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Moacyr Scliar

A terceira edição do Paiol 2009 contou com a presença de Moacyr Scliar

Moacyr Scliar foi o convidado da edição de junho do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. Scliar nasceu em Porto Alegre, em 1937. É médico e escritor, autor de mais de 80 obras. Seus livros contemplam diversos gêneros literários: romance, conto, ensaio, crônica e ficção juvenil, entre outros. É membro da Academia Brasileira de Letras e ganhador de prêmios como Jabuti, APCA e Casa de las Americas. Entre seus trabalhos, estão O centauro no jardim, A mulher que escreveu a Bíblia, Saturno nos trópicos, A orelha de Van Gogh e Os vendilhões do templo. Recentemente, lançou Manual da paixão solitária, pela Companhia das Letras (leia resenha na página 11).

No dia 2 de junho, durante um bate-papo mediado pelo escritor e jornalista José Castello no Teatro Paiol, em Curitiba, Scliar falou sobre as muitas relações entre ficção literária e medicina, analisou o panorama atual da literatura nacional e discorreu sobre o papel da ABL no cenário cultural brasileiro.

• Lágrimas de mãe
A literatura já fez parte do cotidiano das pessoas. Hoje, nossa cultura mudou, mas houve uma época em que a literatura era parte da rotina familiar. De noite, depois do jantar, o pai ou mãe liam para a família reunida. Não tinha tevê, não tinha cinema. A diversão era a literatura. Às vezes, era um filho que lia. José de Alencar lia para sua mãe, para sua tia. Ele conta, em suas memórias, que um dia ficou surpreso e comovido quando, lendo um romance, viu lágrimas correndo pelo rosto da mãe. Meu palpite é que foi ali que ele decidiu se tornar escritor. Deve ter pensado: “A literatura é a única coisa que faz com que um jovem arranque lágrimas de um adulto, sobretudo um adulto importante como é, para cada um, a sua mãe”.

• Ilusão generosa
A literatura pode mudar os destinos do mundo? Não pode. No decorrer dessa longa trajetória que é minha carreira literária, me dei conta de muitas coisas. Uma delas é esta: a literatura não muda o mundo. Mas a minha geração tinha a idéia de que a literatura ia mudá-lo. A gente escrevia para mudar o mundo. Nosso projeto não era menor que isso. Queríamos mudar o mundo, mudar o país em que a gente vivia. Não só a minha geração. Também a geração de Jorge Amado, de Graciliano Ramos, de Rachel de Queiroz, na sua fase inicial — era uma literatura de denúncia social que faria com que a mobilização social mudasse o país. Era uma ilusão. Uma ilusão generosa, mas uma ilusão. Acho que, se a literatura muda as pessoas, já está fazendo muito. E a literatura muda as pessoas. 

• Medo da doença
Há várias razões para entrar numa profissão que vai lidar com a dor, com o sofrimento, com a morte. No meu caso, o que me levou à medicina foi o medo da doença. Eu não era hipocondríaco, não tinha medo de ficar doente. Disso eu até gostava, porque, ao ficar doente, não precisava ir ao colégio; ficava em casa, com meu pai e minha mãe me paparicando. Era até gratificante. Mas, quando eles ficavam doentes, eu entrava em pânico. Sentia aquilo como uma ameaça sombria, inquietante, que me levou muito cedo a ler sobre medicina, a conversar com médicos. Perto da minha casa, até havia um pronto-socorro aonde eu ia observar os atendimentos.

• Um impacto atrás do outro
Minha entrada na faculdade foi um impacto muito grande. Ninguém é a mesma pessoa depois de estudar medicina. É uma experiência que muda completamente nossa forma de ver a vida. Um curso no qual, já no primeiro ano, somos apresentados aos cadáveres. Começamos o estudo da medicina através do corpo morto. Você pode imaginar o impacto que isso representa. Eu nunca tinha visto uma pessoa morta na minha vida. A primeira vez em que vi cadáveres — e eram muitos — foi quando entrei no necrotério na Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Você não pode imaginar o choque que senti. E não só eu. Vi meus colegas empalidecerem, se sentirem mal. Tinha gente que durante muito tempo não conseguia comer carne, por causa da dissecção dos cadáveres. Logo em seguida, a gente vai para o hospital. Lá na Santa Casa, obviamente, só atendemos os casos mais graves, porque somente os casos graves vão ao hospital. Então, é um impacto atrás do outro. E isso me motivou a escrever.

• Médicos impessoais
O livro Paixão transformada tem uma historinha. Ele começou a ser escrito em 1993, quando recebi um telefonema do chefe do departamento de literatura da Brown University, na Costa Leste dos Estados Unidos, me convidando para dar um curso de literatura brasileira e latino-americana. Eu disse: “Olha, fico muito honrado, mas sou um escritor, não sou um professor de literatura, e não tenho condições de dar aulas para alunos de letras”. E ele: “Mas quem falou que são alunos de letras? São alunos de medicina”. Aí, fiquei inteiramente surpreso. Depois, com mais detalhes, fui me dando conta do que aquilo se tratava. Era parte de um curso chamado Humanidades Médicas, e que ia abranger História da Medicina, Ética Médica, Comunicação Médica e Literatura e Medicina. Qual o objetivo? Eles tinham se dado conta de que a prática médica, em função do excesso da tecnologia que hoje está presente, se tornou impessoal. Ela se tornou distante. Os pacientes se queixam de não conseguir falar com os médicos. E a conseqüência prática disso é muito grave. Nos Estados Unidos, isso gera processos judiciais. As pessoas vão à justiça queixando-se de que os médicos não as trataram bem, e isso obriga os médicos a fazerem seguros contra processos médicos, o que eleva o custo da própria assistência médica. Então, dentro do pragmatismo americano, eles não queriam que eu elevasse a cultura dos estudantes de medicina. Eles queriam que eu lhes desse subsídios, para que os estudantes se tornassem médicos diferentes. E tinham toda a razão. Preparando as aulas, percebi que existem livros que podem ensinar mais para um estudante de medicina ou para um médico do que os próprios manuais médicos.

• Tolstoi para os estudantes
Existe uma novela muito curta, considerada por alguns críticos a novela mais perfeita jamais escrita. Chama-se A morte de Ivan Ilitch, e foi escrita por Tolstoi. Na história, já sabemos o que vai acontecer: um homem vai morrer. Um advogado famoso, arrogante, adoece gravemente e vai morrer. Essa sua trajetória para a morte é o objeto da novela. É quando esse homem entra em contato com médicos, que são tão arrogantes quanto ele. Não querem nem que ele fale. Ele não precisa falar, eles é que vão falar. E, assim, o doente é maltratado por seus médicos e por sua família. A única pessoa que o trata bem é um empregado, um camponês ignorante, um homem afetivo que cuida dele como um médico deveria ter cuidado. Essa novela é uma verdadeira lição para os estudantes de medicina. E mostra como, realmente, a ficção é capaz de ensinar coisas, inclusive para pessoas que teoricamente não precisariam ser ensinadas. 

• Kafka e o realismo fantástico
É claro que o realismo fantástico não foi inventado na América Latina. Isso é uma coisa que Kafka já fazia. Quando Kafka, em A metamorfose, nos diz que um dia, de manhã, depois de uma noite de sonhos agitados, Gregor Samsa acordou transformado num monstruoso inseto, ele está falando de uma coisa fantasiosa, irreal. E não se dá nem ao trabalho de fazer ficção científica, de dizer que algum cientista conseguiu transformar aquele homem em barata — aliás, ele não fala em barata, quem fala em barata é a gente. Mas as histórias de Kafka e de outros que, como ele, trabalharam o absurdo são histórias sombrias. O realismo fantástico latino-americano era o contrário, uma coisa bem-humorada, irônica. Enquanto a literatura de Kafka era uma literatura de fundo existencial — e ele é, muitas vezes, classificado entre os existencialistas —, a literatura latino-americana era uma literatura política. Ela surgiu nos anos 60, quando havia ditaduras militares em praticamente todos os países da América Latina. Havia censura e os livros eram apreendidos. Então, o realismo mágico ou fantástico era uma forma de denúncia que queria enganar a censura. Conseguiu e se tornou extremamente popular.

• A ditadura inspiradora
Em 1970, fiz uma viagem pela Europa e, nas vitrines das livrarias de todas as cidades por onde passava, lá estavam os livros de García Márquez, Vargas Llosa (que, na época, era de esquerda), Cortázar, Alejo Carpentier. A literatura latino-americana estava na crista da onda. Foi o chamado boom latino-americano. Todo mundo lia a literatura latino-americana. Curiosamente, não havia brasileiros. O único que poderia se enquadrar nessa categoria, acho, era o José J. Veiga. O realismo fantástico era uma coisa mais dos hispânicos que dos brasileiros. De qualquer maneira, a tendência influenciou muito a minha geração. A gente a incorporou. Desses autores todos, o que tinha mais apelo sobre mim era Cortázar. Talvez por ser de Buenos Aires, por falar de uma realidade muita próxima da de Porto Alegre. Naquela época, havia muitas afinidades entre as duas cidades. Enfim, na época da ditadura, a gente ia ao Uruguai comprar os livros de Cortázar e de outros autores — antes que o Uruguai também tivesse a sua ditadura. Mas onde está o realismo mágico, hoje? Era uma literatura datada. Agora não há mais ditadura, então… Uma coisa curiosa que Borges — que estava longe de ser um cara de esquerda — dizia era que devemos agradecer à ditadura por ela ser uma fonte de inspiração. O humor brasileiro de hoje, comparado ao humor daquela época, é absolutamente lamentável. Os programas humorísticos atuais são de uma grosseria, de uma baixaria… E, quando pensamos no humor de O Pasquim, por exemplo, aquele humor refinado, sutil, de gente que sabia escrever, nos damos conta de que o país mudou. Do ponto de vista literário, então, isso se tornou um desafio. Não há mais fontes de inspiração do tipo criado pela ditadura. 

“O escritor é um sismógrafo. Ele registra as vibrações que estão na sociedade.”

• Sismógrafo
Acho que não há uma tendência unificadora na literatura brasileira atual, mas há muitos talentos. Venho de um estado que é exemplo disso. A quantidade de escritores que o Rio Grande do Sul produz hoje é uma coisa espantosa. Boa parte do catálogo da Record é constituída por autores gaúchos de repercussão nacional. Agora, é uma literatura que ainda está para ser classificada. Ela já não tem mais causas políticas, nem desfralda mais bandeiras, pois as bandeiras do século 20 estão ausentes no 21. Com a queda do Muro de Berlim e do comunismo, se perdeu o grande ideal de transformação social da minha geração, com o qual ela se iludiu muito. Então, fico me perguntando: qual é a temática comum a esses escritores? Francamente, não sei. Acho que não há. O que há, hoje, é uma tendência para a literatura em primeira pessoa, algo que não era tão comum. Vocês não vão encontrar Jorge Amado na primeira pessoa, nem Graciliano Ramos. Isso, hoje, acontece muito. Até dizem — não só os escritores, mas também gente da mídia —: “Eu sou auto-referente”. O que quer dizer: “Eu só falo de mim”. O que não é um problema, claro, na medida em que a pessoa, ao falar de si, reflita uma conjuntura, um estado de espírito. Aí, isso estará mais do que justificado. O escritor é um sismógrafo. Ele registra as vibrações da sociedade. É claro que, ao escrever usando a primeira pessoa, falando de si próprio, um autor pode estar falando de algo que terá eco nas outras pessoas ou de algo que só vai interessar a ele. É o risco que inevitavelmente o escritor vai correr. 

• A ABL na goela gaúcha
Sou membro da Academia Brasileira de Letras. É um dado importante, mas não é um projeto de vida. Entrei para a academia literária por causa do Rio Grande do Sul. Foi Mario Quintana quem, indiretamente, me levou para a ABL, porque ele, que era um grande poeta e uma belíssima pessoa, por pressão do pessoal de Porto Alegre se candidatou a uma cadeira. Mas era um anticandidato, não dava a menor bola para a eleição — e dizia isso. Não foi eleito, mesmo porque também tinha adversários poderosos. Se candidatou mais uma vez e foi novamente derrotado. Numa terceira vez Quintana teria vencido, mas aí ele já não queria mais. O fato é que isso resultou num trauma para o Rio Grande do Sul. A Academia ficou entalada na goela gaúcha. Não dava para falar em Academia. O pessoal ficou em estado de guerra, o que criou um pouco de mal-estar. Foi então que a Associação Riograndense de Imprensa tomou a iniciativa de resolver o problema indicando outro candidato gaúcho — apesar de que, nesse meio tempo, já havia sido eleito Carlos Nejar. Como Nejar não morava no Rio Grande do Sul, não era o que eles queriam — um escritor gaúcho que residisse no Rio Grande. Por isso, vieram me procurar. Eu não queria ser candidato porque, se Mario Quintana não tinha sido eleito, muito menos eu seria. Mas eles não desistiram e, no ano seguinte, vieram de novo e mais uma vez. Enquanto isso, desencadeou-se uma espécie de campanha. Comecei a receber abaixo-assinados e mensagens. As pessoas me encontravam na rua e diziam: “Como é que a gente vota em ti?”. Pensavam que era como uma eleição para vereador. Aos poucos, fui me dando conta de que, se não me candidatasse, teria que me mudar do Rio Grande do Sul. As pessoas não iriam me perdoar. Então me candidatei e, para minha surpresa e alívio, fui eleito.

• Contraditória como o Brasil
Na Academia Brasileira de Letras existem dois componentes: o componente folclórico, aquela coisa do fardão, dos rituais e das fofocas; e o das figuras não muito literárias que estão por lá. Mas há também um terceiro componente, institucional, que funciona, edita livros e revistas, promove eventos literários e era o que o Machado de Assis queria ao fundar a ABL. Então, a Academia tem as contradições que o Brasil tem. É uma instituição absolutamente brasileira. Vou à academia quando dá, porque ninguém é obrigado a ir. Isso é outra coisa curiosa. As pessoas podem entrar na academia e nunca ir até lá, e está cheio de gente que faz isso. João Ubaldo Ribeiro nunca vai. É uma instituição muito peculiar — mas essa tolerância… A Academia, porém, também é conciliadora, outra tradição brasileira. Então, vou até lá com a freqüência que posso, participo do que posso, e a verdade é que lá há figuras muito expressivas da cultura brasileira, não só da literatura, mas da cultura de uma maneira geral, junto a outras não tão expressivas.

• Leopardos no poder
A parábola é a maior criação do estilo bíblico. É o ideal de todo narrador. Ela é curta e objetiva, vai direto ao ponto e faz as pessoas pensarem. Há parábolas no Antigo Testamento, mas no Novo há muito mais. Porque Jesus se deu conta de que, para falar àquelas pessoas simples, humildes, ele teria que usar uma linguagem figurada, a linguagem ficcional. Percebeu que as pessoas aprenderiam muito mais através da parábola. Mas eu não cheguei à parábola por causa da Bíblia. Fui mediado por Kafka, pois suas parábolas são realmente impressionantes. Vou contar uma, de duas ou três linhas, conhecida como Leopardos no templo. Ela diz o seguinte: “Leopardos entram no templo e bebem até o fim o conteúdo dos cálices sagrados. Com o tempo, isso se transforma em uma rotina e é incorporada ao ritual”. É só isso. E, quando vocês pensam nessa história, se dão conta de que Kafka estava antecipando o totalitarismo do século 20. Os leopardos — e isso aconteceu no Brasil também — que chegam ao poder tomam até o fim o conteúdo dos cálices sagrados e fazem com que suas rotinas de violência sejam incorporadas ao ritual do cotidiano. E esse é o segredo do totalitarismo. Ele, numa certa altura, se legitima. E aquilo que era antilei passa a ser lei. (…) Então, em três linhas, Kafka traça um panorama do que foi o totalitarismo no século 20. Não é de se admirar que o regime comunista tenha proibido os livros dele. Eles sabiam do que Kafka estava falando. 

• Literatura e revolução
A idéia da minha geração era transmitir uma mensagem, ensinar alguma coisa. Estou falando de uma geração que queria transformar o mundo em moldes esquerdistas. Isso estava na minha cabeça desde a infância, porque sou de uma família de comunistas tradicionais. (…) No colégio e na faculdade, era a mesma coisa. E estar no Rio Grande do Sul, um estado extremamente politizado, favorecia isso. A idéia que eu tinha era a de que a literatura iria transformar a sociedade e o mundo. Era a idéia de Jorge Amado, e que aparece, por exemplo, em Capitães da areia. O final daquele livro nos convoca à revolução, mas foi escrito pelo Partido Comunista — porque Amado tinha que mostrar seus livros para o partido. E o partido tinha que endossar seus livros antes de serem publicados. Dá para ver que a literatura mudou um bocado neste país. Realmente, quando as pessoas saíam disso, muitas vezes saíam arrasadas. Jorge Amado mudou por completo, para uma linha irônica, satírica, meio de gozação sexual. 

• Sexualidade
Tenho um amigo escritor que, sempre que vai escrever uma cena de sexo, fica pensando: “O que meus pais diriam ao ler isso?”. Mas a verdade é que, no processo de afirmação literária, lidar com o sexo é um passo importante. Mas lidar com o sexo como uma coisa normal, muito reveladora, e que também permite a criação literária. Boa parte da literatura é de inspiração erótica, o que não quer dizer pornográfica — vamos diferenciar muito bem. Erotismo é uma coisa, pornografia é outra. Pornografia é uma coisa grosseira, de baixo calão. O erotismo não. Ele faz parte da vida das pessoas e é algo que estimula a criatividade. Jamais fugi do tema do sexo em minha literatura. Aliás, nunca fugi de tema algum, pois tudo que é humano pode servir de matéria-prima à literatura, seja sexo, doença, loucura, violência. Qualquer coisa feita por seres humanos pode encontrar seu lugar numa obra literária.

• Tristeza superior
A melancolia foi um conceito criado por Hipócrates. Ele dividia os temperamentos humanos em quatro tipos: o sangüíneo, que é o do cara ativo; o fleumático, que é o do cara reservado, impassível; o colérico, que é o do cara furioso; e o melancólico. Essa divisão se deveria a uma substância que ele imaginava existir no nosso organismo, chamada bile negra. Enfim, era um conceito; esse conceito foi sumindo, mas, de repente, reapareceu com força total. Começaram a surgir livros sobre melancolia, poemas sobre melancolia, quadros sobre melancolia — inclusive, há uma gravura famosa de Dürer chamada Melancolia. Isso tudo num curto espaço de tempo. E, lendo sobre isso, as perguntas que me ocorreram foram justamente estas: por que as pessoas voltaram a se preocupar com a melancolia? Por que a melancolia, de repente, se tornou uma preocupação não só de médicos, mas, sobretudo, de artistas e intelectuais? Resposta: por causa da época, do advento da modernidade. E a modernidade começou bipolar. Ela é maníaca. Por quê? Porque é uma busca incessante, uma corrida pelo conhecimento, pela arte, pela riqueza, por novas terras, por sexo, pela especulação financeira. Foi nessa época que nasceu a Bolsa de Valores. Uma época em que a rigidez de costumes medieval deu lugar a uma promiscuidade inimaginável. E aí uma doença surgiu e se disseminou: a sífilis. Todo mundo tinha sífilis, porque todo mundo estava às voltas com o sexo. Uma época meio maluca, maníaca nesse sentido. E as pessoas de espírito superior, como os artistas, os poetas, os escritores e os filósofos, a olhavam com uma tristeza superior, uma tristeza que tinha uma aura intelectual. Isso é a melancolia. A melancolia é um desgosto diante das bobagens do mundo. 

“A melancolia é um desgosto diante das bobagens do mundo.” 

• O ômega melancólico
Melancolia não é a mesma coisa que depressão. A melancolia é um estado de espírito; a depressão é uma doença química, que se trata com produtos químicos. E as pessoas melhoram, não tenha dúvida. A depressão, hoje, é uma coisa tratável. Mas João Cabral tinha razão: o negócio dele provavelmente não era depressão, era melancolia, era essa tristeza superior. Estive algumas vezes com João Cabral e ele realmente tinha uma cara melancólica. Existe até uma “marca” da melancolia, uma ruga que se forma na testa em forma de ômega. Chama-se ômega melancólico. E acho que João Cabral tinha um pouco desse ômega melancólico. (…) Na verdade, a depressão é um rótulo atualmente favorecido, é óbvio, pela indústria farmacêutica, que ganha uma fortuna vendendo antidepressivos. Porque ninguém quer ficar deprimido. Ninguém. As pessoas têm um medo terrível da depressão. Elas não têm medo da mania, porque o maníaco é um cara “simpático”. É o cara que chega para você e fala: “Estou bolando um negócio bilionário, uma excursão para Marte, até já falei com o pessoal da Nasa”. E você dá a esse cara o beneficio da dúvida. “Pode ser que ele seja maluco. Mas e se não for? E se ele ganhar uma fortuna? Será que eu não tenho que me associar a esse cara?” Do deprimido, ninguém quer saber. Uma das queixas das pessoas que sofrem de depressão é a de que ninguém as entende. Todos se irritam com o deprimido. Uma vez, no México, encontrei o escritor William Styron (autor de A escolha de Sofia). Olhei para ele e notei que também ele tinha o ômega melancólico. Styron escreveu um livro sobre depressão, Darkness visible: a memoir of madness, no qual diz que, para os outros, o deprimido é um preguiçoso emocional. Pensam que ele é um cara que se atira nas cordas e não quer lutar. As pessoas repreendem o deprimido: “Tu não podes te entregar, tu tens que lutar”. Pensam que é uma coisa de apatia, de preguiça. Styron escreve: “As pessoas não têm idéia da tempestade que é o cérebro de um deprimido”. Ele não pára. Ao contrário do que parece, pela imobilidade do deprimido, dentro dele o conflito é constante, tremendo, avassalador. São pessoas que sofrem tremendamente e que, além disso, tem que arcar com a incompreensão de quem está ao seu redor. E, numa sociedade competitiva, o deprimido é um “problemão”. Um executivo deprimido não interessa a empresa nenhuma. O cara que está lá, quieto, no seu canto — esse cara não serve. Então, se é para escolher entre um executivo deprimido e um executivo maníaco, eles vão escolher, mil vezes, o maníaco (risos). Todos nós temos que ser um pouco maníacos, mas a mania cansa. Porque, no fim, o maníaco acaba enchendo o nosso saco.

• Esposa e amante satisfeitas
Tchekhov foi uma influência muito grande para mim. Não só porque ele era médico e escritor, mas porque era doente também. Era tuberculoso. No final do século 19 e no início do 20, a tuberculose era a doença dos escritores e dos poetas, sobretudo dos poetas românticos. Kafka morreu de tuberculose. E, aqui no Brasil, quantos morreram, não é? Castro Alves, Álvares de Azevedo. Uma coisa muito interessante. Tchekhov tinha uma experiência pungente da doença, e isso o levava a escrever. Se bem que não escrevia muito sobre medicina. Mas era um escritor de mão cheia, com uma vocação muito grande para a literatura, e foi o autor de uma frase até hoje muito repetida: “A medicina é minha esposa e a literatura é minha amante, mas dou um jeito de satisfazer as duas”. Acho que essa metáfora descreve muito bem a situação de muitos médicos escritores. Há vários no Brasil. O exemplo mais conhecido é o de Guimarães Rosa, mas podemos citar muitos outros. Jorge de Lima, Pedro Nava. É gozado, porque fui aluno de Nava. Ele era mineiro, mas às vezes ia dar cursos em Porto Alegre. Um grande médico, um grande reumatologista. Tive uma surpresa enorme quando soube que também era escritor. Só descobri isso no final da sua vida. Ele era muito reservado em relação à sua literatura. 

• Chega!
Desde quando comecei a trabalhar com medicina, ficou claro que eu nunca teria um horário especial para escrever. Isso era absolutamente impossível, eu trabalhava intensamente. E só trabalhava intensamente com medicina — e com saúde pública, minha especialidade — porque adorava aquilo. A saúde publica é uma paixão, algo que realmente me mobiliza até hoje, tantos anos passados. A cada epidemia, fico mobilizado emocionalmente. Então, sempre soube que não teria tempo para escrever. Por isso, aprendi a escrever quando dava. Na hora do almoço, por exemplo. Aprendi que dava para trocar o almoço por um sanduíche rápido. Mas não façam isso, não é o médico quem está recomendando. E escrevia também à noite, no fim de semana. Uma pré-condição importante para o escritor é ter uma família que o apóie. Minha mulher e meu filho sempre me apoiaram. Meu filho com mais relutância, porque, quando pequeno, não entendia por que o pai, em vez de levá-lo passear como todos os outros pais, ficava batucando numa máquina de escrever. Um dia, ele até subiu na minha mesa, sentou-se na máquina e disse: “Chega! Agora tu não vai escrever mais! Tu vai me levar no parque”.

• Nostalgia do leitor que fui
Eu não faço literatura infantil. Ela é algo que exige uma vocação, como acontece com a poesia, que também não faço. Mas, da literatura juvenil, gosto muito. E faço esse tipo de literatura um pouco por nostalgia, a nostalgia do jovem leitor que já fui — na pré-história, naturalmente. Ler, quando a gente é jovem, é muito importante, é uma aproximação muito emocional com a literatura. O livro faz a cabeça do jovem. 

• Faz um resumo?
Sempre me perguntam se meu filho é escritor. Não, a vocação dele é a fotografia. É um grande fotógrafo, pelo menos para este pai coruja. Ele é um leitor, mas não um leitor de ficção. Ele lê sobre a área dele, sobre fotografia, livros enormes, em inglês. Mas, de ficção, nunca gostou. Uma vez, até dediquei um livro meu para ele, um livro juvenil. Quando o livro veio da editora, levei-o para meu filho e disse: “Olha este livro. Está dedicado para ti. Queria que pelo menos este livro tu lesse”. Aí ele olhou para aquele objeto ameaçador e me disse: “Tu não podia me resumir isso aí?”.

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