Paula Fábrio Foto: Julia Mataruna
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Paula Fábrio

A romancista Paula Fábrio foi a primeira convidada da 12ª edição do Paiol Literário — projeto coordenado pelo editor Rogério Pereira e realizado pelo Rascunho desde 2006. O patrocínio desta edição é da Redecard, empresa do grupo Itaú Unibanco, por meio da Lei Rouanet, e os encontros são online, com transmissão pelo YouTube.

Fábrio nasceu em São Paulo (SP), em 1970. Trabalhou com publicidade durante 15 anos, até abrir uma livraria na metade dos anos 2000. Antes de completar 40 anos, decidiu se dedicar de forma exclusiva à literatura. Seu primeiro romance, Desnorteio (2012), venceu o prêmio São Paulo de Literatura. O livro dá o pontapé inicial a uma literatura que radiografa a sociedade brasileira através do microcosmo familiar. Durante o bate-papo, ela também falou sobre o pano de fundo político que envolve suas narrativas.

O original de Casa de família (2024, Companhia das Letras), seu mais recente livro, recebeu o Prêmio Carolina Maria de Jesus. Ela é autora também de Um dia toparei comigo (2015), No corredor dos cobogós (2020) e Estudo sobre o fim: bangue-bangue à paulista (2022).

• Por que ler ficção?
Acredito que em primeiro lugar é por causa do desenvolvimento do pensamento crítico. A leitura de ficção possibilita isso pra gente. Por meio de várias coisas: conhecimento histórico, deleite estético, etc. A leitura e a escrita são faces da mesma moeda, as duas estão no tempo da alteridade para mim — de você aprender com outro, viver experiências que não somente as suas, conhecer vidas diferentes da sua, espaços, locais e tempos diferentes também. É um grande prazer estético. Além de tudo, tem a ver com parar o tempo e unificar o espaço. A mesma coisa que o romancista faz, o leitor do romance também faz, de ficção de modo geral, ele para o tempo e vai. Ele para tudo que está fazendo e entra naquele momento único do texto e do espaço. Isso é um grande prazer.

“Ele [o leitor] para tudo que está fazendo e entra naquele momento único do texto e do espaço. Isso é um grande prazer.”

• Diálogo com o leitor
A boa ficção traz mais perguntas do que respostas. Ela põe o leitor para filosofar junto. É uma grande conversa. Você está contando uma história, mas, muitas vezes, comentando, colocando pensamentos, dúvidas, perguntas do próprio autor. E essas perguntas geram outras perguntas no leitor. Tudo isso é muito importante. E vai desenvolvendo o pensamento crítico da pessoa. É um momento, na verdade, de solitude, na minha opinião. Nunca de solidão, mas de solitude, em que você deseja estar sozinho com aquele texto.

• Aproximação com a literatura
A minha casa não era uma casa de leitores. Na minha família não havia leitores. Mas lembro que tinha alguns livros escolares do meu irmão mais velho. Eu cobiçava ler aqueles livros, que ficavam espalhados na mesa, na escrivaninha de estudo dele. Ficava olhando as capas, olhava as letras e tinha vontade de saber ler e imaginar o que estava ali dentro daqueles livros. Então esse foi o meu primeiro contato com os livros, eu diria, ainda sem saber ler.

• Vaga-lume
Depois disso, uma madrinha me deu alguns livros infantis. Eu li, curti, mas passou. Mas o grande impacto mesmo começou de duas formas: uma com a Coleção Vaga-lume, quando li Maria José Dupré, Ruth Rocha, foram os primeiros livros que eu li.

• Agatha Christie
O outro momento foi um clique, uma chavinha que mudou. Estava passeando por uma banca de jornal sozinha, eu devia uns 11 anos. E vi uma promoção de uma coleção de banca, cujo primeiro livro era da Agatha Christie, O assassinato de Roger Ackroyd. Eu tinha algum dinheiro no bolso porque fui lá para comprar um álbum de figurinhas. Vi que o dinheiro dava e comprei o livro. Era um livro grosso, grande para quem tem 11 anos. Aí cheguei em casa, levei uma bronca dos meus pais: “Ah, você gastou dinheiro com isso? Por que não comprou uma coisa mais para a sua idade? Duvido que você vai ler esse livro”, coisas assim.

• Desafio
Então, comecei a ler, era ainda papel jornal, e me esforcei bastante. Primeiro porque já foi lançado um desafio pelos meus pais, de que eu não gostaria, que não conseguiria ler. E, realmente, era um livro acima das minhas possibilidades, mas me esforcei e acabei curtindo. Naquele momento, quando terminei o romance, com todas as reviravoltas e meu espanto sobre quem era o assassino, falei pra mim mesmo: “Eu quero ser escritora, é isso que eu quero fazer da minha vida”.

• Leitores
Acho que a semente de leitor nasce dentro das pessoas, em algumas germinas, porque é regada, mas em grande parte não se desenvolve. Não adianta, você pode fazer de tudo para a pessoa gostar da leitura e ela pode não gostar, assim como fazer academia, por exemplo, por mais que faça bem ao corpo.

• Gerações
Contando que a gente está falando só dessas pessoas que têm a semente dentro delas e que vão se desenvolver leitoras, eu acho que um grande entrave é a educação. Por exemplo, uma família como a minha, que não era rica, não era uma família de leitores, etc. Minha mãe, meu pai, eles eram alfabetizados, mas os pais deles possivelmente não, eu não tenho essa informação. A leitura começa a partir da geração deles, dos meus pais — que nem começou efetivamente. Então, é uma coisa mais recente no Brasil, de quando as pessoas começaram a ter acesso ao estudo. A educação é a primeira coisa, é ter esse letramento. Hoje temos um número maior na população de pessoas letradas.

• Cultura do livro
A cultura do livro acontece pouco no nosso país. Parece que os países latino-americanos, nossos vizinhos, embora sejam mais pobres economicamente do que o Brasil, têm uma cultura do livro maior do que a nossa. Então esse negócio de tomar emprestado o livro, de comprar e ler é algo que está na cultura deles e não está muito na nossa.

• Nobel
Para você fazer um autor que seja um prêmio Nobel, tem que haver uma política de investimento. Porque a partir do momento que você tem um autor nacional premiado, isso levanta e impulsa a carreira de outros escritores, além de instigar a população a ler. Isso aconteceu em Portugal, com Saramago, e poderia acontecer no Brasil.

• Pessimista, mas nem tanto
A princípio, sou uma pessoa mais pessimista e realista, então não acredito muito que essa situação possa melhorar. Embora — agora é o lado otimista falando, em cima de dados — o número de feiras e festivais cresceu bastante. Até a tiragem cresceu e hoje os livros já saem com pouco mais do que 3 mil exemplares. No início da década de 2000, quando eu tinha uma livraria, os livros da Lygia Fagundes Telles, grande nome da literatura, estavam saindo com tiragem de 3 mil exemplares. E hoje há edições maiores de muitos autores brasileiros, de gente muito menos conhecida do que a Lygia. Há um aumento da quantidade de vendas que eu acho que também não corresponde à qualidade. Então fica com uma tendência, de o mercado brasileiro, a meu ver, se assemelhar um pouco ao norte-americano, guardadas as proporções dos números de vendas, mas onde se lê bastante, mas se lê com pouca qualidade.

• Jovens
Conversando com alguns autores, como a Aline Bei, que tem leitores bem jovens, eles comentam que o crescimento nessa faixa, o crescimento de leitura, está bastante significativo e parece consistente. E me parece que sim, mesmo, levando em conta o aumento das bienais, da quantidade de gente que circula nesses eventos, dos livros comprados. O surgimento dos clubes de leitura, algo que não existia antes. Hoje vejo colegas, amigos meus, que não são da área literária, que não liam nem um livro por ano e agora estão lendo quatro, cinco livros por ano. Então realmente isso cresceu.

• Questões políticas
Mas acho que, por questões políticas do que vem ocorrendo não só no Brasil, como no mundo, com o crescimento de políticas não progressistas, o incentivo às artes, à cultura, tende a diminuir. Então, acho que esses gastos públicos podem receber cortes e, num horizonte de 10, 20 anos, a gente brecar esse crescimento, ou acabar incentivando outros tipos de obras, livros com viés evangélico, por exemplo. Talvez sejam livros que pensem menos no conhecimento histórico e no desenvolvimento do pensamento crítico.

• Público
Em relação ao público, é um pouco triste o que acontece em muitos locais. Porque se vê um esforço muito grande para levar a plateia, para que o evento tenha público. Muitas vezes você vai a uma cidade pequena, e a aula vai acontecer no festival literário. As crianças ou adolescentes são obrigados a ir para o evento e responder à chamada. Então, nem sempre as pessoas estão lá espontaneamente. Não é o caso da Flip, não é o caso de vários festivais grandes, mas festivais em cidades menores isso acontece. É ruim, mas também tem um lado bom, porque as crianças estão sendo incentivadas de alguma forma a irem até esses eventos e conhecer, ter contato com autores, com livros, enfim.

Paula Fábrio Foto: Julia Mataruna

“Acho que hoje o computador, o celular e as redes sociais nem são grandes obstáculos para a leitura do livro, porque acho que quem não gosta de ler e não quer ler, não liga de todo jeito.”

• Projeto de leitura
Eu fazia um projeto muito interessante na Prefeitura de São Paulo. O Sesc comprava livros para alunos de escolas públicas e os alunos liam e discutiam comigo as obras. A gente fazia debate, oficina de escrita. As crianças escolhiam as atividades que queriam fazer. Podiam escolher fazer capoeira, por exemplo, ou estar na sala de leitura. Então era uma turma muito bacana, de umas 20 crianças, muito interessadas. Foi uma experiência maravilhosa.

• Distrações
Acho que hoje o computador, o celular e as redes sociais nem são grandes obstáculos para a leitura do livro, porque acho que quem não gosta de ler e não quer ler, não liga de todo jeito. Antes o futebol era o grande inimigo, outra hora era a televisão. Sempre houve muita distração. Acho que é mais uma desculpa, até porque o livro pode estar dentro do celular. Muitos alunos já me mostraram livros que estavam lendo no celular. Então, não acho que seja a principal distração para um adolescente ou uma criança. Já para os adultos, sim. Conheço leitores que falam assim: “Poxa, perdi muito tempo de leitura porque fiquei vendo videozinho curto na internet, no YouTube, no Instagram”.

• Quero ser escritora
Quando eu tinha 11 anos, comecei a perceber que havia autores da Coleção Vaga-lume que eram vivos, que estavam ali. “Poxa, então tem alguém que tem essa profissão”, pensei. E que eu, na minha ilusão, de 11 anos, achava que essas pessoas sobreviviam da literatura. Alguns, sim. Depois, aos 15 anos, tive contato pela primeira vez, pessoalmente, com Marcos Rey. E ele era um cara que escrevia livros infantojuvenis e adultos também. Mas ele sobrevivia porque a venda, até então, de livros infantojuvenis, era capaz de gerar uma renda razoável para um autor se manter, principalmente um autor bem-sucedido como ele.

• Publicidade
Quando eu já estava com 16, 17 anos, e havia aquela cobrança para decidir a profissão, entendi que ser escritor não é bem assim: vou fazer uma faculdade, vou me tornar escritora, arrumar um emprego de escritora e me sustentar. Enfim, como já disse, eu não era de uma família rica, então precisava trabalhar e ganhar dinheiro. Fiz faculdade de propaganda e arranjei emprego nessa área, porque, enfim, o que eu sabia fazer mesmo era escrever. Escrever razoavelmente bem, e não outras coisas. Então fui trabalhar como redatora em agência. Trabalhei uns 15 anos nessa área, mas eu gostava muito de livro e acabei abrindo uma livraria.

• Na gaveta
Fui escrevendo várias coisas para mim mesmo, durante esses anos, dos 11 até os 40 anos, e nunca publiquei nada. Considerava tudo bastante ruim o que eu escrevia. Aí eu abri a livraria, foi muito bacana. Fiz contato com muita gente, escritores, principalmente, e tive uma boa visão do mercado editorial no Brasil. Isso foi de 2005 a 2009. Nesse meio tempo, eu tinha compreendido, desde a época do vestibular, que teria que fazer uma poupança, guardar dinheiro para poder me dedicar à literatura, porque aí eu já não queria mais ser a Agatha Christie, queria escrever romances com mais de drama, pois já tinha outros autores no horizonte.

• Largando a publicidade
Antes do Desnorteio, não tinha escrito nenhum romance. Eu tinha escrito vários contos, mas não ficaram bons. Não fiz nenhum plano mirabolante, apenas fui juntando dinheiro e nesse período aconteceu, sei lá, a conjunção dos astros. A livraria não deu certo. Nisso eu arrumei um emprego numa biblioteca aqui em São Paulo. Trabalhei lá um ano. Mas eu não curti muito, era um emprego público, enfim, não tinha a ver comigo, com a minha personalidade. E aí pensei que precisaria voltar para a propaganda. Mas havia tido uma precarização dos salários e do trabalho nas agências. Quando fui voltar, já estava mais velha. E no mundo da propaganda, 40 anos é demais. Os salários estavam muito mais baixos, estavam me propondo um terço do que eu ganhava antes. Aí eu não quis.

• Primeiro romance
Então, aos 39 anos de idade eu fecho a livraria, tenho uma casa própria, algum dinheiro guardado e falo, agora eu posso sentar e escrever um livro.

• Desnorteio
Como tinha dinheiro guardado, poderia escrever algo. Aí percebi que, sendo uma história de família, que estava dentro de mim desde que nasci, vi que era um romance, não um livro de contos. Porque tudo que eu produzia de contos, não gostava. Então escrevi Desnorteio.

• Prêmio SP
Em 2008, eu tinha sido jurada do Prêmio São Paulo como livreira, antes de fechar a livraria. E sabia que tinha uma categoria para estreante. Como eu não tinha nenhum sobrenome importante, ninguém na família que seja jornalista cultural, nem professor de literatura, ninguém no meio editorial, achava que o único meio de começar e ter uma chance nesse mercado era participando do Prêmio São Paulo. Então publiquei pensando no Prêmio São Paulo efetivamente. E deu certo.

• Estreia tardia
Do primeiro dia de vida até os 40 anos, acumulei conhecimento, histórias e memórias, lembranças de coisas que vi, seja na minha casa, no vizinho ou de outras coisas, em escolas, etc. Acho que a obra tem a ver com o nosso conhecimento de vida. Também esperei ficar um pouco mais madura, independentemente da idade, para ter algo a dizer.

• Loucura
É um assombro quando você se depara com a loucura. E daí você para filosofar e pensar sobre o que ela tem a ver com o nosso dia a dia, com os limites da sanidade. E o quanto você tem de loucura em si. É um tema importante, é caro a mim, é interessantíssimo, gosto de ler a respeito, gosto de escrever a respeito, mas acho que cada escritor tem as suas obsessões. Às vezes àquilo que a gente chama de loucura, pode ser uma coisa onírica, como acabou acontecendo com o realismo mágico, que foi uma forma que os latino-americanos tiveram de enfrentar a História. Você visita a América Latina e sente que é óbvio que aquela realidade louca só pode ser representada daquele jeito.

• Realismo mágico
Estou falando sobre realismo mágico porque agora estou escrevendo um livro novo, que está começando, estou só há dois meses trabalhando nele. Mas quero dar — e acho que estou conseguindo — um quê de realismo mágico, porque a história vende isso, a história é bem absurda, se você conta, as pessoas não acreditam, então só dá para contar no campo mágico.

• Rotina
Acordo bem cedo e produzo de manhã. É o horário que eu mais gosto de escrever, quando a cabeça está limpa, ainda não surgiram as preocupações do dia a dia, de preferência antes de entrar em rede social, antes de ver notícias, qualquer coisa que me desvie a atenção. Tomo café, sento e procuro escrever — se não for possível todos os dias, quase todos os dias. Mas quando estou com um romance bem mais desenvolvido, trabalho de manhã, por exemplo, das 8h até meio-dia, e à tarde mais um pouco, mais umas duas ou três horas. Quando inicio um romance, já tenho a história na minha cabeça, já sei mais ou menos como é o seu fim, mas vou encontrando muito da história ao longo da escrita.

• Reescrita
Também reescrevo muito. Começo todo dia o livro do início, geralmente, e volto na primeira página, releio. Às vezes estou na página 30, volto na primeira e vou mexendo, mexendo. Depois, no meio do livro, começo a voltar da 40 para frente e assim vou indo. O processo de reescrita é enorme.

• Conexão política
Estudo sobre o fim: bangue-bangue à paulista pega um período político e Casa de família fala sobre outro momento, mas com uma abrangência maior. Os dois livros têm a política como pano de fundo. Casa de família começa nos anos 80, mais ou menos em 1983, e segue até 2023, mas com um forte impacto em 2019. Então, é como se ele fosse de 1983 a 2019, depois ele tivesse mais um trecho de 2019 a 2023. Mas o grande enfoque dele, da ação do livro, acontece nas décadas de 1980 e de 1990. É um período amplo, da redemocratização do país. Já Estudo sobre o fim fica mais centrado em anos recentes, por volta de 2018 até os tempos atuais. Ele pega o período da ascensão da extrema direita no Brasil.

• Ideias para os romances
Já faz um tempo que a gente vem sentindo o crescimento da extrema direita. Talvez desde as jornadas de junho de 2013 já percebemos um movimento muito estranho ali. E uma efervescência política. Então, naquele momento, em 2013, eu já pensava em escrever algo a esse respeito. Desde então a coisa vinha efervescendo na minha cabeça, as histórias se delineando, mas elas não estavam sentadas no papel. Enfim, estava com outros projetos e tal, mas isso já estava na minha cabeça.

• Processo de escrita
E aconteceu de esses dois livros saírem um pouco ao mesmo tempo para mim. Casa de família, comecei em 2018, mas já estava na minha cabeça desde 2013, algumas coisas dele já estavam desde antes. E o Estudo sobre o fim, comecei depois. Comecei depois, mas foi um livro muito rápido de escrever, e ele ultrapassou o Casa de família. E a princípio eu sabia que havia um fundo histórico semelhante, as razões que me levaram a escrevê-los eram parecidas, queria entender como que a gente chegou a esse ponto na política, então achei que deveria voltar no período da redemocratização.

• Trilogia
Estava escrevendo um terceiro livro em conjunto, que pega mais 2013 a 2016. Seria o período do meio, entre Casa de família e Estudo sobre o fim. E aí eu estava um pouco em dúvida. Mandei para uma leitura crítica. Os três livros, para uma pessoa que não me conhecia, que não tinha lido nada meu, nem ouvido falar de mim. E essa pessoa falou assim: “Você percebeu que escreveu uma trilogia?”. Eu estava desconfiada, mas acho que precisava ouvir aquilo de outra pessoa. Esse terceiro livro da trilogia tinha um título provisório de Como uma mulher morre. Mas ele não deu certo. Eu já estava com 200 páginas e joguei tudo fora. Isso faz parte do meu processo criativo também, a lixeira é grande amiga. Mas pretendo, enfim, terminar essa trilogia.

“Os meus livros envolvem um quê de política porque não dá para ser diferente, não consigo fazer diferente, porque a política está em tudo, a gente vivencia isso, não tem como negar.”

• Recepção da obra
Não espero nada [do leitor], porque quando a gente publica já está nas mãos dos outros e não se pode fazer nada. Os meus livros envolvem um quê de política porque não dá para ser diferente, não consigo fazer diferente, porque a política está em tudo, a gente vivencia isso, não tem como negar. Mesmo quem fala que não gosta de tratar de política, já está fazendo um autoengano.

• Onda da direita
A onda da direita me fez produzir mais e mais esses livros. Foi a fagulha que faltava para a produção dessas histórias, com o tom, o viés, que eu vinha procurando há anos, porque já tinha as histórias há muito tempo. Em Casa de família há o personagem Toninho, que quer ascender de toda forma. Isso ficou muito evidente agora com o empreendedorismo ou a filosofia da prosperidade, nas igrejas evangélicas. Veio essa avalanche toda porque o Bolsonaro abriu as portas do inferno, deu voz a tudo isso. Mas essa ideia de empreendedorismo foi plantada na sociedade muito antes. Desde os anos 80, 90, já tinha isso, procurei construir essa ideia em cima do Toninho. Conheço dezenas de Toninhos. E muita gente tem escrito pra mim dizendo: “Nossa, conheço tantos Toninhos”. Ele não nasceu agora.

• Bolsonaro
Assim como o Bolsonaro também não surgiu agora. Um monte de gente fala: “Onde ele estava? Como esse cara surgiu de repente?”. Não, as mudanças não acontecem de uma hora para outra. Tudo isso vem sendo construído há muito tempo, já está na base, está no DNA da sociedade. Tem uma produção de estudos sociológicos imensa de 2013 para cá, que analisa tudo isso e vai analisar todas essas questões, de onde surgiu. Escolhi a família justamente para conseguir chegar mais perto do cerne, do que falar de uma maneira ampla, porque aí seria um estudo mais sociológico. E na família, com esse foco, consigo entrar um pouquinho mais na psicologia.

• Extrema direita
O grande crescimento da extrema direita é outra coisa preocupante, com pautas tão reacionárias. Acho que é grande a precarização do estado da mulher. E o crescimento de certos tipos de igrejas, que vão tomando conta de várias partes do mundo, com pensamentos muito reacionários. Isso me espanta bastante.

• Mudanças climáticas
Outra coisa que não esperava ver tão cedo são as mudanças climáticas. Achava que eu ia estar velhinha para ver o mar tomando as praias, a faixa de areia, essas tempestades, como ocorreu recentemente em Valência, na Espanha. Então, todas essas questões que se referem à ecologia, tudo isso tem me assustado bastante, acho que é um terror.

• Pluralidade da literatura
Fico feliz porque hoje vejo os meus livros e dos meus colegas bem expostos nas mesas das principais livrarias. Acho que isso realmente foi um ganho. A literatura feita por mulheres também aparece muito mais, assim como autoras e autores negros. Então, acho que isso veio de toda uma cobrança da sociedade, desses movimentos de clubes de leitura, como “Leia Mulheres”, “Leia Mulheres Negras”, que têm um alcance bem amplo. Talvez os eventos — como você disse, o próprio Paiol Literário, que tinha lá no início vários homens brancos participando — refletiam o que havia de publicação no mercado. Isso acabava refletindo também nas revistas, jornais e outras publicações. Quando publiquei Desnorteio, senti que ele tinha uma diferença, que eu tinha algo bom a entregar ao mercado. Acho que os livros começaram a se aproximar mais do público. Aí as editoras viram que havia leitores para essa literatura e, como são empresas capitalistas, trataram logo de publicar.

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