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João Gilberto Noll

A décima edição do Paiol 2009 contou com a presença de João Gilberto Noll

A última edição de 2009 do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e com o Sesi Paraná — aconteceu no dia 17 de novembro. O convidado foi o escritor gaúcho JOÃO GILBERTO NOLL, nascido em Porto Alegre (RS), em 1946. Noll é autor de 13 livros, entre eles, Acenos e afagos (Prêmio Portugal Telecom 2009), Mínimos, múltiplos, comuns, O cego e a dançarinaA fúria do corpoBandoleiros e Lorde. Por sua obra, recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Jabuti em cinco ocasiões: 1981, 1994, 1997, 2004 e 2005. O romance Harmada consta da lista dos cem livros essenciais brasileiros em qualquer gênero e em todas as épocas, organizada pela revista Bravo!. Seus livros já foram adaptados para o cinema e o teatro e ganharam traduções na Argentina, na Inglaterra e na Itália.

No bate-papo entre o autor e os seus leitores, mediado pelo escritor e jornalista José Castello, Noll falou sobre as características mais marcantes de sua escrita e de seus personagens, reforçou o amor que sente pela poesia e analisou a influência do cinema na sua obra, além de ler, para o público, vários trechos de seus romances Lorde e Acenos e afagos.

• A expressão de uma voz
Gosto realmente de ler trechos dos meus livros. Porque tenho a impressão de que escrevo principalmente para a expressão de uma voz. O que interessa nos meus livros, se alguma coisa realmente interessa, não é a sua trama, não é o seu enredo. É a percepção que este meu pequeno herói tem do mundo (Noll mostra o seu romance Lorde). A percepção dele em relação ao mundo, às coisas, aos objetos. Ele é extremamente contemplativo. Gosta muito de olhar e de traçar comentários sobre as coisas que vê. Isso, inclusive, é um dos seus problemas básicos. Essa vocação para a contemplação num mundo que exige, o tempo todo, a produtividade.

• Fusão perigosa
Outra coisa capital nos meus livros é o erotismo, sem sombra de dúvida. Um erotismo às vezes pesado, às vezes mais lírico. Esse desejo de conviver com a interioridade do outro, essa possibilidade de se fundir ao outro, também é muito forte no que eu escrevo. A ponto de o personagem central de um dos meus livros, Lorde, haver conseguido esse intento. No livro, ele se transforma em outro. Ou o outro o introjeta. Seu aspecto exterior é do outro, não é dele, mas é ele quem articula a visão do outro. Isso é muito perigoso. Porque, se você quer se fundir ao outro, é claro, o amor pode pintar nesse momento. Os franceses dizem que o orgasmo é uma pequena morte. E justamente aí é que está o lado perigoso desse “se fundir” ao outro. Quer dizer, quando você se funde demais ao outro, e isso acontece com o cara do Lorde, bye-bye. A identidade dele vira uma terceira coisa.

Sem flashbacks
Escrevi Lorde em Londres, com uma bolsa de escrita do King’s College. Fiquei quatro meses lá, escrevendo esse livro, da manhã até as entranhas da madrugada. E foram os dias mais felizes da minha vida, não tenho a menor dúvida disso. Porque eu vivia, ali, o princípio do prazer freudiano o tempo todo. Eu não estava exatamente na realidade. Eu estava ficcionalizando uma série de coisas que eu vivia. Claro que Lorde não é um livro autobiográfico. Nem tenho jeito para fazer coisas autobiográficas, para fazer um documentário sobre o meu eu. Mas, realmente, se eu não tivesse ido a Londres, eu não teria escrito esse livro. Dos meus livros, Lorde é o livro que mais admiro. Justamente por sua concisão. Nele, só falei sobre as coisas que eu estava vivenciando naquele momento. O que eu via, o meu quarto, o ônibus que eu pegava, o bairro em que eu morava. Tudo partia da realidade empírica, ali, daquele momento. E não faço nenhum flashback em relação ao Brasil. Porque o cara (o seu personagem) é brasileiro, escritor. E eu não fazia flashback. Isso de não fazer flashback também é muito meu.

• Todo mundo e ninguém
A primeira frase do livro A fúria do corpo é: “O meu nome não”. Não queira saber meu nome, não queira saber da minha cidadania. Quero algo além da cidadania. Eu disse: “O meu nome não”. Aqui (mostra o Lorde) também tem isso. Meus personagens jamais têm nome. Às vezes, faço algumas brincadeiras com João, João Evangelista, por exemplo. É para não ficar muito psicologista: o cara foi ofendido na infância, chega à idade adulta, faz isso e faz aquilo. Isso realmente dá ao personagem uma cidadania exagerada, que eu não quero. Eu quero falar de todo mundo e ninguém através desse meu protagonista que é sempre o mesmo homem. Só descobri isso há pouco tempo. Ele é sempre o mesmo homem. Ele vai continuar comigo. Tenho plena certeza disso. Ele habita em mim. E, se ele se for, eu vou junto. Então, realmente, quero que ele fique vivinho e com saúde dentro de mim. (passa a ler trechos de Lorde e, logo depois, de Acenos e afagos).

• Atração pela perversão
A importância da literatura na vida cotidiana se faz por conflitos. Por atritos. São coisas muito diferentes. A vida cotidiana pede uma praticidade que eu geralmente não tenho, confesso. Mas, aos trancos e barrancos, estou indo muito bem na minha vida de escritor. Sobre a vida cotidiana, ela é o que é, digamos assim. E a literatura, para mim, é transfiguração. Se não for transfiguração, não é literatura. E você não pode viver o seu dia-a-dia em estado de transfiguração. Impossível. Para mim, é algo irresolvível. São duas coisas bastante distintas. A literatura pede um espaço muito grande de ócio, de contemplação; e a realidade pede o aspecto emergencial das coisas. Tudo é muito emergencial na nossa contemporaneidade, por motivos óbvios. E você não escreve ficção com pressa. Eu uso muito a pressa e o emergencial na minha sintaxe, por exemplo. São sintaxes, em geral, muito longas, que querem justamente alcançar o simultaneísmo. Por isso, são longas. Elas não têm tempo para o ponto final. O que é ponto vira vírgula. E é por isso que leio as minhas coisas assim (em voz alta), meio sôfrego. Porque a pontuação é muito escasseada, pelo menos o ponto gramatical. Acho que isso vem da emergencialidade, dessa ânsia da simultaneidade. É como um antídoto, como uma vacina que pega o mal para matar o mal. Porque, se não fosse assim, não teria graça ser um escritor. Não dá para ficar o tempo todo denunciando o que não presta. Você tem que ter certa atração pelo que não presta, pela perversão. E, muitas vezes, você pode fazer uma espécie de acusação, usando aquilo que o mundo — ou que você mesmo — condena, como potencial estético. Pode. Senão tudo seria literatura politicamente correta.

“Literatura é transfiguração. Se não for, não é literatura. E você não pode viver o seu dia-a-dia em estado de transfiguração.”

• Um escritor de linguagem
Essa história da presentificação é muito importante. A Clarice Lispector também tinha isso. Essa coisa de relatar, mas expressando também a sua dificuldade de relatar. E é muito penoso mesmo. A expressão da linguagem é uma coisa muito penosa. E eu sou um escritor de linguagem, não sou um escritor de tramas. Começo a escrever um livro escrevendo qualquer coisa. Começo pela palavra, e não por idéias pré-estabelecidas. Começo e vou me aventurar, vou ver aonde vai dar aquilo. Então, num determinado momento, surge o tom que eu estava querendo e eu nem sabia que estava. Porque esse início é um tatear, um aquecimento, à procura daquilo que não sei bem o que é, mas que seria bom que pintasse. Então, sou um escritor de linguagem. Escrevo ficções de linguagem, de voz. A voz é muito importante para mim. E lendo, lendo, lendo assim (em voz alta) para possíveis leitores, me dei conta de que estava fazendo uma voz bastante demencial. Mesmo fisicamente. Estou a ponto de sucumbir, tamanho o peso dessa voz. Não é a minha voz, exatamente. Ela se encarnou em mim.

• Inveja dos músicos
Esse homem (o seu personagem) representa certa carência que eu tenho. Uma falta. Uma falta de mundo, de aconchego. Enfim, de tudo que é gostoso. Eu escrevo porque me falta. Começo a escrever pela falta, pela carência. Não tenho nada na cabeça. Minha cabeça está vazia. Tanto isso é verdade que, em Acenos e afagos, num determinado ponto do livro, vi minhas mãos caminhando sozinhas. Mesmo. Tenho muita inveja, no bom sentido, dos músicos. Porque os músicos não materializam idéias. Estou falando de música — vamos abstrair as letras de música, ou aquelas músicas chatas, descritivas, Tchaikovsky… E a literatura é uma coisa sumamente intelectiva. Por mais que seja poética, ela é um fator intelectivo. A língua é um fator intelectivo. Então, minha utopia, porque isso é uma utopia, e não podia ser diferente, é que a literatura tenha esse aspecto não-intelectivo da música e, muitas vezes, da poesia. Então eu tento fazer esse amálgama entre poesia e música, que são coisas mais artísticas. Já os romances tratam das questões fundamentais de seu tempo — os grandes romances, claro. São coisas mais analíticas. E um grande romance sempre vai ter relações de personagens abundantemente ricos. Mas eu queria fazer mais arte do que literatura. E é por isso também que leio para as pessoas. Porque, quando leio, crio um momento muito mais artístico.

• Esquizóide
Eu não sou um escritor da família. Meus personagens centrais são desfamiliarizados. Não têm mãe, nem pai, nem nada. Porque já houve um autor brasileiro que tratou desse assunto às mil maravilhas: Nelson Rodrigues. Eu quero pegar os seres avulsos mesmo. Mas não acho legal dizer que meus personagens fizeram uma escolha, porque, enfim, é muito difícil determinar se alguém faz uma escolha ou se é impelido a alguma coisa. Há essa procura insana por algo, essa procura que faz com que esse cara (o seu personagem) viva vagando, pegando um ônibus de uma cidade a outra sem ler para que destino ele vai. Tudo tem muito a ver com o fato de que, depois do meu terceiro livro, eu voltei para o Sul, para ver se conseguia escrever mais. E consegui. Realmente foi uma escolha muito acertada. Mas, lá, passei a não me encaixar no ambiente à minha volta. Fiquei, eu próprio, muito avulso. Por um lado, essa condição me permitiu escrever muito sobre esse cara que vive, também, de lá para cá, sem destino. De certa forma, encarcerei esse cara dentro de mim: “Você fica aqui, você fica quieto”. Mas não é só isso. É uma relação extremamente amorosa também. É uma coisa que você guarda, porque é um filão — a palavra é horrível —, um filão de futuros livros. Não quero me desfazer dele, mas, em nenhum momento, eu acho que seja real. Ou que eu seja um esquizóide por causa disso. Até posso ser, mas não por isso.

• Vontade de ser o outro
Tenho muita vontade de ser o outro. Com essas revistas comercializadas por aí, hoje, com seus belos jovens, todo mundo tem um pouco de vontade de ser o outro. De ser aqueles corpos. Para se dar bem nos amores, na profissão, etc. Então, é um pouco isso, também. Ele (o seu personagem) quer ser o outro. Ele está insuficiente naquele seu papel cotidiano. Ele se sente insuficiente. Daí, o desejo, principalmente no Lorde, de ser o outro. Ele quer ser o outro. Há momentos em que ele se maquia, em que pinta o cabelo. Mas isso não resolve nada. É um pouco também aquela coisa do brasileiro em Londres, chegando lá, vendo aquela elegância. Ele queria ser aqueles passantes tão bem educados. Até que, um dia, ele começa sua carreira de ladrão de carteiras em estações de trem. E tem orgasmos com isso. Quando dá um esbarrão em um inglês, de uma forma muito bacana, com um gesto muito bacana, e lhe toma a carteira, ele vai para o banheiro, que é onde poderá ver que notas estão guardadas ali. E descobre que há uma boa disponibilidade de grana dentro da carteira. Então, ele tem realmente uma vertigem. Aquele lugar estava fedendo, era um banheiro público. E ele transcende aquilo, e se eleva pela possibilidade de poder gastar mais durante os próximos tempos. Ele também é muito tentado à prostituição. Mas não dá. Ele não tem mais idade para isso.

• Na canoa da solidão
Meus livros são tristes. É a solidão. A solidão radical em que esse cara (o seu personagem) vive, completamente. Ele não troca nada com ninguém. É impressionante. E a solidão também é um tema bastante atual no mundo contemporâneo. A solidão é uma questão crucial. É muito político falar da solidão hoje. É muita gente nessa canoa. Mas talvez meus livros não sejam tristes o tempo todo. Eles têm momentos líricos, também. Bem líricos.

• São esses
É Drummond. É Fernando Pessoa. É tanta gente. É Cecília Meireles. É T. S. Eliot. São esses. É desses que eu gosto.

Uma canga
A narrativa é uma canga para o romancista, para o contista. Você não pode se afastar do relato, da forma capital do romance do século 19, de Balzac e tal. E quando você coloca a possibilidade poética no relato, é como se o tempo se coagulasse um pouco, se libertasse um pouco do próprio relato. Porque o relato tem muito a ver com a história humana, está muito colado a ela. Mesmo na ficção. Ele tenta administrar as coisas como a história administra: numa seqüencialidade. Meus livros se desesperam diante da seqüencialidade, dessa seqüencialidade muito automática, de causa e efeito. Mais uma vez, por isso, é que eu procuro limpar, deles, o passado, e trazer a poesia um pouco mais para perto da prosa. É esse o momento em que você coagula. Como naquele momento entre um pai e seu filho (em um vestiário, numa cena de Acenos e afagos que Noll tinha acabado de ler). Não acontece nada. Mas é um momento de consagração, de celebração da beleza jovem. É algo impossível que está se travando ali.

• O eu da narrativa
Às vezes, acho que o que faço é também um pouco de poesia lírica e narrativa. Porque estou preocupado é com o eu da narrativa. Geralmente, uso a primeira pessoa. Às vezes, alterno a primeira com a terceira, mas geralmente uso a primeira. Gosto de saber a opinião que o sujeito tem do mundo. Nem tanto o que está acontecendo no mundo.

• Minha madrasta
Em nenhum momento quis desistir. Mas, realmente, renunciei demais pela literatura. Demais. Foi excessivo. Em termos materiais. Sou de um grande despojamento material. Um horror. Eu acho um horror. E me arrependo um pouco. Mas, como pude escrever tantos livros, esse horror se amaina um pouco. Eu morava no Rio de Janeiro. Morei lá por 21 anos. E, no início, o fato de eu ter deixado o Rio e voltado para o Sul quase me enlouqueceu de tanta dor. Eu nem tinha consciência, na época, de que eu estava voltando para poder me doar um pouco mais à literatura. E foi o que aconteceu. Os livros estão aí. Mas fiquei muito indigente, humanamente falando. Indigente em todos os sentidos — claro, num país como o Brasil… Por isso é que eu chamo a literatura de “minha madrasta”. Ela exigiu muito de mim. Tenho a impressão de que isso vem da minha infância, sabe? Da religião católica. Fiz o primário e o ginásio numa escola católica. E tinha essa coisa da missão, não é? A coisa da missão, de ter que doar o máximo de você. Agora, neste momento da minha vida, aos 63 anos, quero dar uma maneirada. Mas, quando penso nisso, estou pensando também que já tenho um novo projeto na cabeça. E há a necessidade de me entregar a ele completamente.

• Afásico, neuroconturbado e pobre de espírito
Sou tudo isso.

“Não dá para ficar o tempo todo denunciando o que não presta. Você tem que ter certa atração pela perversão.”

• Afásico
Acho que sou um pouco afásico. Mais na infância do que hoje. Mas, mesmo hoje, me custa tirar as palavras a… Como é que se chama aquela coisa que pega e…? Fórceps. Mas a aspiração ao silêncio também está na minha obra. Eles (os seus personagens) muitas vezes não querem saber da palavra. Estão de saco cheio de ter que expressar, o tempo inteiro, o mundo e as coisas do mundo. Vamos descansar um pouco, gente.

• Neuroconturbado
Tive um momento muito sério na minha vida, durante a adolescência. Muito grave, pelo menos para mim. Não queria mais estudar. Ficava em casa. Ou então, para fingir que ia ao colégio, eu saía caminhar. A mania de caminhar, já presente naquela época. Era o momento de despistar rastros.

• E pobre de espírito?
Isso, eu acho que não sou. Eu só estava brincando.

• Na imprensa
No Rio, eu trabalhei na Última Hora, no Correio da Manhã. Eu era redator do caderno cultural. Entrevistei pessoas maravilhosas, como Jeanne Moreau, na época em que ela veio ao Brasil fazer Joana Francesa. Também entrevistei vários músicos brasileiros. Mas eu sentia, sempre, que tudo me roubava um pouco da ficção. O jornalismo me ajudou muito no aspecto da síntese, nisso de limpar o texto sem clemência. Nesse sentido, ele foi muito bom para a minha literatura. Como experiência, o jornalismo me dispersava, mas eu não sofria muito com isso, não. Porque conheci muitas pessoas que eu amava como artistas. Entrevistei o Tom Jobim, no Bar Veloso. Ele me disse que gostava muito de Debussy e Satie.

• O desdém de John Wayne
Não tenho essa visão de ser isso ou aquilo em relação à literatura brasileira. Realmente não penso nisso. O que posso pensar é que, talvez, eu esteja escrevendo coisas muito contemporâneas. Isso eu posso pensar. Mas não que eu faça parte de um cânone da literatura brasileira. Até porque discuto um pouco essa coisa de literatura brasileira, isso de ela ser um setor das letras internacionais. As coisas estão todas misturadas. Os estrangeiros, os brasileiros. E tem outra: o cinema da minha infância foi muito importante para as coisas que escrevo hoje. Muitas vezes, nos meus livros, o cinema se torna quase que uma segunda natureza para o cara (o seu personagem). Então, imagine, eu lá, com oito, nove anos, vendo todos aqueles filmes, sobretudo os americanos, por razões óbvias. Aquilo foi inoculado na minha cabeça de uma forma muito profunda. E está presente nas coisas que escrevo. Como, por exemplo, o olhar de John Wayne, aquele machão protótipo da força norte-americana. Sempre fui muito curioso quanto ao olhar de desdém dele, principalmente para as personagens femininas. Ele olha sobranceiro, assim, não é? Dá um minissorriso. E esse minissorriso, essa coisa desdenhosa, eu levei para os meus personagens. Porque eu não tenho isso, não sou um cara de desdenhar. Mas, como é bom colocar coisas que não são suas no seu protagonista! Então, não é só da realidade brasileira que eu trato. Imagine o que o cinema americano não fez com a cabeça das crianças latino-americanas. É inconcebível. Escrevi coisas até muito explícitas sobre isso. No meu primeiro livro de contos, de 1980, O cego e a dançarina, tem um faroeste. Faroeste mesmo. Só que se passa na Baixada Fluminense, naquela poluição tremenda.

• Esvaziado
Tenho que manter um intervalo, sim, entre um livro e outro. Agora, por exemplo, estou terminando um. Já terminei, na verdade. Só estou polindo esse livro, que fiz a convite da editora Scipione. É uma narrativa longa, juvenil. O personagem central é adolescente e a linguagem é a mesma dos meus livros para adultos. Não houve nenhuma mudança. Não tive a menor complacência. E, realmente, esse garoto é o meu personagem de sempre. Só que na adolescência. Todas as suas questões estão ali. Mas, enfim, a história se passa no Rio. Chama-se O anjo das ondas, porque trata de um surfista. Um surfista que vive coisas muito escabrosas. O livro sai no começo do ano. E a Scipione também está lançando, neste momento, dois livros de contos meus. Cada um, um volume diferente, de contos novos. Mas não escrevo um livro e passo prontamente para outro projeto. Não, não dá para fazer isso. Você fica um pouco esvaziado.

• Mundo de viagens
Viajo muito. Este ano foi uma loucura. O mundo de viagens que fiz. Para o exterior também. Fazendo palestras. Coisas assim. Fui para a Argentina, a Bolívia, a Espanha, a Inglaterra. Para vários estados brasileiros. Saíram cinco livros meus traduzidos na Argentina, e os livros hispano-americanos circulam muito pelos mais diversos países. Não é como aqui, em relação a Portugal.

• Pequenos romances
Foram contos que fiz para a Folha de S. Paulo, para a Ilustrada. Eu escrevia dois microcontos por semana. Uma produção muito alta, muito alta mesmo. São trezentos e poucos, no total. Gosto muito do que o Wagner Carelli escreveu no prefácio desse livro (Mínimos, múltiplos, comuns). Ele disse que esses microcontos têm, cada um, a função de um romance inteiro. Não são microcontos que tentam pegar uma fatia, um fiapo do cotidiano. São romances, microcontos às vezes até épicos. Vão do nascimento à morte de seus personagens. Gosto muito desse livro. Gostei muito de me dedicar a essa forma, aos instantâneos. No início, eu me fechei num quarto e escrevi o máximo que eu podia, uns dez microcontos. Para poder fazer os seguintes com mais tempo. Então, eu sempre tinha dois, três, quatro textos já guardados na redação. Textos que tratavam das coisas com um tom mais artístico. Porque a maneira como algo é dito talvez seja mais importante do que aquilo que é dito. É uma questão. Acho que são microcontos, sim, mas também têm um pouco de romance. O Carelli tinha razão nisso. E foi ele quem fez a organização. Eu não consegui fazer. Não consegui pinçar os contos e pensar em que ordem ficariam. O Carelli fez isso. E deu os títulos gerais para cada grupo de textos. Eu gostaria muito de retomar essa experiência. Gostaria muito. (…) Mas só escrevo ficção. Não sei fazer crônica.

• Forças excretoras
Até no momento de ir ao banheiro podem se infiltrar, aqui e ali, coisas líricas. Agora, as ações dos meus personagens não são hierarquizadas. Ir ao banheiro pode ser tão importante quanto uma noite de amor. Acho que é isso. Muitas vezes, o lirismo pode se infiltrar aí. E por quê? Porque esse é um momento artístico também. Eles (os seus personagens) são muito de celebrar as coisas, de celebrar os instantes. E até o momento de ir ao banheiro pode ser algo cultivado, chegando, às vezes, a certo lirismo. No Lorde, quando o cara rouba um inglês numa estação de trem e vai para o banheiro, aquele é um momento de profunda celebração. O cara se eleva a partir do momento em que sente que ali, naquela carteira, tem grana suficiente para um belo estágio da vida dele. E também eu sempre fiquei muito curioso com essas coisas. É muito difícil o cinema, e mesmo a literatura, mostrar esses momentos. Mas a minha literatura consagra muito, cultiva muito as forças excretoras do corpo. A urina. O esperma. Os fluxos menstruais. A própria merda. São coisas bastante louvadas. Nesse sentido, faço uma literatura muito materialista. Existe um cultivo muito grande na matéria humana.

“Minha literatura cultiva as forças excretoras do corpo. A urina. O esperma. Os fluxos menstruais. A própria merda. Nesse sentido, faço uma literatura muito materialista.”

• Corpo nostálgico
Estou muito ligado à produção de dissertações e teses de doutorado sobre o meu trabalho nas universidades brasileiras. E elas estão, em sua maioria, no meu site. O que também é muito bom, porque mantém as pessoas da academia informadas sobre as novas pesquisas. Gosto muito. E estou sempre à disposição de quem quiser conversar comigo acerca de seus trabalhos. (…) Aliás, várias dessas teses se referem a essa questão do corpo. A essa questão da materialidade. Muitas vezes, as excreções humanas não são exatamente convertidas em algo muito lírico, não. Mas o lirismo se faz a partir do peso dessa substância, do peso do corpo e dessa sua densidade, muito concentrada. Porque, às vezes, ele (o seu personagem) tem que cantar entre o espaço vazio e essa concentração do humano. E isso, essa concentração, também se desfaz, se esfarela um pouco. As pessoas viram flutuantes — isso também está aparecendo muito nas minhas coisas. É isso. Um corpo talvez nostálgico. Uma saudade de um corpo que nunca realmente se fez. E a infância.

• Uma promessa de afeto
A infância tem uma importância enorme para mim. É sempre um momento de delícia. Esse meu personagem (de Acenos e afagos) sempre encontra crianças que nunca mais vão aparecer no livro. Mas são encontros muito significativos. Os sorrisos… Isso me lembra muito um filme do Fellini, muito importante para mim: La dolce vita, com Marcelo Mastroianni, que também é um ator-fetiche para mim e para a minha geração. Eu, às vezes, imagino esse meu protagonista como o Marcelo Mastroianni. Porque o Mastroianni é um personagem mais real. Não posso imaginar James Dean para esse cara, uma coisa totalmente recriada por Hollywood, algo que não é real. Mas, no final de La dolce vita, o Marcelo Mastroianni, depois de uma noitada de sexo e de álcool, vai até uma praia deserta e, lá longe, ele vê um riachinho, e vê uma menina, que não se sabe quem é, não se sabe por que entrou ali no filme. Mas o que essa menina tem para dar ao Marcelo Mastroianni é o seu sorriso. Ela o chama. Ela faz um gesto para chamá-lo. E ele não consegue ir. Ele se paralisa. Essa lembrança está muito viva na minha memória. Por isso há essas crianças tão comuns no que escrevo. (…) Uma criança, um adolescente, uma promessa de afeto, de libido — por que não? Esse sentimento de promessa que a juventude pode nos legar é muito poderoso. A juventude ou a criança. O sujeito adulto se renova com esses momentos. O que temos ali, em termos materiais, é um corpo, claro. Mas novo. Um corpo ainda virgem, de alguma forma. E isso é uma maravilha. Isso é uma maravilha. (lê mais um trecho de Lorde)

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