A mudança para o interior da Califórnia, nos Estados Unidos, tem transformado a literatura da gaúcha Carol Bensimon. Mesmo antes de se estabelecer na pequena Mendocino, há quatro anos, a saída do Brasil já influenciava a autora, que situou a narrativa de O clube dos jardineiros de fumaça (2017), livro vencedor do prêmio Jabuti de Melhor Romance, na região onde vive atualmente.
Carol falou sobre essa mudança de rota na vida e na literatura durante o terceiro encontro da 11ª temporada do projeto Paiol Literário, em janeiro. Realizado desde 2006, pelo Rascunho, o Paiol Literário promove conversas com diversos autores brasileiros e, este ano, mais uma vez, conta com patrocínio do Itaú via Lei Federal de Incentivo à Cultura.
A escritora nascida em 1982 publicou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água, em 2009. Depois vieram Todos nós adorávamos caubóis, em 2013, e o já citado O clube dos jardineiros de fumaça, em 2017, que aborda a questão da descriminalização da maconha para uso medicinal e recreativo. Seu mais recente livro, Diorama, teve como ponto de partida um célebre crime ocorrido no final dos anos 1980 em Porto Alegre, quando um político e radialista foi assassinado ao chegar em casa.
Durante o encontro, Carol repassou sua trajetória e falou sobre política, oficinas literárias, redes sociais e o mercado editorial para jovens autores nos Estados Unidos e no Brasil. “A diferença é que se um autor realmente acontece aqui [EUA], ele pode comprar uma casa com o dinheiro que ganha. No Brasil não há uma recompensa financeira assim”, diz a autora que tem obras publicadas nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Espanha e na Argentina. “Mas a vida de um escritor hoje é difícil em qualquer lugar.”
• O que a literatura ensina
Acabei de ler um romance do Cormac McCarthy, O passageiro, que me arrebatou muito. McCarthy é um autor do qual gosto demais. E eu vinha da leitura de um livro budista, sobre um monge que decide viver como sem-teto e aprende mil lições. Era minha iniciação ao budismo, porque nunca havia lido sobre a religião. Mas tive a impressão de que aprendi bem mais sobre a vida com o romance do McCarthy, do que com o livro budista. Então, acho que um bom romance ensina tanto sobre tantas questões pungentes da vida — e causa empatia, que é algo que estamos precisando neste momento. É ótimo poder conhecer vidas que não são as nossas, sair fora da nossa bolha de amigos, de redes sociais e poder, por meio da literatura, experimentar outras vivências, entrar na cabeça de pessoas e personagens que pensam diferente da gente.
• Trajetória
Hoje em dia, atribuo muito meu gosto pela literatura ao fato de ser filha única, porque os livros sempre me fizeram muita companhia. Tanto literatura quanto livro infantil sobre história. Por exemplo, li muitos livros sobre como as pessoas viviam no Egito antigo, como as pessoas viviam na Idade Média, etc.
• Malasartes
Lembro de comprar esses livros com meus pais, quando íamos de férias para o Rio de Janeiro. E lá existe uma livraria muito boa chamada Malasartes. Até escrevi sobre isso recentemente para o blog da Companhia das Letras. Eu adorava ir lá e também tenho muitas memórias da Feira do Livro de Porto Alegre, porque ali nos anos 1980, início dos 1990, não era tão fácil ter acesso a livros e livrarias. Então a Feira, que ainda é importante para a cidade, naquele momento era mais ainda. Uma data que era um encontro com os livros, onde eu iria ganhar livros de presente, etc.
• Policial
Logo depois do primeiro contato com os livros, me iniciei na literatura policial. Passei também pela Coleção Vaga-Lume, que toda a minha geração passou, por autores como Marcos Rey, etc. Aí, mais no período da faculdade, quando entrei na Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, comecei a me interessar por uma literatura mais adulta, digamos, Caio Fernando Abreu, Cortázar…
• Memórias afetivas
O romance policial entrou na minha vida mais por ser um bom entretenimento, no primeiro momento. Depois fui buscar entender sobre a vida através da literatura. Tem um livro que sempre cito e representa muito a transição pela qual passei como leitora, de uma relação mais infantil para algo mais adulto. É um livro do Marcos Rey que se chama O último mamífero do Martinelli.
• Lugares abandonados
Conta a história de um homem que, durante a ditadura militar, ia se abrigar no Martinelli, um arranha-céu de São Paulo que na época estava abandonado. Ele ficava lá recriando a vida das pessoas que tinham vivido ou trabalhado no edifício a partir de coisas que haviam ficado para trás, como objetos e marcas nas paredes. E aquilo mexeu muito comigo, mas não sei dizer o porquê. Ao mesmo tempo, vejo que tenho isso com lugares abandonados até hoje, aparecem esses lugares na minha literatura, essa coisa de ler uma pessoa através dos objetos, etc. Então, acho que tudo estava ali naquele livro. Mas é claro que eu não entendia por que aquilo me tocava especialmente. E com o Caio Fernando Abreu foi algo parecido, uma coisa da descoberta da linguagem. Tipo, ah, dá para escrever desse jeito, criar um determinado ritmo, envolver o leitor dessa maneira, colocar referências sobre música e poesia.
• Incentivo
Também sempre tive muito estímulo no colégio. Mas acredito que isso não é determinante porque outros colegas também tiveram as mesmas experiências e não viraram leitores, então isso é meio que uma zona misteriosa. Mas li coisas incríveis no colégio, tipo O apanhador no campo de centeio, do J. D. Salinger, A revolução dos bichos, do Orwell, O continente, do Erico Verissimo, e lembro de todo mundo ficar bem empolgado.
• Acesso ao livro
O livro ainda é muito caro no Brasil. Depende de política pública, de educação. Acho que as coisas melhoraram um pouco nos últimos tempos, é uma percepção que tenho. Não em termos de políticas públicas, porque obviamente nos quatro últimos anos as coisas só pioraram. Mas foi uma questão de valorizar a literatura dentro de certas bolhas. Por exemplo, essa coisa de ter clubes de leitura. Acho que a leitura tira algum proveito das redes sociais. Claro que as redes distraem e podem atrapalhar a leitura, por um lado, mas ao mesmo tempo elas unem as pessoas e, de repente, aquilo já não é mais uma atividade tão solitária.
• Clube de leitura
Por exemplo, depois da minha mesa na Flip de 2022, conheci várias pessoas que estavam lá porque são de algum clube de leitura. Aí todo o clube se organizou para ir até a Flip. Achei isso super bonito. Mas claro que estamos falando de gente que pode pagar para ir à Flip. Isso já é uma outra questão.
Para mim, a leitora e a escritora se confundem. Porque desde criança eu escrevia umas historinhas, até coisas policiais. Acho que sempre li pretendendo também fazer literatura.
• Redes sociais
As redes sociais realmente viraram uma grande distração para todos. Mas, por exemplo, no caso das pautas identitárias, as redes estão ajudando a impulsionar a literatura brasileira. Quando comecei minha carreira, tenho a impressão de que era um desafio maior ser um escritor brasileiro do que é agora. No sentido de que as pessoas estavam lendo basicamente tradução. E torciam um pouco o nariz para a literatura brasileira contemporânea. Acho que isso mudou totalmente hoje, e mudou muito rápido. As pessoas ficaram mais unidas em torno de algumas questões.
• Leitora e escritora
Para mim, a leitora e a escritora se confundem. Porque desde criança eu escrevia umas historinhas, até coisas policiais. Acho que sempre li pretendendo também fazer literatura.
• Pó de parede
Fiz a oficina do Luiz Antonio de Assis Brasil muito antes de 2008, quando estreei de fato na literatura com os contos de Pó de parede. Então, eu tinha contos que havia escrito para a oficina, que poderia reunir em um livro e lançar. Mas queria fazer algo mais consistente, dar uma liga maior entre as histórias — e naquele momento me dei conta de que eu era melhor escrevendo contos mais longos do que histórias de três ou quatro páginas, como as que havia produzido na oficina.
• Três histórias
No Pó de parede, escrevi a primeira história, mas ainda não tinha a noção de que queria fazer um livro com um número determinado de contos. Depois escrevi a segunda e vi que tinha uma espécie de ligação entre elas, a questão arquitetônica de um elemento central da história, então busquei a terceira história já pensando nisso, criar três contos que dialogassem. Foi aí que nasceu o livro.
• Textos curtos
Escrevo coisas breves quando tenho alguma encomenda. Mas não é minha preferência. No entanto, ao longo da carreira flertei com textos curtos, fui colunista da Zero Hora por alguns anos, produzi colunas que eram bem sucintas, que depois algumas foram reunidas em livro [Uma estranha na cidade]. No blog da Companhia das Letras, também não tinha exatamente uma limitação de espaço, mas claro que eu não poderia escrever um negócio de 15 páginas. E agora tenho essa nova experiência com a minha newsletter [Nevoeiro], mas que também vejo como uma coisa que pode ser lida com certa continuidade, porque está ficando uma espécie de diário. Nunca tive diário, então é quase que minha primeira experiência fazendo um diário.
• Oficinas
Eu dou uma oficina online desde 2019 e optei por um formato diferente, cuja ideia é a de que os alunos não interajam muito entre eles. Não queria fazer aquele formato de alguém escrever um conto e os outros discutirem a história. Quis focar mais no que eu sei sobre técnica, porque é uma coisa que me interessa muito, o processo criativo. Acho também que isso pode ser válido no sentido de criar uma espécie de comunidade, pois é legal a sensação de conhecer outras pessoas que estão começando a escrever. Mas também acredito muito que se pode ensinar técnica.
• Construção dos romances
Cada livro foi um pouco diferente. Diorama, que é meu mais recente romance, demorou um pouco para eu acertar a narrativa, o ponto em que a história começava, etc. E também coincidiu com minha mudança para os Estados Unidos. Mas sou bem metódica, quando estou de fato escrevendo, acordo bem cedo, trabalho a manhã toda, uma parte da tarde, um horário meio que de escritório. Não sou uma pessoa noturna, após às 18h não consigo mais trabalhar. E hoje em dia, com mais contas para pagar, é mais difícil conseguir esses períodos de dedicação exclusiva a um romance. Mas tento criar esses períodos, junto dinheiro para ficar meses só fazendo isso.
• Estar fora do Brasil
Senti o impacto até mesmo antes da mudança. Em O clube dos jardineiros de fumaça já tinha isso. Não havia me mudado ainda, mas moro hoje no lugar em que se passa o romance, no interiorzão da Califórnia. Acho que muita coisa mudou. Não é só a distância para o Brasil, porque na real sempre me sinto como a minha personagem, o Brasil nunca sai de mim — para o bem e para o mal. Querendo ou não, o país não sai de mim. Acompanho muito mais o noticiário do Brasil do que o dos Estados Unidos.
• Ambiente rural
Mas também há uma mudança muito significativa que tem a ver com o fato de eu estar em um lugar muito rural, mas sempre fui uma pessoa urbana. Isso mudou completamente meu cotidiano, mudaram meus questionamentos sobre a vida, o que quero, o que espero. Isso tudo mudou e está nos meus livros. A relação com a natureza vem com essa nova experiência.
• Mudança de olhar
Certamente fui poupada em algum grau por passar os últimos quatro anos fora do Brasil. Não acho que sofri todas as adversidades como quem estava vivendo no país. Ao mesmo tempo, não tem como se descolar totalmente. Eu e minha namorada sempre brincamos que queríamos fugir para as montanhas, mas não tem muitas montanhas para onde ir, porque os sentimentos vão contigo, e os amigos e a família estão no Brasil. É tudo meio esquisito.
Nunca caí muito nessa história da gentileza brasileira. Acho isso muito estranho. Porque a impressão que eu tenho é de que a nossa sociedade é bastante brutalizada.
• Sempre perto
Eu também vou muito ao Brasil. Só neste ano que passou estive aí quatro vezes. Não tenho, portanto, um estranhamento quando estou no país. Para mim, continua sendo o lugar onde eu nasci, onde me criei. Ao mesmo tempo, eu já tinha um estranhamento em relação ao Brasil quando eu morava aí. Isso é bem evidente no meu livro Todos nós adorávamos caubóis. Estranhar o lugar em que vivemos é plenamente possível, ter um certo incômodo constante.
• Mercado americano
Mesmo o mercado americano sendo enorme, muita gente que escreve fica pelo meio do caminho. Tem toda uma coisa consolidada de escrita criativa, que é uma espécie de graduação e tem por todo o país, formando milhares de pessoas. Nem todas conseguem virar escritores. E vejo que tem um funil muito grande, as editoras estão sempre procurando a nova sensação. Então tem uma quantidade muito grande de primeiros livros. Mas quantas dessas pessoas chegam ao segundo, terceiro ou quarto livro? Na real é muito pequena. A diferença é que se um autor realmente acontece aqui, ele pode comprar uma casa com o dinheiro que ganha. No Brasil não há uma recompensa financeira assim. Mas a vida de um escritor hoje é difícil em qualquer lugar.
• Busca pelo novo
Hoje em dia no mercado tem mais essa busca pela novidade do que alguns anos atrás. Quando comecei, era muito difícil alguém publicar sua primeira obra por uma grande editora. Sempre se começava por uma editora independente ou o próprio autor bancando a edição. Aí, quem sabe, no segundo ou terceiro livro, poderia chegar a uma grande editora. Mas hoje não, vejo as grandes editoras procurando já esse autor que ainda não lançou. Virou mais forte essa coisa da novidade.
• Mercado cruel
E nada é garantido. Ah, eu tenho uma carreira consolidada… A verdade é que não sei o que vai acontecer. Lembrei agora de um comentário do Assis Brasil recentemente em um evento. Ele dizia que quando era um jovem escritor, os autores mais valorizados eram os mais velhos. E quando ele envelheceu, a onda eram os jovens autores. O mercado é cruel, pode esquecer facilmente de autores que já parecem consolidados. É tudo muito incerto.
• Pautas identitárias
É extremamente positivo esse movimento das pautas identitárias. Todo mundo quer se ver representado e isso é muito importante. Quando descobri que gostava de meninas, não tinha muito para onde recorrer nas artes. Algo que mostrasse um casal de meninas, que mostrasse uma menina apaixonada por outra menina.
• Sem estereótipos
Só acho que os autores têm que ter cuidado para não deixar nuances de lado. Por exemplo, tenho no Diorama um personagem gay. Talvez ele não seja uma boa pessoa, ele tem muitas nuances e tal. Isso a gente tem que ter cuidado. Não podemos trabalhar sempre endeusando os nossos personagens porque fazem parte de alguma minoria. Vejo que essas personagens geralmente não têm falhas de caráter. E acho problemático também os leitores que fazem uma leitura moralizante da literatura brasileira.
• Escritores no RS
Essa é sempre uma questão que retorna. E tem muita gente que tenta dar explicações sobre o porquê de o Rio Grande do Sul ter tantos autores. Eu não saberia dizer. Pode ser que tenha uma estrutura de editoras independentes que seja mais forte lá. A própria Feira do Livro, que tem uma história muito longa, também ajuda. Sempre acho que tem uma coisa de temperamento também. Talvez tenha a ver com um temperamento um pouco mais introvertido, que leve à literatura e não a outras manifestações artísticas. Mas isso pode ser uma grande bobagem.
O mercado é cruel, pode esquecer facilmente de autores que já parecem consolidados. É tudo muito incerto.
• Política no Brasil
Em algum nível, estamos na mesma politicamente. Mas, claro, aí chega um Bolsonaro da vida e traz um retrocesso em todos os campos, na ciência, no meio ambiente, etc. Mas a própria coisa de não ter sido feito exatamente política no governo passado, de não ter diálogo, de não negociar com o diferente, que está contra ti, mas que de alguma forma você precisa dele para compor e conseguir avançar nas pautas. Nesse curto período do governo Lula, já se vê uma brutal diferença em relação ao que vivemos nos últimos quatro anos.
• Trump e Bolsonaro
Há muitas semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro. O governo Bolsonaro foi pior do que o do Trump. Mas aqui o partido Republicano continua meio refém do Trump. Se por um lado ele é uma figura indesejada, ainda está fazendo muito a diferença. Já o Bolsonaro nem conseguiu criar seu próprio partido, então ele está muito mais enterrado politicamente do que o Trump. E depois dessa invasão às sedes dos Três Poderes no Brasil, parece que os bolsonaristas deram um tiro no pé. O Lula é muito hábil em criar imagens simbólicas, como as da posse.
• Tensão no ar
Nunca caí muito nessa história da gentileza brasileira. Acho isso muito estranho. Porque a impressão que eu tenho é de que a nossa sociedade é bastante brutalizada. Sim, muito dessas questões se explicam pela violência e tal, por uma desigualdade absurda, pelo racismo. Talvez seja até injusto comparar, porque hoje moro em um lugar muito pequeno. E as pessoas aqui são extremamente cordiais. Não estou falando do país todo. Mas sempre que vou ao Brasil, tem um pouco desse choque inicial. De uma sociedade em que parece que as pessoas não se tratam muito bem, tem sempre uma tensão no ar. Alguém está sempre desconfiado do outro, não vejo uma comunhão. O tecido social é muito esgarçado.
• O presente como matéria-prima
Pessoalmente, não gosto tanto de me debruçar sobre uma coisa que recém aconteceu. Acho que rolou um pouco esse questionamento na pandemia. Mas ao mesmo tempo, acabei de lançar o Diorama, que fala de um crime ocorrido em 1988, que foi um crime íntimo e político ao mesmo tempo. E o livro está falando do Brasil atual de alguma maneira. Então, prefiro fazer assim, me remeter a um episódio mais antigo para falar de uma coisa atual, mas não fazendo uma relação tão direta.
• Música e referências
Não sei por que tenho essa coisa com a música. Mas reflete a importância que a música tem para mim e daí essa vontade de colocar referências, não só para compor o personagem, mas pensando que o próprio livro tem a ver com aquele sentimento que determinada banda ou música me dão. É um pouco do processo criativo. No caso do Diorama, por exemplo, enxergo as cenas noturnas em Porto Alegre com uma trilha permanente do The Cure.
• Origem de Diorama
Quando decidi ficcionalizar esse caso do Diorama, comecei a falar com jornalistas e pessoas que tinham feito a cobertura do caso. Isso ajudou na minha pesquisa. O caso real tem muitas coisas que me interessam. Um deputado, que também era radialista, portanto, uma pessoa muito conhecida em todo o Rio Grande do Sul, é assassinado numa noite quando chegava em casa. E logo surge como suspeito principal um colega dele lá da Assembleia Legislativa, que casualmente era do mesmo partido do deputado assassinado e que também era o partido do governador do Estado naquele momento. Isso cria uma situação política muito delicada e o caso é extremamente midiatizado. Os filhos do deputado acusado de cometer o crime são tirados da escola. Isso me deu a base para minha história ficcional.
• Costura ficcional
Fiz toda essa fase da pesquisa sobre o caso, mas chegou o momento em que precisava esquecer aquilo. Eu não queria saber nada além dos fatos já conhecidos a respeito das pessoas envolvidas no caso, porque queria ter a liberdade de criar toda uma interioridade para essas pessoas, que não tinha nada a ver com as pessoas reais, de carne e osso. Tem um momento em que me afasto do caso real para fazer “o meu caso”.
• O clube dos jardineiros de fumaça
Acho que eu tinha uma expectativa de que esse livro servisse para se discutir a descriminalização da maconha no Brasil, mas isso acabou não se concretizando. Achava que eventualmente chegaria a pessoas que passam por situações parecidas com a do personagem Arthur. Quando ele ainda está no Brasil, a mãe luta contra um câncer e ele planta maconha para tentar ajudá-la a superar os efeitos da quimioterapia. Eu esperava que me chegassem histórias, do tipo assim: alguém leu o livro e tem uma história similar para me contar. Mas acabou chegando pouco disso.
É extremamente positivo esse movimento das pautas identitárias. Todo mundo quer se ver representado e isso é muito importante. Quando descobri que gostava de meninas, não tinha muito para onde recorrer nas artes.
• Descriminalização da maconha
Essa discussão está muito atrasada no Brasil. E realmente, no período do Bolsonaro, foi um retrocesso. Mesmo dentro da esquerda parece que a discussão não rola tanto quanto deveria. Porque, ao mesmo tempo, parece que tem outras pautas mais urgentes. Uma pessoa que fala bastante sobre isso é o Geovani Martins, não só na literatura dele, mas nos eventos. E isso está totalmente ligado com a questão do racismo, mas parece que as pessoas não percebem. Digamos, eu ou você, se fumarmos maconha, não vamos ser presos. Para a bolha da classe média branca, é como se a maconha fosse liberada. Mas quem sofre com isso são as pessoas negras que moram em comunidades. Então é uma discussão importante, não é uma discussão de playboy carioca.
• Maconha nos EUA
No lugar onde moro nos Estados Unidos, a discussão é econômica, porque é um lugar onde sempre teve muita plantação de maconha. Foi o sustento do lugar por muitas décadas e agora esse mercado acabou com a legalização. E não só com a legalização na Califórnia, mas com a legalização em outros Estados. Porque a maconha continuava sendo plantada ilegalmente aqui e ia para outros Estados onde ela também era ilegal. No momento em que legalizou tudo, ficou muito caro para as pessoas “se legalizarem”. Estamos falando de uns velhos hippies que estão no meio do mato fazendo isso há décadas e que não conseguem entrar nesse jogo capitalista da maconha.
• Conselho a jovens escritores
Primeira coisa é procurar uma oficina literária e desenvolver a técnica. E não ter pressa de publicar. Ler autores contemporâneos, mas pegar coisas mais antigas, clássicos, tentar aprender com isso. Recomendaria também os livros Escrever ficção: Um manual de criação literária, do Assis Brasil, e Como funciona a ficção, do James Wood. Acho que esses dois livros seriam uma ótima porta de entrada para quem quer começar a enxergar a literatura com os olhos de autor.