ser honesto, que é uma frase de um personagem de Shakespeare e continua muito atual, ainda hoje. Mas também gosto muito de ler livros sobre ciência. Não entendo nada sobre ciência. A graça é essa, não é? Recentemente eu li Breve história de quase tudo, de Bill Bryson, um livrão em que o autor reconta a história da ciência.

Criação
Esse problema da criação é a coisa mais misteriosa. Nos cursos de criação literária, mesmo nas palestras, as pessoas perguntam muito sobre isso. Porque, por mais que o artista ache que tem um certo domínio sobre o que faz, ele não tem. O Edgar Allan Poe escreveu um famoso texto, chamado Filosofia da composição, em que ele explica como é que escreveu seu famoso poema, chamado O corvo. E ele vai a detalhes. Diz como é que escolheu a rima, a réplica, por que é que ele escolheu o refrão “Never more”, diz que efeito ele queria conseguir. Tudo ali pode ser verdade. Mas também tem algo inexplicável. Porque eu não sei se ele não está mentindo um pouco. Escritor mente muito. A Clarice Lispector mentia desoladamente. Eu dizia a ela que, na minha adolescência, tinha lido o seu livro A maçã no escuro e ficado impressionado com toda a filosofia da linguagem presente nele, com o existencialismo dele, etc. Daí eu perguntava a ela sobre tudo aquilo e ela dizia que não, que não tinha lido nada, que não sabia de nada. Então, quando eu fui a casa dela, uma vez, mexi na sua estante, um pouco. E achei, ali, vários dos livros que ela consultava. E ela sabia do que estava falando. Mas às vezes o autor até esquece o que leu. Isso também acontece.

A eficácia da linguagem
O que me fascina é a eficácia da linguagem. Pessoas de profissões diferentes, atividades diferentes, raças diferentes, culturas diferentes, de repente reagem de uma maneira muito semelhante diante de certos textos, de certas linguagens. Acredito piamente que a linguagem tem uma força transformadora. Não é à toa que está lá, escrito, que no princípio era o verbo.

Distanciamento crítico
Eu não consigo fazer nada sem paixão. Existe uma chamada falsa objetividade, que não leva a nada. Pessoas que dizem que vão olhar a coisa com espírito científico, estão, em princípio, equivocadas. Já dizia Merleau-Ponty que a ciência tem como fundamento da sua cientificidade algo que não é científico. Então, não dá para dissociar sujeito e objeto. O que você precisa ter é outra coisa: o instrumental para ver o objeto que você está analisando dos mais variados ângulos possíveis, para evitar que você esteja abrindo janelas já abertas, evitar que você esteja dizendo absurdos irretratáveis. No caso das artes plásticas, o que me pareceu é que faltava um tratamento multidisciplinar. Porque tem muita coisa nas artes plásticas que são mais sociologia do que artes plásticas, mais antropologia, mais psicanálise. E um psicanalista, um antropólogo e um sociólogo, alguém especialista na lei do mercado, por exemplo, pode dizer muito mais sobre artes plásticas do que um crítico de arte. Por exemplo, especialistas do mercado são, hoje, as pessoas mais capacitadas a analisar a situação das artes plásticas no mundo. […] O mercado organiza tudo — nós estamos sabendo —, estamos diante da televisão, das eleições. O que há de mercadológico nas eleições de um país! Antigamente a gente achava que eleição era o resultado de posições ideológicas. Hoje a gente sabe que são posições ideológicas regidas pelo mercado. Então é importante esse arsenal de leituras multidisciplinares porque tudo se tornou muito complexo. Uma pessoa só não dá conta.

Autor e escritor
Existe uma diferença entre autor e escritor. Todo mundo pode ser autor. Você pode escrever a sua vida, você pode ser um bom redator. As firmas hoje convidam jornalistas para escrever livros sobre elas. São jornalistas, são autores de livros, alguns até são escritores. Eu mesmo já fiz livros como esses. Mas o escritor mesmo é um sujeito que não está atrás de escola, de moda. Eu me identifico com aquele escritor que está desenvolvendo algo que chamo de projeto poético pensante. Ou seja, está elaborando coisas dele, de seu imaginário, de seu tempo, seu país, sua época.

Existe um tipo de poesia por aí que faz você se perder no meio da leitura. Você não sabe o que o poeta está dizendo, onde ele está indo. É como se fosse uma enfiada de metáforas e alusões. O leitor fica meio confuso e acaba se afastando desse tipo de poesia.

Escrever para quê?
A gente escreve para ler, para ler com os outros, para comunicar, distribuir vida, resgatar da morte o que for possível. Há uns seis meses, comecei a me corresponder com um presidiário do interior de São Paulo. Ele me mandou uma carta, leu alguma coisa minha em algum lugar, e queria conversar comigo, receber livros. Dizia que na cadeia havia uma biblioteca muito ruim. E ele me mandou uns poemas. Tem 23 anos, foi preso como traficante e tem uma escrita ótima. Os poemas são até direitos. Comecei a mandar livros para ele, de vez em quando. E eu me lembrei do que li sobre o sistema penitenciário americano, sueco, onde existem bibliotecas. O sujeito vai lá e fica lendo. Para você ver o valor que certas culturas dão ao livro. Sempre cito um caso que o Fernando Gabeira me contava quando voltou do exílio na Suécia. O governo sueco mandou comprar livros em espanhol para os exilados latino-americanos que estavam por lá. Porque eles achavam que era direito do cidadão exilado poder ler na língua dele.

Ninguém resiste a uma história
A arte moderna instituiu uma série de quesitos que têm que ser superados. A vergonha de comunicar, de ser entendido, da harmonia, da melodia, da narração. […] Eu sempre repito: não há formas esgotadas. Há pessoas esgotadas diante de certas formas. Esse é o desafio. Então quando o artista sai querendo inventar coisas, querendo ser diferente, novo, ele está entrando em um caminho perigosíssimo. E depois vai ter que voltar, se assentar, se organizar, retomar a coisa. Então já chegaram, nas artes plásticas, ao quadro em branco, à tela em branco — que não era nada. A literatura já chegou à folha em branco, mas nem por isso acabou. Um alemão publicou, em 1936, um livro todo em branco. Quer dizer que daí para frente ninguém mais vai publicar livro? Só na cabeça de pessoas com formações teóricas precárias. Por quê? Porque nós sabemos o seguinte: nenhum ser humano resiste a uma história.

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