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Eucanaã Ferraz

A primeira edição do Paiol 2013 contou com a presença de Eucanaã Ferraz

No dia 10 de julho, o poeta Eucanaã Ferraz abriu a temporada 2013 do Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná. Nascido no Rio de Janeiro, em 1961, Ferraz estreou na literatura em 1990, com os poemas de Livro primeiro, publicado em edição de autor. Em sua obra, destacam-se Cinemateca (2008), Rua do mundo (2004) e Desassombro (2002, vencedor do prêmio de poesia da Fundação Biblioteca Nacional), todos de poesia. Professor na faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é também coordenador editorial da Coleção Vinicius de Moraes na Companhia das Letras. Seu livro de poemas mais recente, Sentimental (leia resenha na página 6), foi publicado em 2012, e em 2013 lançou o infantil Em cima daquela serra. Durante bate-papo mediado por Rogério Pereira no Sesc Paço da Liberdade, em Curitiba, Eucanaã Ferraz falou sobre sua formação como leitor, a liberdade que caracteriza o atual momento da poesia brasileira, a relação entre poesia e música popular, a dinâmica do poema, entre outros assuntos.

Sem botão
As pessoas podem viver sem literatura. Talvez seja mais difícil viver sem geladeira. Eu não saberia viver sem geladeira. Fogão. Travesseiro. Não, a literatura não é uma coisa essencial na vida cotidiana das pessoas. Vai se tornando essencial na vida de quem escreve — para quem escreve, de vez em quando a impressão é de que é mais importante do que a própria geladeira. Até o dia em que ela escangalha e você vê que não é bem assim. A literatura é um desses “objetos” sem serventia que estranhamente começamos a produzir, movidos por um motivo quase que secreto, talvez o mesmo que nos fez produzir pintura. Porque antes de existir a escrita, lá na parede das cavernas, nós já fazíamos pintura, com uma função mágica. Então, a literatura vem muito depois, talvez com essa função mágica. E aí, comparando com a geladeira, esta perde um bocado, porque não tem função mágica nenhuma. É realmente só utilitária. Estranhamente, precisamos de objetos que tenham uma função mágica. Alguma coisa em nós faz com que eles sejam imprescindíveis. A vida sem objetos mágicos até pode ser vivida — e é vivida por muitos —, mas é uma vida muito mais pobre, pequena. E a vida pode ser muito mais do que aquilo que a geladeira nos dá, e os fogões. Seria muito desejável que mais pessoas tivessem acesso a esses objetos mágicos — que não são objetos da utilidade, em que você sabe exatamente que botões apertar. A literatura é exatamente o contrário: você não sabe que botões apertar e que funções aquele objeto terá a partir do momento em que alguma alavanca ou fio desencadear seu funcionamento. É um objeto estranho que você nunca sabe exatamente como dar partida, como desligar e o que ele pode produzir. Seria desejável que mais pessoas tivessem acesso a isso — e aí, claro, eu estou falando de educação. E num país como o nosso, estamos tão aquém dos objetos mágicos que não temos acesso sequer ao gesto mínimo da mágica, que é juntar uma palavra com a outra.

Horror no aeroporto
Os livros têm perdido um pouco a sua função mágica e vêm ganhando uma função de geladeira. Ontem, no aeroporto, fiquei deprimido, porque é impossível comprar livro numa livraria de aeroporto. São todos horríveis, as capas são horríveis, os títulos são horríveis, tudo é horrível — é um horror. Você pensa: “Caramba, quanto livro para quem não gosta de livros!”. É uma decepção. Daí comprei uma revista fútil, que pelo menos me livrei dela mais rapidamente e talvez fosse mais interessante do que qualquer um daqueles livros.

“A literatura é um desses objetos sem serventia que estranhamente nós produzimos, movidos por um motivo quase que secreto.”

Pequenas empresas
[As pessoas lêem livros de auto-ajuda] Porque têm necessidade de coisas mais pragmáticas. Elas querem geladeira. Um livro de contos do Cortázar, um romance da Clarice Lispector, um livro de poemas do Ferreira Gullar, você não sabe onde estão as teclas, onde acionar, o que sai dali. E nesses livros tipo “Jesus Cristo: O maior empresário que já existiu” — ou é assim ou é parecido — você sabe, é normativo, é uma receita. Então, aquilo te dá um conforto. As pessoas querem conforto. Esses são os livros que vendem, que dão dinheiro, e os autores vão nesse negócio, as editoras também. É meio livro, meio auto-ajuda, meio psicologia, meio administração de empresas — ou seja, sua vida é uma pequena empresa. Você quer na verdade uma mágica sem que seja um livro mágico. Você procura como organizar a sua vida de maneira empresarial: você é uma pequena empresa. Isso é péssimo.

Inquietude
Não acredito [na formação do leitor a partir desse tipo de livro]. Porque não é o objeto livro que vai te levar à literatura. Não acredito que alguém veja um quadro vagabundo e depois vá ao museu. Não vai, ele vê aquele quadro vagabundo, fica feliz com aquilo e pronto, acabou. Acaba ali. Ao ir depois para outro livro, aquilo é chato, é difícil, você não sabe o que fazer com aquele negócio, larga e volta para o outro, para o livro empresarial. Na verdade, esses tais livros de auto-ajuda só são apaziguadores, confortam. A literatura não conforta. Ao contrário — ela perturba, aciona coisas, cria algum tipo de insatisfação. Por isso é uma aventura sem fim. Por isso, quando você começa com esse negócio, um livro te leva a outro, um poema te leva a outro, um autor te leva a outro e você lê até o fim da sua vida. Você se sente aprendendo mas não sabe o que aprendeu. É inquietude.

Sustos
Eu sinto muita alegria [ao ler um poema], porque a beleza é algo que verdadeiramente me emociona — a capacidade de, com palavras, produzir beleza. Entender que aquelas palavras estão juntas pela primeira vez, de fato, me emociona. Mas é claro que tem aí leitor e escritor; tem o poeta que quando vê aquilo, pensa: “Mas como é possível que o [Ferreira] Gullar tenha juntado essas duas palavras? Elas nunca estiveram juntas antes”. Então, a sensação de que aquelas palavras nunca se reuniram e pela primeira vez alguém as torna vizinhas, isso me perturba. É algo que acontece com todo mundo quando nos deparamos com alguma coisa que é vibrante, com seu frescor. Não é tanto que aquilo me ajudará a viver, no sentido de que me trará um conhecimento, exatamente. Um poema do Gullar ou um livro da Clarice ou um poema do Drummond, do Bandeira — as nossas listas são grandes e cada um tem a sua — não me ensina exatamente uma coisa para eu usar na vida, mesmo na minha vida afetiva, psíquica. Não tem algo que eu aprenda, exatamente. Mas é uma ativação afetiva, intelectual. É puramente vibração, é uma coisa meio elétrica. E é o suficiente, não precisa ser mais do que isso. Isso é muita coisa. E o que os grandes autores fazem é exatamente produzir isso nas pessoas. Por que você ainda sente isso hoje quando lê ou assiste ao Shakespeare, ou quando lê Virginia Woolf ou um poema do Eliot? Não importa quando aquilo foi escrito, em que país, em que língua, que realidade histórica premiu aqueles autores — aquilo é verdadeiro, é atual para você, agora. É como se séculos depois, aquilo continuasse vibrando. Você pode pensar toda a sua vida a partir daquilo. Passo a maior parte da vida lendo e estudando Drummond. É o autor que mais conheço: fiz dissertação de mestrado sobre Drummond, escrevo sobre ele. Tenho me dedicado muito a Vinicius, mas sei os poemas de cor, em que livros estão, tenho intimidade com o Drummond. Porém, não cessa o meu susto. Cada vez que eu leio aquilo é uma coisa perturbadora, que de fato me emociona.

Mau caminho
Minha formação é paupérrima. É das mais pobres que se possa imaginar. Não havia livros em casa. Havia alguns do meu pai, que era dentista, e eram livros de odontologia — o que para uma criança significava não ter livros em casa. E muito pragmaticamente, meu pai não incentivava a leitura de nada que não fossem os livros da escola, os que ele achava que eram úteis: de matemática, coisas do tipo. Eu lembro de, em alguma altura da minha vida, ler romances escondido. Tinha que ser um livro da escola porque ele queria que eu estudasse, tivesse um futuro, não fosse poeta, evidentemente, um homem de bem… O que todo pai deseja. Não tive filhos para não desejar isso, ficar num drama querendo que ele fosse poeta… E aí meu pai imaginava que ler romance não me daria um futuro muito bacana, o futuro que ele queria. Mas a própria escola me salvou, porque fui vendo os livros ali. Também sou professor, todo mundo fala e parece quase um discurso automático, mas me sinto perfeitamente objeto disso que a gente nomeia educação: tudo o que sou devo à escola. Não foi a família que me deu. Devo à escola pública, quando já era boa — no sentido de que já tinha sido ótima, ou seja, estava em declínio. E na escola, além do negócio formal, tinha o convívio com os colegas. Um tinha a Enciclopédia Disney, um tinha a Barsa em casa, eu tinha um volume do Tesouro da juventude. E um mostrava para o outro.

Leitura para nada
Descobri Augusto dos Anjos entre os livros de odontologia. Porque [meu pai] era da geração para a qual Augusto dos Anjos era uma coisa obrigatória, todo mundo tinha em casa. Não significava que o sujeito tinha lido: ele tinha em casa. É diferente. E fiquei louco por aquilo. Li, evidentemente não entendia nada, e quanto menos entendia, mais eu gostava. Isso que falei de objeto mágico, aquilo era mais mágico, porque como não conseguia entender nada, dava a sensação de que eram fórmulas mágicas, ainda mais com aquele vocabulário rebuscado, torto, doido. Era muito garoto, com dez, onze anos. Imagina, um menino com essa idade, não dá para ler As cismas do destino, Monólogo de uma sombra. Eu achava incrível, só. Não tinha maturidade, vocabulário para aquilo. Nem tinha dicionário para aquilo. Tinha preguiça de ir ao dicionário. Então, ficava sem entender nada. Era uma espécie de leitura para nada, só para agitar a cabeça. Uma espécie de sacolejo. O negócio da poesia me pegou mesmo quando li Fernando Pessoa. Aí, falei: “Uau!”. Foi incrível. Fiquei louco pelo Alberto Caeiro, seu heterônimo. Não é o heterônimo de que a garotada mais gosta, porque aquilo é muito estranho, uma coisa toda voltada para a natureza, muito pagã… Não tem muito a ver com a realidade de um jovem normal. Eu tinha que gostar do Álvaro de Campos, que é o heterônimo em que um adolescente se reconhece mais: aquela efervescência, uma certa perturbação afetiva, uma volúpia, uma sede, uma fome, e ao mesmo tempo um fastio, uma certa melancolia, mas sempre tudo muito violento, meio hormonal. E sei lá por que cargas d’água eu gostava mais do Alberto.

O negócio da poesia
Adorava prosa nessa época e lia aquelas coisas da escola. Li todo o José de Alencar. Amava, achava incrível. Depois emendei nos Românticos em geral. Muito antes da faculdade já tinha lido todos eles. Na minha cidade [Nova Iguaçu, RJ] não havia livraria, havia uma papelaria: Casa Mattos. Eu ia lá no segundo andar, tinha os livrinhos, eu comprava. Era um menino. “Eu quero A pata da gazela.” Uma maluquice. Gosto deles todos, são leituras que ficaram. Esses autores me acompanham. O que aconteceu foi que acabei me interessando pelo negócio da poesia. Leio pouca prosa hoje. Na época da faculdade, eu lia muito. E por vontade própria. Li todo o Cortázar. Li todo o Borges. Toda a Clarice. Li Virginia Woolf, Proust. Tudo o que caía na minha mão. Todos os latino-americanos. Depois, dei tudo, porque saquei que não ia mais ler. Só não dei o Borges e o Cortázar porque acho que ainda vou gastar algum tempo voltando a eles. Mas fui desenvolvendo interesse mesmo por poesia: já estava escrevendo poesia, tinha uma turma de amigos que eram poetas. A leitura de prosa foi rareando. Hoje sou professor e só trabalho com poesia.

“Num país como o nosso, não temos acesso sequer ao gesto mínimo da mágica, que é juntar uma palavra com a outra.”

Dinâmica
Não sei em que momento virou uma decisão [ser poeta]. Na escola havia outros que escreviam, e era poesia, porque é mais fácil: gasta menos papel, faz mais rápido e já mostra para alguém. “Estou fazendo um romance.” “Ah, tá. Cadê?” “Estou fazendo…” Você leva um ano fazendo aquele negócio. Daí você faz um poema, já mostra, o cara já diz se gostou. É rápido. Romance demora muito. Conto também. Acho que é um pouco isto: porque é rápido, você se livra rapidamente daquilo, já tem uma coisa pronta. Não tem nada nobre nessa escolha, não. Depois você vai entendendo que não tem rapidez nenhuma. Sentimental tem coisas curiosíssimas. Há poemas que levei mais de vinte anos escrevendo. Não é incrível, nada. Só demorou. Tem outros que levei quinze anos escrevendo. Você diz: “O cara escreveu, daí mexeu nele cinco anos depois, aí cinco anos depois — e deu quinze anos”. Não: quinze anos mexendo muito. Por que tanto tempo? Porque não estava satisfeito, mexia, esticava, via que não funcionava, estica e depois corta, corta, corta. Aí voltava para o início. Aquilo não se resolve. E há poemas que você joga fora rapidamente porque entende que não vão chegar a lugar nenhum. Outros, você entende que podem ter um futuro. Em arte, tempo não é garantia de coisíssima nenhuma. A Fayga Ostrower me disse uma coisa que adorei: “Um rabisco que Picasso fez em dois minutos pode ser melhor do que um quadro que ele levou meses ou um ano para fazer”. Porque aquele traço pode expressar muito mais do que aquilo que ele levou um tempão fazendo. Em arte é isso. Então, não significa que o poema seja melhor, significa apenas que ele levou vinte anos. E o outro que leva uma semana, um mês ou um ano pode ser muito melhor. Aquele que levou meia hora pode ser melhor. Significa só que você trabalha com tempos muito dilatados e com dinâmicas que são próprias daquele objeto: não do seu método de trabalho, mas que o poema impõe. Então tem poema que nasce torto, errado, complicado e você precisa se virar com aquilo. E tem outros que nascem já com aquela cara de “vim ao mundo pronto, vou arrasar”. Mas sempre dou uma mexidinha.

Cochichando
[O poema] É bom quando acho que é bom. Sinto que ele é bom. Tenho uma coisa que não é método, é engraçado: fico lendo em voz baixa, cochichando. Leio muito baixinho, milhões de vezes. É como se precisasse ouvir o som do poema. Mas em voz alta não funciona, tem que ser muito baixinho… Todo poema é uma coisa cochichada. O meu poema, vejo sempre em tom baixo, em voz baixa. Como se fosse a voz ideal. Os poemas do Waly Salomão são como o Waly: voz alta, gritados. Fico cochichando milhões de vezes e em algum momento entendo que o poema entrou no seu ritmo, que já existe, está pronto. O João Cabral tinha uma imagem de que gosto muito: ele dizia que a certa altura ouvia o poema fechar como uma caixa, e ouvia um clique. Fechou, está pronto. É como se fosse isso. Você sente: está terminado, é isso. Agora, muitas vezes você se engana, o poema te engana. Você acha que está pronto e não está coisíssima nenhuma. E às vezes pode estragar o poema: você fica desconfiando dele, acha que não está bom, fica mexendo e vai destroçando aquilo, vai ficando uma coisa terrível. É uma relação estranha, porque aquilo vai ficando um monstro, todo esticado, todo torto. É preciso saber a hora de parar, é preciso aceitar o poema como ele é. E com o livro é a mesma coisa: em algum momento você precisa aceitá-lo: esse é o livro que posso fazer, é o livro que tenho, esse livro é o que ele é. Gosto muito dessa tautologia, dessa aceitação.

Ambição
Todo poeta é sofisticado. Mesmo aqueles que fingem que não. Porque você está trabalhando com a matéria mais sofisticada de todas, está lidando com linguagem. Você está trabalhando com uma coisa que é em si perigosa, no sentido de que aquilo pode dar em qualquer lugar, é palavra: você pode acrescentar, tirar, tudo aquilo pode ter outro modo de dizer, tudo aquilo pode ser substituído, você tem milhões de possibilidades. A natureza da linguagem é complexa, é vária. E lidar com isso é extremamente sofisticado, como qualquer poeta de cordel, qualquer cantor de repente sabe. O trabalho é artesanal. A Heloisa Buarque de Hollanda perguntou algo como se a poesia é um luxo. Eu digo que não, a poesia quer ser uma coisa essencial, que é o contrário do luxo. A ambição do poema é ser um objeto relevante. O poema de verdade é aquele que se justifica. Que quando existe: “Puxa, esse poema precisava que alguém o escrevesse. Eu fui a pessoa que o escreveu”. Quando você sente isso, é uma sensação esplêndida, espetacular, formidável, é uma loucura. “Eu fiz uma coisa que precisava existir.” De fato você tem a sensação de ser um criador. É para você, não para o outro [que o poema precisa existir]. Ninguém nunca vai saber que você fez uma coisa essencial para elas. Em algum momento pode ser até que elas te digam ou sintam isso. Mas quando você faz e sente isso, a sensação é de que aquilo é para o mundo. Ele não precisava existir para mim; ele precisava existir no mundo. Entre os objetos da nossa existência, faltava aquele. E o negócio do poema que termina, quando você percebe que ele acabou, é um pouco isso. Quando você começa a escrever o poema, quando faz um verso — que não precisa ser exatamente o primeiro verso, pode virar o verso do meio —, é como se estivesse dando o primeiro passo em direção ao poema. E a questão é: é preciso reconhecer quando se chega àquele poema em direção ao qual você deu o primeiro passo. Ou seja, em algum momento você não está mais fazendo o poema que quer; está fazendo o poema que tem que ser feito. Então, é preciso entender em que momento chegou ao poema.

“A literatura não conforta. Ao contrário — ela perturba, aciona coisas, cria algum tipo de insatisfação. Por isso é uma aventura sem fim.”

Inspiração
Lembro de ouvir alguém falar a palavra “debrum”. Debrum. E fiquei encantado. Põe-se o debrum no tecido e faz um acabamento. É uma coisa que delineia, define, dá um acabamento. Eu falei: “Vou fazer um poema para enfiar ‘debrum’ de qualquer jeito”. Não um poema para o debrum, como tema: “Ó, o debrum…”. Tinha que entrar a palavra. Ao mesmo tempo, é uma palavra que no poema soa como “ih, o cara fez o poema para botar ‘debrum’” — não podia ser isso. Então, tinha que colocar muito sutilmente. Passou muito tempo, mas fiquei com aquilo na cabeça. E acabou que é um poema de amor e termina: “um debrum”. Fica sutilmente o debrum, ao mesmo tempo é a última palavra do poema, então termina com aquela cara de grand final, mas não parece que fiz um poema para usar “debrum”. Se você lê, pensa: “O cara estava apaixonado, fez um poema de amor e ‘debrum’ apareceu lá”. Não. O que moveu o poema não foi o amor, foi o debrum. Aí parece que é tão frio, tão intelectual, tão planejado… É. Mas em algum momento entendi que ali era a hora do debrum. Esse momento é uma inspiração. E o momento em que digo: “Nossa, essa palavra é incrível, vou usá-la”, isso também é uma inspiração. Não significa que você vá saber utilizá-la naquele momento. Pode levar muito tempo. Dia desses, estava contando a história do Bandeira com Pasárgada. Bandeira ouviu essa palavra, ficou com ela na cabeça e falou: “Um dia vou escrever sobre Pasárgada”. Nunca escreveu, não conseguia. Aí ele conta que um dia, muito aporrinhado da vida, veio o verso: “Vou-me embora para Pasárgada”. Ele levou sei lá quanto tempo para que a tal Pasárgada acontecesse. Quando é que houve a inspiração? Houve no momento em que ele pensou “essa palavra vai me render um poema” e voltou anos e anos depois, quando ele disse “Vou-me embora para Pasárgada”, danado da vida, querendo dar um chute em tudo e precisando ir para algum lugar imaginário. Então, acredito totalmente — acredito nem é uma palavra boa, parece mística. Eu valorizo a inspiração. Existe a inspiração. A questão é que não tem nada a ver com você estar parado e de repente ela chega.

Stand by
Esse estar parado pode ser o aparentemente parado. Sempre comparo com aquela luzinha do aparelho em stand by, que se você aperta um negócio, aquilo acende. Ele não está nem ligado, nem desligado. Esse é o estado de quem está disponível para a poesia. E isso não é só para escritor, é na vida, para todo mundo. Você pode estar mais ou menos ligado, e aí, em algum momento, alguém aciona aquilo. Se você estiver com o stand by ligado, o mundo aperta um negócio e tchum, aquilo acontece. Se estiver desligado, podem acontecer milhões de coisas na sua frente que não resulta em nada. Na minha vida e na de todo mundo acontecem milhões de coisas — algumas extraordinárias e outras muito ordinárias — que não produzem nada, que não vão dar poema nenhum. E às vezes algumas extraordinárias e ordinárias podem produzir um poema. E quando isso acontece, aí você precisa trabalhar. A minha fórmula, da porcentagem da transpiração e inspiração, é a seguinte: 100% inspiração. E 100% transpiração. Idealmente, quando escreve, você não sabe o que é trabalho e o que é inspiração. Uma coisa é a outra. Quando está escrevendo, você tem a inspiração ali, enquanto trabalha; quando põe uma palavra e aparece outra. E aparece porque você está ligado, no ritmo. Poesia é sobretudo ritmo. É mais do que tema, do que qualquer outra coisa. É mais até do que som. É ritmo. É um pulso. Quando a palavra vem, aquilo é trabalho, é no processo de fazimento que aquilo acontece. E é a tal inspiração, a tal palavra que surge e você não sabe de onde. Ora, de onde ela surgiu? Do trabalho. E o que é o trabalho? É fazer com que a inspiração, com que a coisa que apareceu, ganhe corpo. Então, essas coisas não se separam. E o melhor poema, o que se justificará no mundo, é o que nasce assim. Há poemas que são hiper planejados, que são mais frios. Podem até ficar bons e ninguém vai perceber o quanto eles são frágeis, mas desconfio deles. E aqueles que são do arroubo, também nem sempre se sustentam. No mais, você não sabe de nada. Os poemas andam, estão no mundo. Você não sabe do que as pessoas vão gostar, o que elas vão ler.

Formas possíveis
Não há uma linha [na poesia brasileira contemporânea]. Quando apareci, vim junto com um bolo de gente — negócio dos anos 1990. Muito curiosamente, foi uma geração que surgiu um pouco na contramão da poesia marginal dos anos 1970, que era muito despojada, numa corrente contra-cultural. E o pessoal dos anos 1990, no qual me incluo, veio exatamente com uma espécie de poesia cultural: muitas referências, intertextualidade, muita conversa com artes plásticas, fotografia, uma coisa mais intelectualizada. E uma poesia muito sofisticada, com vocabulário, era muito bacana você colocar no meio uma palavra rara… A Heloisa Buarque de Hollanda sacou que ali tinha uma cara. Ela juntou o [grupo] dos 1970 e juntou o dos 1990. Ela sacou os dois momentos. A anotação rápida, o verso ligeiro e coloquial, a experiência urbana. E ela sacou que os anos 1990 tinham uma outra cara — sacou que tinha uma cara, sobretudo — e reuniu numa antologia, chamada Esses poetas, na qual estou. Só que de lá para cá, o melhor negócio é que não tem mais cara nenhuma. Como não tem mais um ideal de poesia, você pode fazer como o Paulo Henriques Britto, que faz poesia metrificada, rimada, com acentuações nos versos; aquilo é de um plano, de uma arquitetura doentia — e é espetacular; e você pode fazer neoconcretismo, como o Arnaldo Antunes; pode fazer versos livres, como o [Antonio] Cicero, a Angélica Freitas, que é uma conversa, uma fala quase que sem limite no papel, sem você saber exatamente por que o verso está cortado ali e não depois, meio prosa. Então, nenhuma dessas formas está mais certa que outra. São todas formas possíveis.

Supermercado poético
Há algum tempo saiu na revista piauí um texto da professora da USP Iumna Maria Simon em que ela cita, a partir de uma entrevista que concedi, que hoje você pode lançar mão de qualquer forma, porque não há uma forma certa — nem nada está certo nem errado. Não existe nada do tipo: “Não pode fazer soneto”. Pode fazer soneto, pode usar rima, pode não usar, pode fazer qualquer coisa. E a partir disso ela escreveu um texto bombástico citando uma frase minha que dizia isso no meio de uma entrevista enorme. É um texto lastimável, onde ela diz que eu tratava a poesia como se fosse uma coisa — grosso modo — de mercado: você vai lá, pega um produto e compra. Resultado: ela está absolutamente errada. Absolutamente. O que eu queria era chamar atenção exatamente para a liberdade, para não ter mais uma verdade a seguir, que é a melhor coisa a que qualquer um pode aspirar. O Antonio Cicero publicou seu primeiro livro, Guardar, já na maturidade, com uns cinqüenta anos de idade. E escrevia muito antes, desde garoto. Tanto que o livro chegou muito depois de o Cicero já ser um poeta consagrado da canção popular. E qual a razão que ele sempre dá para ter publicado tão tardiamente? Ora, porque escrever versos como ele gostava de fazer, versos com rimas — o Cicero sempre foi um leitor dos clássicos latinos, da antigüidade clássica, era o que ele gostava e ele escrevia movido por aquilo —, era uma espécie de crime, porque até então vigorava uma poesia de vanguarda, da fragmentação do verso, da exploração do espaço gráfico, a morte do verso, o concretismo. E o Cicero, recolhido à sua antigüidade clássica, nunca teve coragem de publicar. Porque ali existia uma espécie de normatização, uma espécie de gramática do que podia ou não ser feito. É claro que qualquer um estava livre para publicar o livro que quisesse. O Cicero podia ter publicado se quisesse — isso é outra história. Agora, a questão é que ele se sentia pressionado por aquele ambiente intelectual, literário, da poesia que vigorava naquele momento. Não acho ruim que naquele momento tenha vigorado a poesia concreta, que foi importantíssima para a poesia brasileira. Não discuto a importância, que foi enorme, é enorme ainda hoje e continuará sendo. É um capítulo incontornável da história da poesia brasileira. Ao mesmo tempo, o que a gente vive hoje é uma outra coisa, é a liberdade de poder optar pela forma que lhe convém. Mas não é que você vá à prateleira de um hipotético supermercado poético e irresponsavelmente: “Hoje farei um soneto”, e aquilo não tem nada a ver com você. Ao contrário. Todo poeta, todo escritor se depara com a obrigação de uma forma, porque não existe nada sem forma. Quando se tem a tal inspiração, seja o debrum, seja Pasárgada, você precisa transformar aquilo em alguma coisa, precisa chegar a um resultado. Então, você está obrigatoriamente escolhendo uma forma. Ela nasce de uma necessidade sua. Ela é necessária. Nasce organicamente, é parte do seu organismo mental, físico. A relação é muito erótica, ao mesmo tempo é espiritual, é um conjunto de coisas. Agora, existe a tradição, com a qual você está ao mesmo tempo conversando. Então, embora seja uma disposição interna que te leva a escolher esta ou tal forma, ao mesmo tempo que está trabalhando, produzindo, você está inevitavelmente considerando toda a tradição. Cada vez que escreve um poema, você conversa com Homero e com Chacal. Do Homero ao Chacal. Ainda que não conscientemente — porque claro, com toda essa tradição, a cada vez que for escrever um poema, você fica imobilizado e não faz nada. Mas tudo isso existe para um poeta e tem peso. Não se escolhe de modo irresponsável. Ou se você escolhe como quem vai ao supermercado, que vá ao supermercado e escolha o produto de maneira mais responsável. Nem a ida ao supermercado deve ser tão irresponsável como quis sugerir a professora Iumna Maria Simon.

“Um poema do Gullar ou um livro da Clarice não me ensina algo para usar na vida. Mas é uma ativação afetiva, intelectual. E isso é muita coisa.”

Disposição para poesia
[Poesia] nunca freqüentou [a lista dos mais vendidos]. Não é da poesia. Só na Grécia. Mas já tem um tempo… E lá nem tinha a lista dos mais vendidos. A gente precisa de narrativas. Todo mundo conta dezenas de histórias diariamente. A narrativa está em circulação, está no nosso imaginário. Você se mantém vivo narrando, contando. O laço que você faz com uma pessoa é contando uma história para ela. Metáforas são abstratas, o leitor não pega, as imagens são fluidas demais. Você não estabelece contato. E no Brasil temos uma coisa incrível que é a música popular. Que é tão boa que por muito tempo a poesia ficou mesmo em segundo plano. Ter Vinicius — vou continuar nos clássicos — Chico, Caetano, Gil… Posso pensar também na Dolores Duran. Talvez a minha formação, antes de tudo isso, tenha a ver com a minha mãe cantando para mim. Minha mãe, que mal estudou, cantava: “As flores na janela/ sorriam, cantavam por causa de você”. Isso é alta poesia. Então, a gente ainda por cima no Brasil tem isso a mais. Está muito em circulação essa poesia cantada, que é claro que vai fluir mais facilmente. Poesia é um gênero que precisa de mais atenção. Você lê um poema uma vez e não entende nada. Na poesia moderna, você lê e não entende. Não sabe do que gostou direito, tem que ler uma segunda vez, uma terceira, uma quarta vez. Não pode ler um livro de poemas: “Li”. Um livro de poemas, tem que conviver com ele, demanda tempo, atenção e, sobretudo, uma disposição que é mais do que “vou ler” — é uma disposição existencial. Você tem que estar pronto para viver aquele negócio. Aquilo vai te propor uma experiência de vida. Não é porque são poemas de amor ou de morte. É porque são poemas. É porque ali a linguagem não é a que você usa no seu dia-a-dia. Ali está tudo fora de lugar. Não é sujeito, verbo e objeto. É a subversão da ordem, da sintaxe, dos códigos. Ali é onde as palavras se encontram pela primeira vez. E isso é perturbador.

Popular demais
Só vejo vantagens nessa “confusão” [entre música popular e poesia]. Ela foi desvantajosa, a certa altura, para a carreira literária do Vinicius, que foi muito esnobado pela universidade, pela crítica. Eu sou professor da UFRJ e até quatro, cinco anos atrás não existia uma única tese sobre Vinicius. Isso não corresponde ao seu tamanho como poeta nem à sua popularidade. Só que exatamente porque ele era um poeta popular demais, ainda que isso nunca tivesse sido dito, está na cara de que a questão é: “Se é tão popular, não pode ser bom”. Então, a idéia da poesia como uma coisa para poucos, como luxo, não combinava com esse negócio de um poeta de que todo mundo fala. Ao mesmo tempo, foi essa popularidade do Vinicius, essa junção cantor-sambista, que fez com que ele se mantivesse como poeta na memória das pessoas. Elas podem até não saber os sonetos inteiros, mas sabem meia dúzia de poemas ou de versos soltos. E mesmo que não conheçam os livros, conhecem o nome, há um carinho por Vinicius, os livros são lidos, as escolas adotam, estão nas coletâneas. Então, ele se manteve como autor mesmo com todo o desprezo que a universidade lhe deu. E eu posso dizer isso tranqüilamente porque vim de uma universidade onde Vinicius de Moraes não estava nem sequer na bibliografia. Onde há pouco tempo, nos concursos de ingresso para mestrado e doutorado, saltava-se Vinicius e continuava-se em frente. Não existe Vinicius de Moraes. Esse poeta nunca existiu. E como nunca existiu, para mim ele também nunca existiu. No meu cânone, ele nunca esteve. Mas ele se impôs. Hoje sou um cara que cuida dos livros do Vinicius com o maior carinho, alegria, respeito e admiração. Agora voltou: tenho uma série de orientandos que fizeram e estão fazendo teses sobre Vinicius, tem todo um negócio em torno dele que ressurgiu. Posso dizer com muito orgulho que ajudei muito, sou um dos responsáveis por isso. Mas Vinicius não me deve nada, estou tentando fazer algo por esse poeta incrível que por tanto tempo ignorei. Mas ignorei porque a universidade não queria saber de um poeta que falava de lua, mar, que fazia soneto e samba. Então, para ele foi desvantajoso. Mas para nós é só vantagem. É só vantagem que uma dona de casa semi-alfabetizada possa cantar Dolores Duran e Vinicius.

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