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Daniel Galera

A quarta edição do Paiol 2012 contou com a presença de Daniel Galera

No dia 3 de julho, o projeto Paiol Literário —promovido pelo Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor Daniel Galera. Nascido em 1979, em São Paulo, Galera passou grande parte da vida em Porto Alegre, onde reside atualmente. Estreou na literatura com o volume de contos Dentes guardados, pelo selo editorial independente Livros do Mal, do qual foi um dos fundadores. Escreveu também os romances Mãos de cavalo (2006), Até o dia em que o cão morreu (2007) e Cordilheira (2008), pelo qual venceu o Prêmio Machado de Assis. Galera é ainda co-autor da graphic novel Cachalote (2010) e tradutor de diversos autores de língua inglesa. Seu novo romance, Barba ensopada de sangue, está previsto para o início de 2013. Nesta conversa com o jornalista e escritor Luís Henrique Pellanda, Galera fala, entre outros temas, sobre sua trajetória como leitor, as experimentações literárias numa internet ainda incipiente e os desafios da escrita de Cordilheira, romance narrado por uma personagem feminina.

• Exercício estranho
Fui avisado de que teria que responder a isso [uma pergunta sobre a importância da literatura], e fiquei pensando numa resposta. Mas não cheguei a nada muito definitivo. Alguns autores de que gosto disseram algumas coisas a respeito do que seria a importância da literatura — que, em primeiro lugar, me parece uma coisa tão curiosa de defender, porque obviamente não precisa ser defendida. A gente sente tão imediatamente que a literatura é uma coisa importante, que ficar forçando nisso foi um exercício bem estranho para mim. Mas um cara que falou algo sobre isso — e que inclusive a gente [Galera, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla] usou como uma espécie de justificativa por trás da linha editorial da [editora] Livros do Mal — foi o Georges Bataille, que tem aquele livro, A literatura e o mal.

• Componente perturbador
Bataille ligava a função principal da literatura a um componente um pouco perturbador, e por isso usava a palavra “mal”: assuntos que são perturbadores — por serem inatingíveis ou “sagrados”, de certa forma, ou por serem perturbadores por sua natureza mesmo —, coisas que nos incomodam. Na época gostei muito de ler isso, porque correspondia um pouco ao tipo de recompensa que eu tirava da literatura desde que comecei a ler com mais força e a pensar sobre o que eu lia, na adolescência: acessar coisas às quais eu não tinha acesso de outra maneira a não ser lendo romances, contos e poesias que outras pessoas, enfim, tinham escrito de uma forma esteticamente envolvente, prazerosa. E isso me pareceu fazer sentido.

• A verdadeira loucura
Mas eu também não iria tão longe quanto o Bataille, a ponto de dizer que a importância da literatura está necessariamente ligada a isso que é perturbador, inacessível. Uma coisa que a Zadie Smith e o [Jonathan]Franzen, principalmente, falavam: a literatura no sentido de conectar pessoas, de ser uma forma de reduzir um pouco certa solidão essencial (ou algo assim), inerente a estar no mundo. Isso não é da literatura, seria da arte como um todo, mas a literatura faz isso com características específicas. Às vezes, eu tinha essa sensação de estar menos sozinho ao ler certos autores. No sentido de que parecia que eu conhecia o autor — por exemplo, uma identificação de idéias, um agradecimento ao autor, por estar me proporcionando aquela experiência — ou uma sensação mais difusa, de estar menos desconectado das pessoas e do mundo em geral. Uma coisa difícil de definir, de tratar, mas que a literatura talvez justamente preencha. Então, acho que é um pouco por aí. O Camus, e os existencialistas, falavam que a vida é absurda porque a gente morre. E, para mim, a morte, na verdade, talvez seja a coisa mais factual, objetiva e lógica a respeito da vida — o que é realmente absurdo é a consciência. O fato de que, ao contrário de todas as outras coisas que estão aí no mundo, a gente tem isso de sair de si mesmo: “Opa, o que está acontecendo aqui?”. É tão elementar que a gente não pensa sobre, mas é a verdadeira loucura da vida. E acho que a literatura acaba servindo para a gente conseguir mitigar isso um pouco, ou talvez explorar mais a fundo a angústia de ter que ficar pensando, enfim, no que existe e no que não existe.

• Guri de apartamento
Meus pais sempre leram bastante. Tinham muitos livros em casa. E eu fui — até hoje sou — um pouco introspectivo. Mas era muito mais quando criança, adolescente. Então, quando morava em Porto Alegre, eu era um guri mais da rua, saía para andar de bicicleta e tal. Mas morei uma parte da infância em São Paulo, quando tinha entre 5 e 11 anos, mais ou menos, e nessa época eu era o que se chama de “guri de apartamento”. Eu ficava em casa ouvindo os discos do meu pai, lendo os livros que ele tinha em casa. Então comecei a ler muito cedo, e tinha um interesse acho que já natural. Não me lembro de meus pais chegarem: “Guri, tu tem que ler, é importante, veja bem”. Os livros estavam ali, eu os via lendo. Presumia que o que meus pais faziam era uma coisa interessante, boa, e fui atrás. Ver aquilo, acho, tem um pouco a ver. E tinha um hábito de buscar ler coisas que não eram para a minha idade, então eu pegava os romances do meu pai.

Os mil livros do pai
Eu lia Chiclete com Bananae pegava o Ulisses, não conseguia entender nada, mas era atraído. Fui leitor desde muito cedo. Não tive que ser forçado a isso, para mim veio naturalmente. Um [livro]que lembro que me marcou — não foi o primeiro, mas marcou — foi o Pé de pilão, livro infantil do Mario Quintana. E me lembro de começar a aprender a ler com a revistinha da Mônica.E depois, enfim, a Coleção Vagalumenada muito diferente do que todas as crianças e adolescentes da minha época liam. Mas fui buscar romances. Na minha pré-adolescência já estava tentando ler, enfim, livros mais adultos — voltando para aquela coisa de que, para mim, os livros pareciam conter sabedorias que eu, naquela idade, naquele momento da minha vida, não poderia descobrir por minha própria experiência. Então, os livros me fascinavam muito por isso, aquela estante de, sei lá, mil livros do meu pai, eu com a noção de que cada um daqueles tinha uma coisa fantástica, desconhecida, que eu ia ter que viver mais 20 anos para saber — ou que podia pegar num livro. Eu me lembro desse sentimento. Então eu ficava mexendo naquela estante dia e noite.

• Escritor latente
Apesar de ler bastante, desde muito cedo, nem me passava pela cabeça ser escritor, até muito depois — até os 16, 17 anos, quando comecei a pensar em talvez, quem sabe, escrever. Fiquei muitos anos lendo sem que a idéia de escrever me ocorresse. E é curioso porque eu estava desde o início da adolescência procurando alguma forma de me expressar. Como era um cara meio introspectivo, sentia esse déficit de comunicação: eu tinha coisas para dizer que não tinha traquejo ou intimidade para conversar com as pessoas, então aquilo estava sempre meio represado. Eu ficava imaginando histórias sem parar, em qualquer momento. E algumas ficavam às vezes anos na minha cabeça, evoluindo como se fossem um filme sendo montado, e incrivelmente não me ocorria que eu podia pegá-las e tentar me expressar através de, sei lá, um conto ou algo assim. Mas tentei pintar, fazer quadrinhos, tive vários fanzines. Depois, achei que era música, aí estudei violão, comecei a tentar compor — até conseguia fazer uma melodia, mas não conseguia fazer a letra. Tentei escrever poesia, como todo mundo tenta fazer em algum momento — saíram atrocidades. Uma coisa atrás da outra, eu fui vendo: não é isso, não é isso, não é isso. E parece que, meio por eliminação, me ocorreu escrever, junto com professores do colégio que elogiavam minhas redações. E foi um caso bem estranho de não me ligar de uma coisa que estava latente há muito tempo. Quando comecei a escrever, imediatamente me senti à vontade para usar a linguagem escrita daquela forma, comecei a mostrar para um amigo, para outro. Acho que meus primeiros contos eram vagamente inspirados nos contos policiais do [Edgar Allan] Poe. Ao mesmo tempo, eu tinha lido umas coisas do Tchekhov e, sem entender muito bem o porquê, tinha achado incrível. Eu estava lendo os livros do Philip Roth na época que comecei a escrever também. E era uma mistura de todas essas coisas, era meio Frankenstein, primeiros exercícios mesmo. Enfim: o professor elogiou, dei para um amigo, para outro, e a coisa começou a fazer sentido.

Às vezes, eu tinha essa sensação de estar menos sozinho ao ler certos autores. No sentido de que parecia que eu conhecia o autor ou uma sensação mais difusa, de estar menos desconectado das pessoas e do mundo em geral.

• Catálise
A coisa só bateu mesmo quando entrei para a faculdade. Tanto que, quando me formei no colégio, nem me ocorreu fazer Letras. Achei que ia ser designer, trabalhar com imagem. Então fui fazer uma faculdade de Desenho Industrial, que era a faculdade de Design que tinha em Porto Alegre, na época. E meu pai falou: “Tenta passar na Federal também, faz alguma coisa, aproveita que você está com o ensino médio na cabeça, porque talvez tu não goste da outra faculdade e aí tu já passou na Federal”. E foi o melhor conselho que ele podia dar, porque fui olhar os cursos e nada me interessava. Mas olhei o currículo de Publicidade e tinha escrita criativa, fotografia, cinema. Falei: “Cara, alguma coisa de bom você tira. Pô, isso aqui é legal”. Então, saí do curso de Design em dois meses e fui fazer Publicidade na UFRGS. Não gostava de publicidade, comecei a gostar ainda menos quando comecei a estudar, mas ao mesmo tempo tinha fotografia, cinema, disciplinas de roteiro, um monte de coisas que faziam sentido para mim porque trabalhavam com texto. […] Então foi ali que peguei aqueles primeiros exercícios dos últimos anos de colégio e comecei a levar a sério. Falei: “Cara, não vou ser publicitário. Estou gostando de escrever”. Aí entra a coisa da internet, que é todo um capítulo à parte, mas a reação de catálise, de perceber o que eu queria fazer da vida, ocorreu no primeiro ano de faculdade. Nisso eu já tinha 17, 18 anos.

• Tirar uma renda
O que aconteceu foi que comecei a publicar na internet. Publiquei meu primeiro livro, uma edição independente, e a coisa da literatura começou a crescer. Então, aquele melhor dos mundos [que seria viver de literatura]foi se tornando realidade. E, ao mesmo tempo, comecei a traduzir. Fiz minha primeira tradução depois que publiquei o [romance] Até o dia em que o cão morreu. Porque eu via a tradução como um trabalho que as pessoas começavam a fazer com 40, 50 anos, depois de muita experiência, muito estudo. Mas começaram a me oferecer traduções e eu: “Tá, vou fazer”. Porque pagava. No fim, percebi que conseguia, tinha munição para fazer aquilo, entregava, os editores gostavam, começou a dar certo. E era um trabalho realmente muito próximo da criação literária. Era a coisa mais próxima possível. Não era escrever as minhas próprias coisas, mas com aquilo eu podia trabalhar, tirar uma renda. E a partir desse momento, em 2003, 2004, comecei a fazer essa coisa de alternar ser tradutor e escritor. Isso foi o que me sustentou por muitos anos — e é o que me sustenta até hoje.

• Espaço barato
A internet se popularizou no Brasil em 1996, coisa assim. Antes disso, só a usava quem usava BBS. Eu não era tão micreiro, mas quando apareceu a web, me apaixonei e rapidamente percebi: “Cara, dá para publicar pela internet”. Não fui pioneiro nem nada, mas fui parte de uma geração de pessoas que começaram a se dar conta de que, de repente, tinha esse espaço barato, fácil de usar, que qualquer um podia acessar de qualquer lugar do mundo. E a gente está falando de antes dos blogs, antes de tudo. Naquela época, eu tinha que fazer sites programando. Lembro que fiquei um feriadão em casa: baixei tutoriais de html e fiquei três dias criando sites rudimentares. Aprendi a fazer o troço. Então eu criava os meus próprios sites — a princípio, sites pessoais; depois, sites de literatura. E aí descobri outras pessoas que faziam a mesma coisa, e fui começando a descobrir as primeiras pequenas redes de escritores e leitores na internet. Isso antes do blog. O blog apareceu em 2000, algo assim, e facilitou para todo mundo. Mas antes disso tinha que ter certo investimento. Eu fiz várias experiências: uma delas, talvez a mais ambiciosa, foi o Proa da Palavra, que era um site literário nos moldes de outros que eu via, principalmente nos Estados Unidos.

• 5 mil leitores
Entrei na faculdade em 1997 e conheci os amigos que participaram do Cardoso Online (COL). Foi a coisa mais forte, para mim, como autor, porque foi um pequeno fenômeno. A gente criou esse fanzine por e-mail [durante]uma greve de faculdade: não tinha nada para fazer, e um amigo nosso, o Cardoso, começou a mandar e-mails com “Vi esse filme”, e uns poeminhas, para uma lista de, sei lá, 50 amigos. Na época, eu lia outros sites, como o Pitchfork, que hoje é a bíblia da música independente. Ele existia já em 1997, 1998, só que era um site bem pequenininho. […]E foi isso: a gente começou a escrever textos sobre música, as chamadas egotrips— pós-adolescentes falando da vida pessoal —, textos ainda rudimentares, mas apaixonados, com muita vontade de se expor e dar a cara a bater. Aquele troço começou com 50 pessoas recebendo e, em questão de um ano, tinha 2 mil, chegou a ter 5,5 mil assinantes. Durou três anos. […] Para mim, a importância do COL foi que, de uma hora para outra, eu tinha um público de cinco mil pessoas. Então comecei a fazer contos que eu passava dias revisando. E comecei a ter o retorno dos leitores pela internet. Na época, publicar um conto e receber 15 e-mails era um negócio totalmente desnorteador. Era o pessoal mais novo, que começou a usar o computador mais cedo. Hoje todo mundo usa. Isso foi depois de 2001. O blog foi importante porque eliminou a necessidade de tu saber programar: tu entrava, preenchia uns negócios e tinha um canal de publicação. Mas, antes disso, não era tão fácil. O Dentes guardados, meu primeiro livro, é uma seleção de contos que publiquei na internet. São 14 contos; 13 publicados no COL. Então, quando meu livro apareceu, eu tinha cinco mil leitores do COL que — “Pô, o cara do Cardoso Online publicou um livrinho”. Já tinha um pequeno público e, quando o livro chegou, ele não caiu de paraquedas. Criei um público leitor inicial — pequeno, mas interessado — na internet.

O Camus e os existencialistas falavam que a vida é absurda porque a gente morre. E, para mim, a morte, na verdade, talvez seja a coisa mais factual, objetiva e lógica a respeito da vida — o que é realmente absurdo é a consciência.

• Toscamente
A Livros do Mal nasceu no espírito do próprio Cardoso Online. Ela foi feita por três colunistas do COL: eu, o Guilherme Pilla e o Daniel Pellizzari. O Pellizzari é escritor. O Pilla também escrevia — muito bem, por sinal; acho que agora parou, mas é um artista plástico brilhante. Não era um plano, não tinha uma justificativa intelectual, não tinha ambições comerciais, era simplesmente: escrevemos, queremos fazer livros e, aparentemente, temos os meios para fazê-los. Por que não fazer desse jeito? Era uma tentação muito grande. O Pellizzari tinha um conjunto de contos que achava que podia virar um livro. Eu achava que tinha também. Então a gente bolou um plano assim: vamos editar nossos próprios livros, os dois primeiros, criar um selo editorial independente. A gente se inspirou muito — isso é importante dizer — na Ciência do Acidente, do Joca Terron, que nos antecedeu em um ou dois anos, e foi para mim a editora independente mais importante da época, não só pelo que ele publicou, mas por sua influência. Era o Pellizzari quem conhecia a Ciência do Acidente. Ele me mostrou e disse: “Vamos fazer uma coisa parecida com isso, mas do nosso jeito”. Aí nasceu o projeto da Livros do Mal. O COLestava terminando nessa época. A gente inscreveu um projeto numa linha de financiamento que tem na prefeitura de Porto Alegre, chamada Fumproarte. Pedimos dinheiro para a impressão dos dois livrinhos. Ganhamos. E aí foi isso: eu editei os livros no Pagemaker, em casa, toscamente, ligando para amigos meus que trabalhavam em agência de publicidade: “Como é que eu faço para puxar uma régua?”. Era um negócio meio que de guerrilha total. O Pilla fez as capas, eu tive que aprender a escanear na resolução certa. Tinha tempo para isso.

• Mãos de cavalo
Eu não tinha a ambição manifesta de escrever um livro de geração como acho que é, por exemplo, O encontro marcado, um livro que para mim foi importante, inclusive. Jamais teria a ousadia de achar que um livro meu fosse ser considerado isso. E eu não ouvi [chamar Mãos de cavalode romance de geração]muitas vezes, pessoalmente — ou talvez eu bloqueie caso ouça —, mas acho que, conforme o tempo passa, começo a entender melhor a dimensão que o livro talvez tenha. Porque, na época, eu estava tão envolvido com escrevê-lo, querendo dar o melhor de mim e assustado com o resultado que isso poderia ter, que talvez eu tenha ficado um pouco amortecido com o que foi essa recepção. Ao longo do tempo, comecei a ter sinais disso. Por exemplo, o Antônio Xerxenesky, amigo meu, um escritor de que gosto muito. Eu o conheci anos depois de publicar Mãos de cavalo, e ele me falou: “Um dos livros que me influenciou foi Mãos de cavalo”. E eu olhava para o cara: para mim, ele era um colega, quer dizer, alguma coisa parecia não fechar — mas foi o que ele disse. E fui entendendo que, de fato, para algumas pessoas, o livro tinha um pouco esse aspecto. Não acho que seja tão forte quanto O encontro marcado — ou talvez isso aconteça com o tempo. Não gosto muito de especular sobre isso. O que quero dizer é que, do meu ponto de vista, é um pouco difícil enxergar a real dimensão do quanto o livro é apreciado ou não.

• Fugir do conforto
Depois de Mãos de cavalo, tinha a questão do amadurecimento. “Livro maduro” e tal. Eu não gostava da palavra. Parecia que eu tinha chegado a um “estado ideal” da literatura. Eu via o Mãos de cavalo como um elo ainda inicial de uma coisa que podia melhorar muito, ganhar outros caminhos. A coisa da maturidade batia estranho para o meu ouvido. Então, havia a idéia de fazer um livro que tratasse, na própria trama, e explicitamente, da questão do limite entre real e ficção, entre vida pessoal e literatura, ao mesmo tempo confrontando um pouco essa impressão de maturidade. Pensei: “Vou fazer um livro que saia um pouquinho do que costumo fazer, talvez um pouquinho experimental, e que trate dessa coisa metaliterária de forma mais explícita”. Aí começou a surgir o personagem da Anita [de Cordilheira]. E aí entra outra coisa que influenciou: a vontade de escrever um livro inteiro do ponto de vista de uma mulher, não necessariamente em primeira pessoa. Também para fugir de uma zona de conforto, e por eu achar que as mulheres, pelo menos as da minha geração, que estavam à minha volta, eram um assunto mais interessante naquele momento do que os homens, que estavam mais ou menos na mesma. Eu via as mulheres com conflitos novos, tormentos novos, sonhos novos: “Pô, isso é matéria mais interessante para escrever do que o mesmo cara que vai ao bar, bebe e não está nem aí”. Então comecei a focar na idéia de uma personagem feminina, e acabei indo para o tópico mais específico, dentro da temática feminina, da gravidez, da mulher moderna. Porque a Anita é uma anti-heroína, uma guria que, contra as expectativas da geração dela, das amigas dela, resolve que quer ter um filho e pronto. É uma coisa até forçada, mas ela tem esse aspecto de anti-heroína um pouco simbólico, então pesei a mão mesmo.

Os livros me fascinavam muito por isso, aquela estante de, sei lá, mil livros do meu pai, eu com a noção de que cada um daqueles tinha uma coisa fantástica, desconhecida, que eu ia ter que viver mais 20 anos para saber — ou que podia pegar num livro.

• Voz feminina
É verdade, eu escrevi isso aí [“Quis, inclusive, fazer frente a uma certa voz feminina homogênea e enfadonha que assombra muitos romances narrados por mulheres, não importa o gênero do autor, trecho de texto de Daniel Galera sobre a escrita de Cordilheira,publicado no Suplemento Pernambuco]. Eu não sei se consigo definir [o que é a voz “enfadonha”]. Eu talvez possa, no máximo, torcer para que as pessoas entendam do que estou falando. Talvez eu não saiba dizer isso em termos de “vamos destrinchar o estilo”. Não tenho capacidade intelectual, talvez, para fazer isso. Mas quando comecei a pesquisar para escrever o Cordilheira, falei: “Caralho, vou ter que escrever em primeira pessoa um livro narrado por uma mulher. Não vai ter jeito”. Então, acabei decidindo que isso ia ser necessário, e fiquei “cheio de dedos”, como se diz. E li alguns livros, reli ou lembrei de outros que já tinha lido, de autoras femininas e personagens femininas. E comecei a ouvir mulheres falando, porque a personagem era jovem. Então eu ia à Mercearia, lá em São Paulo, sentava numa mesa cheia de mulheres e ficava ouvindo. Essa é a pesquisa possível. Tentando transformar isso em texto, comecei a perceber que na verdade não havia motivo para ter nenhuma diferença substancial no discurso interno de um personagem masculino e feminino. Tu tem que saber como esse personagem se comporta, tu tem que saber aspectos da vida dele que são condicionados pelo gênero — existem alguns —, mas, para além disso, não existe uma sensibilidade específica de ver o mundo que vá se refletir de forma consistente no estilo de uma mulher narrar uma história. E quando me dei conta disso, falei: “Vou escrever como eu acho que a Anita escreve — eu estou enxergando ela na minha frente”. E as mulheres que conheço não estão vendo as coisas sempre de maneira sutil, poética — muitas vezes, a narrativa muito metafórica que se atribui a personagens femininos acaba criando esse estilo homogêneo. Eu pensava que isso, na realidade, não é tão assim. Tive a impressão de que havia certo estilo literário feminino que era um pouco uma ilusão coletiva. Enfim, tem muitos bons livros e bons autores que iriam se encaixar nisso, mas esse discurso homogêneo como uma coisa que precisa ser respeitada na hora em que um homem vai escrever do ponto de vista de uma mulher, não. Isso eu aboli. Por isso a Anita saiu com essa voz um pouco diferente. Alguns leitores se incomodam, dizem: “Pô, mas uma mulher não diria isso, às vezes ela parece um pouco masculina”. Eu a acho perfeitamente verossímil, porque tem mulheres que pensariam isso. Aí também tem depoimentos de leitoras que dizem: “Cara, eu penso assim”, ou: “É igual a uma amiga minha”. Não foi um tiro na água total. O livro divide as pessoas nesse sentido do discurso da personagem. Não foi uma coisa absurda o que pensei em fazer. Disso tenho certeza. E é isso, ela fala os palavrões dela. Agora, o que exatamente forma esse discurso, eu não tenho capacidade de destrinchar aqui para vocês. Com alguma sorte, alguns vão visualizar isso que estou tentando transmitir. Para mim, fez sentido na época.

• Amor e ódio
Eu gosto muito de traduzir. […]Mas acho cansativo. E acho que acaba competindo com o trabalho de escrita da minha própria obra. Não tenho energia para traduzir várias horas por dia e depois jantar ou tomar um café e voltar para o computador. Eu não consigo. Considero sobre-humano, embora saiba que tem autores que fazem isso. Para mim, não rola. Então, se pego uma tradução que tem um prazo apertado, se estou trabalhando num conto ou num romance, esquece. No máximo, eu o abro de vez em quando, para ficar com ele rodando na cabeça o tempo inteiro — quando vou nadar, por exemplo. Mas não estou ali, trabalhando no texto. Não me sobra energia. A tradução exige bastante, é uma imersão também, comparável à da escrita criativa. Traduzir é como fazer uma leitura ultraprofunda e refinada da obra que se está traduzindo, e a gente aprende com isso. Tenho a sorte de conseguir traduzir, na maioria dos casos, autores de que gosto. Então isso acaba sendo um exercício prazeroso, e um aprendizado. Mas tem esse elemento que às vezes incomoda, a competição com a minha escrita. É uma relação de amor e ódio, de necessidade e de paixão ao mesmo tempo.

• Chutaram os baldes
Acho que não existe necessidade de “resgatar” nenhum gênero literário hoje em dia. Se existe uma característica na literatura contemporânea, é que tudo está aí. Tem gente fazendo de tudo. Inclusive realismo fantástico. Não consigo identificar o gênero que talvez seja o “mais relevante” ou que “incorpore as questões do nosso tempo”. O efeito do que se chama pós-modernidade na literatura foi meio que isso: chutaram todos os baldes, e todas as referências estão aí, tudo imediatamente acessível com uma pesquisa rápida. E aí, o que tu vai fazer? A grande questão da literatura contemporânea é: com tanta possibilidade, vou fazer o quê? A resposta está sempre numa investigação introspectiva. O escritor que tiver necessidade de incorporar elementos fantásticos na sua literatura vai fazer isso porque é a maneira com que ele vai conseguir dizer o que precisa dizer. Não é porque precisamos resgatar. A questão não é intelectual. Hoje, o que guia o estilo de um autor é a resposta a uma necessidade íntima de expressão. Como consigo processar o mundo em linguagem? Quer dizer, existe uma maneira. E estilos, gêneros e modos de escrita infinitos à disposição. Então, nenhum gênero está em risco — ou talvez todos estejam, ao mesmo tempo.

• Histórias longas
A gente precisa, na vida cotidiana, ter a capacidade de construir histórias compridas, complexas, em que as coisas estejam conectadas sutilmente e se alonguem. Porque nossa noção do que foi nosso passado, nossa noção de identidade, do que a gente quer para o futuro, são histórias construídas — e longas. Se a gente ficar operando só no sentido muito imediato, não funciona. E talvez a gente ainda se apegue às narrativas longas. As séries de televisão talvez se encaixem nisso também. Os episódios são curtos, mas as séries vão e vão, e as pessoas lembram lá do seu início. A cabeça da gente naturalmente busca a dispersão. A gente fica procurando interpretar tudo ao mesmo tempo, e a nossa capacidade de interpretar histórias longas, ou de construir histórias longas, é aprendida. Por isso temos que lê-las. A gente tem que ter essa capacidade. É uma coisa adquirida e exercitada. A gente não larga do romance grande, como leitor ou como escritor, eventualmente, porque instintivamente sabe que precisa ter essa capacidade. Então, as narrativas longas resistem em algumas formas — e o romance talvez seja a principal delas. E é a única coisa que, por um momento, achei que devesse ser protegida. Tipo: “Vamos escrever romances compridos, gurizada, porque isso aí não pode sumir”. Mas não, ele está muito bem. Está bem demais.

A tradução exige bastante, é uma imersão também, comparável à da escrita criativa. Traduzir é como fazer uma leitura ultraprofunda e refinada da obra que se está traduzindo, e a gente aprende com isso.

• Infinito
Acabei de terminar um romance [Barba ensopada de sangue]. Fiquei um mês e meio revisando o troço, totalmente estricnado. Aí, quando terminei, eu estava assim: “Puta, ficou massa”. Nos outros dias, antes de mandar aos editores, falei: “Vou deixar descansar um pouco”. Imprimi em papel, para reler trechos, e aí começaram a aparecer coisas que – “não, não está pronto”. Mas, ao mesmo tempo, não posso ficar trabalhando nisso para sempre. Então, mandei para o editor. E enquanto ele estava lendo, comecei a mudar coisas. Quer dizer, eu estava satisfeito com o livro esse tempo todo, mas tu começa a desconfiar, sabe? É aquela desconfiança saudável, que é bom sempre ter e que no processo de edição vai te possibilitando melhorá-lo ainda mais. Mas é confuso. Envolve muita coisa. Fiquei quatro anos escrevendo esse último livro. E, de repente, a coisa está pronta. Teve um dia de vazio bem forte. No dia em que mandei o livro para o editor, fiquei duas horas em casa, sentado, sem vontade de fazer nada. Mas a boa notícia é que ainda tenho que pensar um pouco no livro por mais uns meses, pois ainda vou ter que mexer nele um pouquinho. Então nunca acaba. E depois tu vai publicar e vai, talvez, reler e vai achar que podia ter escrito diferente. E ao mesmo tempo vai ficar orgulhoso de si mesmo. Acho que nunca termina.

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