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Salim Miguel

A sétima edição do Paiol 2008 contou com a presença de Salim Miguel

No dia 10 de setembro, o Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu o escritor e jornalista Salim Miguel. Nascido no Líbano, em 1924, Salim Miguel está radicado no Brasil desde os três anos de idade, quando sua família se estabeleceu em Santa Catarina. Iniciou sua carreira literária nos anos de 1950, tendo publicado cerca de 30 livros. Entre eles, Nur na escuridão, Mare nostrum e Areias do tempo. Numa conversa com o escritor e jornalista José Castello, mediador do encontro, e o público que compareceu ao Teatro Paiol, Salim falou da influência árabe na sua maneira de narrar histórias, relembrou sua experiência como editor da renomada revista Ficção nos anos 70, discorreu sobre sua prisão durante a ditadura militar e apontou algumas características de seu processo criativo. Confira abaixo os melhores momentos do bate-papo.

• O escritor em gestação
A literatura não muda o mundo. Pode mudar o ser humano. Mas ela não me mudou, porque eu pensava em ser escritor já na barriga da minha mãe. Não sei fazer outra coisa a não ser ler e escrever. Sou negado para as coisas práticas. Não sei trocar uma lâmpada. Não sei comprar uma meia. Não sei fazer um cafezinho. Se eu sei — e este “sei” é relativo — alguma coisa, é ler e escrever. Então, o livro não muda o mundo. Pode mudar a cabeça das pessoas. E, se isso ajudar a mudar o mundo, já é importante.

• Signos mágicos
Comecei a escrever antes de aprender a escrever. Naquela época, fim dos anos 20, começo dos 30, depois das estripulias diárias, a criançada se reunia ora na frente da casa de um, ora na frente da casa de outro, e cada um relatava como é que tinha sido o seu dia. As correrias, as brigas. Hoje, nós brigávamos; amanhã, éramos grandes amigos. Então, eu cortava uma folha de papel-embrulho da loja de meu pai, recortava palavras ou letras, juntava alguns rascunhos meus. Linhas na horizontal, na vertical, em círculos. E lia aquilo pra eles. Lia não, porque eu não sabia ler. Inventava que estava lendo. Ali estava surgindo, ao mesmo tempo, o jornalista e o escritor. Então meu pai, me vendo grudado em tudo que era papel impresso, vendo aqueles signos mágicos me fascinarem, me perguntou: “O que pretendes fazer na vida?”. Sem titubear, respondi: “Ler e escrever”. Minha mãe, que era uma mulher sensível, disse: “Não vai ser fácil”. E meu pai: “Fácil não vai ser, mas se ele persistir, conseguirá”. Então, uma palavra que me acompanha toda a vida é “persistir”.

• Dívida com os almanaques
Aos oito anos, encontrei Machado de Assis em um almanaque. Devo muito aos almanaques. Foi Carolina, um dos mais belos sonetos da poesia brasileira e, sem dúvida, o melhor de toda a poesia machadiana — pois, cá entre nós, ele não era um grande poeta. Era um grande contista, um grande romancista, um estudioso da nossa literatura e um cronista excelente. Então, aquele foi meu primeiro Machado. Aos 12 anos, voltei a encontrá-lo numa “selecta em prosa e verso”, naquele apólogo sobre a agulha e a linha. A agulha e a linha discutindo qual das duas era mais importante. Isso continua válido até hoje. A agulha abre caminho, mas quem se projeta é a linha. É ela quem vai à festa com a dona do vestido. Mas o primeiro romance que li foi O tronco do ipê, de José de Alencar, aos nove anos.

• Os Acácios de Eça e Alencar
Anos mais tarde, reli O tronco do ipê. E me dei conta de uma coisa curiosíssima: no livro, há um conselheiro chamado Acácio. É o mesmo tipo enfatuado que diz as maiores banalidades como se dissesse as maiores coisas do mundo. E, aí, fiquei preocupado. Será que o José de Alencar pegou o Conselheiro Acácio do Eça de Queiroz e o copiou? Então a Eglê [Malheiros, escritora, mulher de Salim] e eu consultamos uma enciclopédia e, depois, esse bicho eletrônico que agora nos facilita a vida, mas às vezes nos dá alguns sustos: a internet. O livro de José de Alencar é de 1873. O primo Basílio, onde está o Conselheiro Acácio do Eça, é de 1878. Então, a dúvida que fica é a seguinte: será que o Eça tomou conhecimento de O tronco do ipê? Deixo isso aos pesquisadores.

• Velhice
Para falar a verdade, se eu tivesse uma formação acadêmica, gostaria de ter sido crítico e ensaísta. João Cabral dizia a mesma coisa. Mas acho que tive o bom senso de sempre escrever muito e rasgar mais do que publiquei. Rasguei muito mais do que publiquei. Tanto que, para os nossos padrões, pelo menos para os da minha juventude, comecei muito tarde. Passei a infância e a adolescência em Biguaçu — tanto que costumo dizer que sou um líbano-biguaçuense — e só comecei a publicar em Florianópolis. Nos anos 40, a capital catarinense tinha quatro jornais. Hoje, só tem um. (…) Ao mesmo tempo em que eu publicava algumas crônicas nos jornais, já começava a escrever o que chamo de “anotações sobre leituras”. De repente, me disse assim: “Já que estou fazendo crônicas — e a crônica é meio caminho para o conto —, por que não chego ao conto?”. Daí, comecei a publicar contos. Meu primeiro livro é de 1951. Chama-se Velhice e outros contos, poissempre me preocupou o tema da velhice, da morte, do tempo e da memória. Devo esse livro ao IBGE. Não ganhei dinheiro trabalhando para o senso demográfico de 1950, mas cinco dos oito contos desse livro, inclusive os três VelhiceVelhice 1, Velhice 2 e Velhice 3 —, resultaram de conversas com pessoas que fui recensear.

• Duas, três coisas
Trago duas coisas comigo. Primeiro, a persistência, que devo ao meu pai. E, segundo, a teimosia. Não acredito — ou acredito muito pouco — em inspiração. Mas acredito em três coisas: vocação, talento e persistência. Vocação, todos nascemos com uma. (…) Talento, a gente precisa regar como quem rega uma delicada flor. Se não regar, ela se estiola. E de que maneira ela é regada? Por meio da persistência. Vocação, eu tenho. Talento, não sei, mas o reguei tanto que consegui fazer aquilo que pretendia, que era deixar uma obra. E nunca se pode dizer se uma obra vai ficar ou não. Só o tempo é que nos diz isso.

• Começar em Biguaçu
Eu começo pelo fim. Não volto a Biguaçu porque a trago dentro de mim. Volto raramente. Toda minha obra ficcional remete direta ou indiretamente a Biguaçu. Em Biguaçu, durante anos, li muito. Li absolutamente tudo que se possa imaginar. Durante anos, li para um poeta livreiro cego. Quando falo isso, sempre me fazem uma pergunta: “Que livraria fantástica era essa, em que durante anos tu leste em voz alta para um poeta livreiro cego?”. O nome dele era João Mendes. Deixou três livros de poesia. Um dia, fui a sua livraria e lhe fiz uma proposta. Ele não a aceitou, mas fez outra. A minha era a seguinte: eu levaria um livro para ler em casa, o devolveria igualzinho e pegaria um outro. Iria juntando uns trocados e, na hora em que eu tivesse dinheiro para comprar um livro, eu o compraria. “Não”, ele disse. “Vamos fazer diferente. Também tenho fome de leitura. Tu vens aqui e vamos ler nós dois em voz alta.” Então, a pergunta é assim: “Que livraria fantástica era essa em um municipiozinho tão pequeno?”. Lá, tinha mais material escolar do que literatura. Mas o João Mendes era experiente. Tinha um primo que possuía uma biblioteca em Florianópolis e passou a pedir, para ele, livros emprestados. Além disso, naquela época se pegava muita coisa em consignação. Então, ele pedia, a uma editora, 50 livros, e tinha 90 dias para pagá-los. Ele não podia devolver os 50, mas devolvia 40, 42, e forçava os parentes e amigos a comprar os outros. Nós devorávamos aqueles 50. E o João Mendes, depois de devolver 40, pedia outros 50. Então, aos 12 anos, eu estava lendo As dores do mundo, de Schopenhauer. Mas estava lendo também Buridan ou os mistérios da Torre de Nesle, de Michel Zévaco. O primeiro livro em espanhol que li foi Dom Segundo Sombra, de Ricardo Guiraldes. Como chegou até a livraria, não sei. Pela editora não pode ter sido, porque era em espanhol. Nunca tirei a limpo se foi mandado pelo tal primo de Florianópolis. Mas devoramos o Dom Segundo Sombra. Alguma coisa, ou bastante coisa, nós não entendemos. Foi meu primeiro livro de literatura hispano-americana.

• Dois livros e uma maneira de narrar
Era uma média diária de quatro ou cinco horas. Isso durante, três, quatro, cinco anos, não tenho certeza. Não tenho a mínima idéia, mas devo ter lido mais de 400, 500 livros para o João Mendes. Ambos tínhamos fome de leitura e devorávamos os livros. Então, isso deve ter tido alguma influência na minha maneira de narrar. Além disso, houve dois livros que me marcaram. Primeiro, As mil e uma noites, que eu já ouvia de meu pai e minha mãe. Só fui ler o livro depois, em 1957, quando saiu pela Saraiva a primeira edição integral no Brasil, com ilustrações do Aldemir Martins. Oito volumes, uma edição belíssima, mas traduzida do francês. Só agora está saindo uma tradução do árabe [pela Globo, traduzida por Mamede Mustafa Jarouche]. O outro livro que me marcou — e que tem a ver com As mil e uma noites —foi o Dom Quixote. Cervantes esteve preso e deve ter tomado conhecimento de As mil e uma noites.Se a gente pegar Dom Quixote e aquela maneira de Cervantes narrar — uma história puxando outra história, interrompendo, voltando —, é As mil e uma noites. É claro, quem sou eu pra falar de As mil e uma noites e de Cervantes? Mas a leitura em voz alta e esses dois livros têm a ver com o que eu escrevo, e espero não ofendê-los muito.

“A literatura não muda o mundo. Pode mudar o ser humano. Mas ela não me mudou, porque eu pensava em ser escritor já na barriga da minha mãe.”

• Só palavrões
Nunca voltei ao Líbano. Mas comecei a ser alfabetizado em árabe e alemão. Nos dois primeiros distritos onde moramos, em Santa Catarina, não havia escola que ensinasse o português. Então, com meus pais, eu comecei a aprender árabe, e, com um amigo do meu pai, alemão. Quando chegamos a Biguaçu, eu já estava entrando nos oito anos e entrei para o grupo escolar. Foi uma dessas bobagens que a gente faz e depois se arrepende quando já é tarde, mas não quis continuar nem com o árabe e nem com o alemão. Meu pai me dizia: “Continua. Um homem que sabe dois idiomas vale por dois”. Então, hoje, do árabe e do alemão eu só sei palavrões. Minha mãe havia estudado russo e inglês. Meu pai havia estudado francês. De maneira que eles tiveram facilidade em aprender o português. Liam. Mas jamais se esqueciam de se comunicar em árabe. Ou entre eles ou com os patrícios de Biguaçu e de Florianópolis, ou nas viagens que meu pai fazia pelo Brasil. Só que ele nunca quis voltar ao Líbano. Dizia: “Quero manter intacto dentro de mim o Líbano de 1927, quando saí de lá. Não quero ver este Líbano como está hoje”.

• Torneio de frases
Uma professora de literatura árabe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul fez um longo texto sobre Nur na escuridão, em que aponta na minha maneira de narrar, em determinadas passagens, a maneira de narrar dos árabes. E como uso muitas palavras árabes nesse livro, ela diz que fiz uma coisa curiosa. Não uso notas de pé de página para explicar que palavras são essas. Faço um torneio de frases para que o leitor fique sabendo que a palavra tal está explicada daquela maneira. É um texto muito interessante o que ela fez, a respeito disso. Acho que estava certa. E acho mesmo que tive uma certa influência da literatura árabe.

• Procurado
Existem duas maneiras de um escritor trabalhar. Os temas são uns poucos desde o começo do mundo, temas recorrentes. Os personagens também. Só que alguns autores ficam procurando isso. Eu não. Personagens e temas me procuram. Para alguns, eu digo: “Tudo bem, vamos ver se trabalhamos juntos”. Para outros, digo: “Ó, por favor, não dá. Procura outro autor, eu não estou disponível”. Posso dar um exemplo? Estava na minha casa de praia com a Eglê e a minha filha Sônia. Anoitecia de repente. A Sônia me diz: “Pai, é para ti essa ligação”. Eu perguntei: “Quem é?”. E ela: “Não sei, é uma voz de mulher”. Peguei o telefone e a mulher disse: “Salim Miguel?”. E eu: “Sim”. E ela: “Preciso falar contigo”. Começou assim. Eu disse: “Fala”. E ela: “Mas não pode ser por telefone”. Eu: “Mas por quê?”. Ela: “É que estou chegando do Rio de Janeiro e preciso te encontrar”. Pensei: mas que negócio mais maluco. “Não podemos nos encontrar num barzinho aqui em Florianópolis?”. E eu disse: “Por que você não pega um ônibus e vem aqui?”. E ela: “Não, são quase 40 quilômetros”. E não sei mais o quê. Resumindo: marquei com ela no outro dia, na editora da universidade onde eu trabalhava. Às dez horas. Perto das dez, ouço uma voz: “Que pena. Parece, mas não é”. Olhei e lá estava aquela mulher na porta da editora. Ela olhou para mim e disse: “Me desculpe, é uma pena. Parece, mas não é. Até logo”. E eu: “Não, não, não. Que história é essa? Até logo? Parece, mas não é? Me deixaste preocupado. Deixaste minha mulher com a pulga atrás da orelha e agora vens com isso? Que pena, parece, mas não é? Tu me deves uma explicação”. Ela perguntou: “Será que devo?”. E eu: “Deve, sim”. Ela entrou. Eu disse: “Senta”. Ela sentou e disse: “Anteontem, passei numa banca, peguei um jornal, abri e vi uma foto tua, com uma enorme matéria falando do teu último livro. Olhei e disse: ‘É ele, é ele’”. “Ele quem?” “Pois é aí que começa a história.” “Me conte.” E ela: “Nunca. Jamais contei para ninguém”. E eu: “Agora vai contar para mim. Tu estás me devendo alguma coisa”. E ela me contou um conto que se chama Um verão louco. Um conto completo.

• Jornalismo e uma pitadinha de ficção
Devo muito ao meu trabalho como jornalista. Trabalhei quase 40 anos como jornalista. E, em jornalismo — a não ser plantão de polícia —, eu fiz de tudo. Até horóscopo. Um bom texto jornalístico, quer a gente queira, quer não, sempre tem uma pitadinha de ficção. Acho que jornalismo também é literatura. Ao contrário do que muitos dizem. Cito, por exemplo, algumas matérias de Joel Silveira que são modelos de bom jornalismo. Aquilo ali é literatura.

• Memória pessoal
Aqueles que dizem “não escrevo para os outros, escrevo pra mim” não estão falando a verdade. A gente sempre escreve por uma necessidade interior, escreve para se comunicar. No meu caso, sempre repito que, quando um livro chega ao leitor, ele é e não é mais do autor. Passa a ser de quem o está lendo, que pode largá-lo depois de ler cinco páginas. E pode ajudar o autor cortando alguma coisa, emendando, aceitando, recusando. Então, escrevo por uma necessidade interior, mas não vou ser hipócrita e dizer que escrevo para não ser lido. Escrevo para ser lido. Para deixar o meu recado, o recado do meu tempo, do meu jeito, da minha época. Agora, se isso vai ter validade daqui para diante ninguém sabe. Grandes nomes que começaram há 50 anos, ninguém mais sabe quem são. E outros, que ficaram submersos, de repente apareceram. E não é a quantidade de livros o que marca um autor. É a qualidade. Por exemplo: Juan Rulfo. Bastaram dois livros para torná-lo uma referência da literatura hispano-americana, da literatura do século 20. Espero que dos meus 30 livros, alguns, pelo menos, permaneçam.

• Revista Ficção
Eu trabalhava na revista Manchete e, entre os meus vários colegas, estava o Cícero Sandroni, que em 1965 havia, juntamente com o Odylo Costa, filho, publicado dois números da revista Ficção. Então, durante um almoço no restaurante da Manchete, eu disse para ele: “Cícero, eu estava pronto para mandar um conto para a Ficção quando ela acabou”. E ele: “Pois é. Até hoje penso em relançar a revista”. E eu: “E por que não passamos a pensar juntos?”. Uma semana depois, ele me procurou e disse assim: “Vamos fazer uma reunião na minha casa?”. Aí nos reunimos, Fausto Cunha, Laura Sandroni, Eglê Malheiros, Cícero e eu. Decidimos relançar a revista. E formamos um conselho editorial. Entre outros, Mário Fontes, Helio Pólvora e mais três, de quem agora me fogem os nomes. Isso foi em 1975. Em janeiro de 1976, lançamos o primeiro número da Ficção, com o propósito de, durante um ano, não repetirmos nomes, fazermos o mapeamento do conto no Brasil, recuando até contistas do passado e com várias rubricas, até contistas de outros países: hispano-americanos, norte-americanos, portugueses, africanos, italianos, franceses e por aí vai. Começamos tirando 15 mil exemplares. A revista durou até 1979. Quando a gente imaginava que ela já estava estabelecida, acabou. Foram uns 44 números.

• Decepcionados com a censura
Ao contrário de outras revistas, a nossa não sofria censura prévia. Só tínhamos que mandar um exemplar para a censura depois que a revista saía. O Arthur da Távola havia mandado um conto para uma revista de São Paulo, que tinha que ser enviada para a censura antes da publicação, e o conto foi recusado. Um dia, ele me procurou na redação da Manchete e me disse: “Vocês arriscariam publicar este conto?”. Eu peguei e disse: “Arthur, não posso dizer que nós arriscaríamos, mas vou levar o conto. Nós vamos ler e decidir o que fazer com ele”. Era um conto interessante, embora não fosse uma obra-prima (obras-primas também não surgem todo dia). E resolvemos publicá-lo para ver se acontecia alguma coisa. Ficamos decepcionadíssimos. Até hoje estamos esperando que a censura nos ataque por termos publicado aquele conto do Arthur da Távola.

• Cachorra da família
Estava conversando com alunos a quem uma professora havia distribuído meu livro Nur na escuridão. E de repente, uma moça me disse assim: “Só não aceito que um autor tente enganar o leitor”. E eu: “Mas enganar como?”. E ela: “No teu livro, tem um capítulo chamado ‘Taira’. Eu o li praticamente inteiro, certa de que estava lendo sobre uma pessoa da família. E Taira era uma cachorra”. Respondi: “Mas era uma pessoa da família. E eu nem inovei. Está aí a Baleia do Graciliano. Está aí a novelinha O cão e seu dono, de Thomas Mann”. Ela disse: “Pois é. Mas tu chegas a dizer que ela está ‘grávida’, quando ‘grávida’ se usa para as mulheres. Para mim, ela estaria ‘prenha’”. E eu: “Não. Ela era uma pessoa da família”.

• O livro é do leitor
Houve uma jovem de Belém do Pará. Acho que era uma jovem, porque nossa voz também envelhece. Minha voz de hoje não é a voz de dez anos atrás, não é a voz de 20 anos atrás. Pois essa jovem me telefona para dizer assim: “Custei a encontrar seu livro Nur na escuridão. Não havia nas livrarias. Não havia na editora. Afinal consegui. Ainda não terminei, mas não pude deixar de te telefonar. Me emocionei tanto que cheguei às lágrimas”. Aí, fiz-lhe uma pergunta que depois, pensando bem, conversando com a Eglê, vi que foi meio imbecil. Perguntei: “Você tem alguma coisa a ver com libaneses?”. Ela respondeu: “E é preciso ter para gostar do seu livro?”. Para o autor, isso é o mais importante. É preciso conhecer ou ter alguma coisa haver com o autor para se gostar do livro dele? É nesse momento que digo que um livro já passou a ser mais do leitor do que do autor.

“Sou negado para as coisas práticas. Não sei trocar uma lâmpada. Não sei comprar uma meia. Não sei fazer um cafezinho. Se eu sei alguma coisa, é ler e escrever.”

• Memórias da prisão
Fiquei 48 dias preso. Fui preso em 2 de abril e solto em 20 de maio. Fiquei no alojamento do Quartel da Polícia Militar de Florianópolis. A Eglê me mandou um caderno e um lápis — lá não podia entrar caneta, era uma arma muito perigosa. Então, fui fazendo anotações a respeito das minhas reações e das reações das 60 pessoas que estavam comigo. Só que deixei aquilo dormir por exatos 30 anos. Não queria dar meu depoimento com rancor ou com mágoa. Queria dar um depoimento isento. Como foram aqueles 48 dias, como é que cada um de nós reagiu. Só que tentei escrever na primeira pessoa. E era “eu” demais. Na terceira, me dava um distanciamento que eu não queria. Então, o livro todo é narrado na segunda pessoa. E agora ele acabou de sair na França, faz um ano. Só que, lá, mudaram o titulo. No Brasil, ele se chama Primeiro de abril: narrativas na cadeia. Ao mesmo tempo em que não há nada ali que não seja real, essas narrativas são ficcionalmente trabalhadas. Só que, na França, esse título não funcionaria. Então, a editora de lá me consultou. Perguntou se poderia dar o seguinte título ao meu livro: Brasil, abril de 1964: a ditadura se instala. Para eles, isso é muito mais forte.

• Releituras
Com a idade, ao mesmo tempo em que procura acompanhar o que está aparecendo, a gente relê muito mais. Eu, por exemplo, nesses últimos três, quatro anos, nem leio, nem releio, porque estou com um problema de visão. Tenho 70% das duas vistas comprometidas. Então, tenho que ter quem leia para mim. Tenho “relido” muitas coisas. Machado de Assis, por exemplo, não sei quantas vezes eu o li e reli e voltarei a reler. E, relendo Machado, de repente tu descobres coisas assim: “Puxa, já li esse cara três vezes e só agora me dei conta disso”. Então, a releitura, para um escritor e um leitor interessado, é muito importante. Tenho um amigo que faleceu aos 96 anos, e que sabia mais de Machado de Assis do que muitos críticos e estudiosos da sua obra. E ele sempre me dizia: “Salim, já li Memórias póstumas de Brás Cubas oito vezes e a cada vez me surpreende minha burrice, porque algum detalhe havia me passado despercebido”. Se um livro agüenta uma segunda, uma terceira, uma quarta releitura, é porque, na verdade, ele tem valor. Porque muitos livros nos decepcionam. A gente vai tentar relê-los e diz: “Puxa, da primeira vez este livro me marcou tanto, e agora não estou conseguindo ir além desta página”.

• Reescritas
Escrever é saber reescrever e cortar. Se eu fosse o Nelson Rodrigues, diria “cortar como quem corta na própria carne”. Porque a gente corta aquilo que vem de dentro de nós. Por outro lado, tenho comigo o seguinte: não mexo em um livro meu já publicado, a não ser em alguns detalhes. Não reescrevo livro publicado. O Josué Montello, por exemplo, deixou uma montanha de livros. Publicou quase 150 títulos. Um dos primeiros livros dele, A luz da estrela morta, é dos anos 50, e, nos 80, foi publicada uma segunda edição. E ele reescreveu absolutamente tudo. Então, era para ter feito um novo livro. No meu caso, fico insatisfeito com algumas coisas quando as releio, mas não costumo mexer naquilo que já está publicado.

• Livros ditados
A Eglê lê muito para mim, mas temos interesses comuns e interesses divergentes. Ela é muito mais abrangente e tem muito mais interesses, muito mais cultura que eu. Então, muitas vezes, os interesses dela e os meus não coincidem. Durante três anos, tive um estudante de ciências sociais que lia para mim. Eu pagava para ele e, duas vezes por semana, ele ia ler em voz alta para mim. E me ajudava a escrever também. Chamava-se Tarso da Silva — lembro do nome porque é o nome do ministro Tarso Genro. Mas aí ele se formou e parou. Agora, quem está lendo para mim é o meu neto, Jorge Luiz. Ele estuda artes visuais na Universidade Estadual e artes cênicas na Universidade Federal. Fez vestibular para os dois, passou nos dois e está cursando os dois. Então, duas, três vezes por semana, ele lê para mim. Só que o rendimento com ele é muito menor do que era com o outro. Porque estou levantando muitas coisas antigas, documentos. E, com o outro, eu dizia: “Tarso, lê um pedacinho disso aqui. Se me interessar, vamos adiante, se não interessar vamos a outro”. Com o meu neto, não posso fazer isso. Ele diz: “Vô, mas eu estou interessado. Posso ler isso até o fim?”. Resultado: está indo. Outra coisa curiosa é a seguinte: trabalhei como chefe em algumas ocasiões e nunca consegui ditar uma carta para uma secretária. Eu escrevia à mão ou à máquina e entregava o texto para elas fazerem direitinho. Não conseguia, tinha uma incapacidade total. Mas a necessidade nos faz rever as coisas. Hoje, meus dois, três últimos livros foram praticamente ditados. E, é claro, dito e a Eglê e eu nos pomos a reler e a discutir. “Pô, mas isso aqui tu podes fazer melhor”. Eu: “Eu não posso ir adiante”. Ela diz: “Pode, sim. Corta esse pedacinho aqui”. Quer dizer, a maioria das vezes acabo concordando com ela. Outras vezes, não.

• O Líbano e Santa Catarina
Santa Catarina é marcada basicamente pela colonização alemã e italiana. Primeiro, foram os açorianos e os portugueses. Tudo que existe em Florianópolis, hoje, é açoriano. Outro dia, cheguei a conversar com um homem que dizia que o milho, a mandioca, tudo era açoriano. Eu disse: “Qualquer dia, até o macarrão vai passar a ser açoriano”. Tudo passou a ser açoriano. Mas a marca maior em Santa Catarina é dos alemães e dos italianos. Como comecei a ser alfabetizado em árabe e alemão, isso deixou uma marca forte em mim. Tanto que, quando entrei na escola que ensinava português, já estava indo para os nove anos. No fim do ano, a professora bateu palmas, chamou a atenção dos alunos e disse: “Vejam só. O Salim chegou ontem aqui. Mal sabia algumas palavras de português, misturadas ao árabe e ao alemão. Hoje, ele fala, lê e escreve melhor do que vocês. E é turco! Vocês não têm vergonha?”. Me chamou lá para frente e me deu um tinteiro, presente que preservo até hoje. Desabei num choro ferrado. Não sei se pelo elogio ou se pelo “turco”. Meu pai sempre me dizia: “Não aceite que te chamem de turco”. Porque durante séculos o Império Otomano Turco havia dominado toda aquela região da Síria, do Líbano. Meu pai tinha duas marcas: uma contra os turcos, a outra contra os franceses. Porque depois da Guerra 14-18, os ingleses e franceses, muito bonzinhos, libertaram a Síria — que depois seria dividida em Síria e Líbano — dos otomanos. Mas a Síria virou um protetorado inglês, e o Líbano, um protetorado francês. Então, ficou do mesmo jeito. E eu desabei num choro que não conseguia parar. Até hoje, francamente, não sei se foi pelo elogio ou se foi pelo “turco”.

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