Foto: Matheus Dias
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Beatriz Bracher

A quinta edição do Paiol 2010 contou com a presença de Beatriz Bracher

No dia 19 de outubro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu a escritora Beatriz Bracher. Autora de romances como Azul e dura, Não falei e Antonio, e do livro de contos Meu amor, Beatriz nasceu em São Paulo (SP), em 1961. Formada em Letras, foi editora da revista de literatura e filosofia 34 Letras e uma das fundadoras da Editora 34. Também escreve para o cinema, assinando o argumento do filme Cronicamente inviável e do roteiro do longa-metragem Os inquilinos, ambos do diretor Sérgio Bianchi. Na conversa que teve com o escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda no Teatro Paiol, em Curitiba, Beatriz Bracher falou sobre sua formação como leitora e a importância de haver trabalhado como editora durante quase uma década, explicou por que julga o conto um gênero “mais elevado” que o romance (embora não prefira um ao outro), analisou a violência contemporânea e a forma como (não) a absorvemos e previu uma longa vida ao livro de papel. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.

• Desordenar para reorganizar
A arte pode transformar o mundo ou não, como muitas outras coisas, como as idéias e a política. Mas não acho que ela tenha uma proeminência nesse aspecto. Ela pode transformar o mundo simplesmente por fazer parte dele. Ela está aí. Agora, essa crença de que a arte transformaria radicalmente o mundo, que criaria um novo homem, que nos traria uma espécie de iluminação — não acredito nisso. Por que é importante ler? Não sei. Acho que ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. Para você ser os outros e habitar outros lugares durante o tempo em que estiver lendo. E, quando você voltar ao aqui e ao agora, a você mesmo, voltará com os olhos muito mais aguçados. Eu saio de um livro sempre muito comovida, ou tocada, ou agressiva. Sempre me transformo de alguma maneira. Fala-se muito que temos uma grande afeição ao caos, que o mundo é informe e que a arte daria forma às coisas. Na verdade, temos pânico do caos. Nós não conseguiríamos viver sem alguma ordem na nossa história. E o que a literatura faz é desordenar um pouco isso, mostrar outras maneiras de organizar nossa vida.

• Carga de honestidade
A literatura tem a ver com a solidão. É uma maneira que tenho de estar sozinha. Uma solidão que, de alguma maneira, compartilho com os personagens de um livro e o seu autor. Quer dizer, um livro sempre tem uma carga enorme de honestidade. Nele, você vê todos os personagens por dentro, tanto as suas coisas ruins como as boas. É um excesso de tudo. De amor, de ódio.

• Bicho arisco
Quando eu era pequena, naquela idade em que as crianças começam a ler Monteiro Lobato, com nove, dez anos, eu achava que ler livros era muito chato. Eu lia revistinhas, mas livros não. E teve uma época em que viajei para a Alemanha, numa espécie de intercâmbio. Morei lá uns dois meses, aos 11 anos, com uma família alemã amiga dos meus pais. Como senti muita falta deles, do Brasil e de tudo, me arrumaram um livro em português, O boi aruá, do Luís Jardim. E isso também teve a ver com a solidão. A primeira experiência forte de leitura, para muitas pessoas, teve a ver com algum momento difícil de suas vidas. Pois naquela hora, eu não só comecei a ler, como uma necessidade, mas comecei também a escrever. Eu escrevia cartas muito longas. Relatos, histórias, coisas assim.

• Histórias com matemática
Sempre gostei muito de contar histórias para os meus primos pequenos. E o gostar de contar histórias veio quase que antes do gostar de ler. Minha mãe sempre me contou muitas histórias, dela e da infância dela. Ela vem de uma família brasileira e libanesa de dez filhos, então sempre teve muitas histórias, e eu adorava ouvi-las. Já meu pai era de uma família suíço-alemã. Quanto às histórias que eu contava, acho que eu as inventava. Não me lembro bem. Quase sempre tinham a ver com algum menino que fugia de casa e levava na mochila três chocolates, não sei quantas balas. Sempre tinha alguma coisa de matemática, não sei por quê. Cinco camisas. Quatro cuecas. Eu gastava muito tempo nessa ordenação. E tudo sempre acabava bem.

• Adoração
Meus pais foram morar em Brasília quando eu tinha 14 anos. Lá, comecei a ler mais, comecei a ler Kafka e Borges, comecei a me interessar por literatura mesmo, e não só por histórias. E aí a literatura, para mim, passou a ser algo para se pensar o mundo. É engraçado: a partir de determinado ponto, passei a adorá-la. Ela me instigava. Abrir um livro novo era uma coisa muito boa. E comecei também a escrever, publiquei um conto na revista Escrita, aos 15 anos. O Luiz Ruffato, que estava fazendo um artigo grande sobre as revistas literárias da década de 70 (série publicada no Rascunho), até encontrou esse meu conto por lá (na época, Beatriz assinava como Bia Bracher). E também havia a revista José, o Suplemento do Estado de S. Paulo, que era ótimo, e depois o Folhetim, da Folha. Eu lia isso tudo, eram coisas que me atraíam. E comecei a escrever.

• A coisa mais importante do mundo
Fui mãe muito cedo. Com 18 anos. Acabei o ensino médio e fiquei oito anos só como mãe. Tive três filhos e só depois é que fui entrar na faculdade. Durante esse tempo todo fiquei escrevendo, mas eu tinha muito medo de mostrar minhas coisas. Talvez tivesse muito medo de querer ser escritora. Eu escrevia, mas admitir isso, para mim, era difícil. Fui fazer a faculdade de Letras porque achava que ser escritora era a coisa mais importante do mundo — e talvez por isso mesmo achasse que nunca seria uma escritora. Aí comecei a trabalhar na 34 Letras (revista de literatura da qual foi editora, de 1988 a 1991) e, mais tarde, na editora 34 (de 1992 a 2000). Depois, em 2000, com 39 anos, já tinha na cabeça a idéia de que, aos 40, eu estaria fazendo o melhor que podia dar de mim. Então me dei conta de que não era ser editora.

Foto: Matheus Dias

Sou mais artista quando limpo do que quando escrevo, porque a limpeza é uma reescrita, e aquele texto já está mais fora de mim, já é algo diferente.

• Relato e criação
Quando saí da editora 34 e resolvi dar um tempo, também não sabia se era escrever o que eu queria. E propus, a mim mesma, tirar um ano fora e tentar escrever um livro. Evidentemente não consegui escrever um livro em um ano, mas consegui ver que era isso o que eu queria. Gostei muito de me dedicar a escrever. E vi que, quando escrevia para publicar, eu tinha um compromisso com a verdade muito maior do que quando escrevia para a gaveta. O que é curioso, porque, teoricamente, deveríamos ser mais espontâneos em trabalhos que os outros não vão ler. Mas espontaneidade, em relação à escrita, não tem nada a ver com verdade. Quando você é espontâneo — ou social, como aqui —, de alguma maneira você sempre vai falar o lugar-comum, até mesmo para conseguir se comunicar com os outros. Trata-se de um relato de suas experiências. E, quando você escreve para mostrar, trata-se da criação de uma experiência. Então, quando falo sobre a verdade, essa verdade não tem relação nenhuma com a realidade. Falo sobre a verdade que um texto será capaz de criar em quem o ler.

• Coragem para escrever
A experiência de ser editora me ajudou muito. Eu recebia muitos originais para ler. Tinha alguns bons. A maior parte era ruim. Algumas pessoas não eram escritoras, eram enroladoras; outras até eram escritoras, mas seus livros não eram bons. É engraçado, é diferente, você sente que ali tem algo forte, mas… Aí pensei: “Poxa, se eu fosse uma dessas pessoas já seria muito legal. Quem disse que serei uma boa escritora? Não sou eu quem vai decidir isso. Tenho que escrever. Tenho que tentar”. Então, aquilo me deu coragem, no sentido de que havia muita gente se arriscando, dando a cara a bater para ser escritor, e no sentido da modéstia também. Você não vai escrever o melhor livro do mundo, mas você pode escrever um livro bacana.

• 50 mil exemplares
Se o país está melhor ou pior, eu não sei. Tenho a impressão de que há mais gente lendo, e isso é muito bom. Sinto que ler já não é uma coisa tão pedante, como era antigamente. Sempre foi um problema muito grande, para quem gosta de ler, ser considerado meio chato. Era como se a gente lesse só para se mostrar, quando, na verdade, ler é um dos maiores divertimentos que existe, uma coisa muito viva, que não tem nada a ver com pedantismo. E na gestão do Fernando Henrique houve uma mudança no sistema de compra de livros pelo governo. Antigamente, o governo só comprava livros da Ática, da Moderna, dessas editoras que produziam para as escolas. Depois, passou a comprar livros de literatura para as bibliotecas das escolas, e se criaram sistemas em que muitas editoras pequenas puderam entrar. Essa política se manteve no governo atual, e ajudou muito as pequenas editoras. Porque, para o governo, você vende 5, 8, 12, 50 mil exemplares do mesmo livro. É claro que você o vende por um preço muito menor, mas é uma entrada de dinheiro muito importante para a sua editora.

• O bonito no romance
O romance é bacana exatamente porque é mais comezinho. Ele dura muito tempo, muitas páginas, e é aquela mesma história, com os mesmos personagens. Por mais burilado que seja, ele sempre tem uma largueza, é mais sujo, não tem muito jeito. Você demora alguns dias para lê-lo. Ou muitas horas. E ele vai te acompanhando. Você não tem como apreendê-lo de uma vez só, e nem o autor tem como escrevê-lo de uma só vez. Então, sempre que um autor está revisando um romance, ele lê 30 páginas e as revisa, e lê outras 30, e as revisa, mas nunca vai conseguir ler e revisar 200 páginas de uma vez. Isso é muito bonito no romance.

• O treino do conto
Às vezes, você lê, inteiro, um conto de 12, 20 ou 30 páginas. Quando o escreve, você começa e já tem a idéia de como será o seu final. Não é só questão de ser sintético. É que no conto acontecem menos coisas, mesmo. O tempo funciona de forma diferente para a ação. Por isso acho o conto mais elevado. É como se ele precisasse de uma eficácia maior. Ele tem que agir, ele tem que ser mais determinado, mais focado. Só me senti capaz de escrever contos quando senti que tinha um treino maior, quase muscular, de escrever ficção.

• Raquetada
Às vezes, você está há dias naquilo de escrever e apagar e, de repente, escreve algo bacana. Talvez um dia depois aquilo já não seja mais bacana, mas naquela hora pareceu ser. Quando isso acontece, me sinto como o Guga (Kuerten), quando ele faz aquele seu (Beatriz faz a mímica de uma raquetada e a acompanha com um grito) “aahnn!”. Porque é um esforço. Há muita coisa física quando estou lendo e escrevendo. É um prazer grande, físico mesmo.

• Bloco de pedra
Todo dia, escrevo das nove da manhã à uma da tarde. Fora de casa. Tenho um escritório. E, quando falo que escrevo, quero dizer que vou ao escritório; às vezes, não consigo escrever nada. Mas, fora as dispersões na internet, tento me policiar ao máximo. Não me permito fazer mais nada. Às vezes, vou ler outras coisas, relacionadas ao que estou escrevendo naquele momento. Leio e fico anotando. (…) Nunca sei onde um romance vai acabar, e mesmo o assunto de um romance: às vezes, começo com um e desenvolvo outro. Escrevo e limpo muito, gasto muito mais tempo limpando o texto do que com a sua primeira escrita. E sinto que sou mais artista quando limpo do que quando escrevo, porque a limpeza é uma reescrita, e aquele texto já está mais fora de mim, já é algo diferente. Escrever é separar um bloco de pedra. E revisar é limpar, é realmente começar a esculpir aquilo que já está determinado. Só vou poder esculpir aquele pedaço de pedra, não tenho mais muitas opções. É como se o trabalho intelectual, que é o forte para que uma história seja boa, só se iniciasse depois de eu haver escrito uma primeira mão. No conto, isso acontece mais rápido. Quando começo o trabalho de revisão de um conto, já tenho o conto inteiro. No romance, vou fazendo o trabalho de limpeza ao longo do livro. Então, ele vai mudando de caminho.

• Cruel
Não sou pessimista. Mas as pessoas acham que as coisas que escrevo são. Não acho. Meus contos e romances são muito cruéis, às vezes. Ou quase sempre. Mas não é uma coisa que eu sinta que sou. Percebo situações de opressão ou de dominação que outras pessoas não percebem. Sei lá. Eu me ofendo com facilidade. Não é que eu seja cruel. Eu sinto o mundo mais cruel do que as outras pessoas.

• O assassinato em si
Vi, na Bienal de São Paulo, um vídeo com a Clarice Lispector. Era a última entrevista que ela deu. E a Clarice, que escreveu um conto muito bonito sobre o Mineirinho, um assaltante que foi morto com 13 tiros, falava o seguinte: “Treze tiros, quando um bastava”. A revolta dela era com os 13 tiros. Na entrevista, ela contava mais ou menos como havia escrito aquele conto, quando o entrevistador perguntou: “Você acha que esse conto, da maneira como você o escreveu, pode alterar a realidade?”. E ela: “Não, não pode alterar nada”. Ela foi muito definitiva. E eu acho (Beatriz faz uma pausa muito longa)… que talvez possa. Do que é que estou falando naqueles contos (do livro Meu amor), sobre esses casos que envolvem principalmente crianças e velhos (Beatriz se refere a casos com os de Isabella Nardoni e o do menino João Hélio)? Você fica meio sem fôlego ao ver o que o ser humano é capaz de fazer. Como é que pode existir algo tão perverso dentro de você mesmo? E temos um certo prazer em comentar, em acompanhar casos assim. Quer dizer, os meus contos não são apenas uma crítica à mídia. Você também fica querendo ver o Jornal Nacional para saber o que vai sair sobre o caso Bruno, para saber se ele esquartejou a sua vítima ou não, se ele a deu para os cachorros ou não. Há pessoas como eu que ficam vendo televisão e lendo jornal para saber mais sobre essas coisas, e há também os comentários na padaria, e no táxi. E você vai ficando longe da tragédia que realmente aconteceu. Então, escrever esses contos foi quase como tentar recuperar o assassinato em si mesmo. Um pai que, parece, matou a filha. Os assaltantes que arrastaram o menino. Talvez seja uma coisa de reconstituir o crime no que ele tem de bárbaro.

Foto: Matheus Dias

Escrever é separar um bloco de pedra. E revisar é limpar, é realmente começar a esculpir aquilo que já está determinado. Só vou poder esculpir aquele pedaço de pedra, não tenho mais muitas opções.

• A ambição da crônica
Tem o caso daquela menina de 13 anos que ficou presa numa cadeia do Pará junto com vários homens (e que Beatriz aborda em Duas fotografias sobre o natural). Aí já não é ficção, é mais uma crônica mesmo. Os outros textos (do livro Meu amor) são de ficção porque mostram como os personagens vivem aqueles crimes. Não são sobre os crimes. E aí, na medida em que o texto é uma crônica, na medida em que ele tem a ver com jornalismo e tem um compromisso com a realidade, eu esperaria que ele pudesse mudar mais as coisas. Porque a arte muda a realidade de uma maneira diferente — se é que muda. E o jornalismo, a crônica, tem uma ambição mais imediata sobre o que está acontecendo. São duas expectativas diferentes.

• Bracher & Bueno
Nunca fui amiga do Wilson Bueno (1949-2010), nunca o conheci muito bem, mas, quando eu fazia a revista 34 Letras, ele, que editava o Nicolau, me ligou e pediu uma resenha sobre o Macunaíma. Daí, entre nós, houve uma troca de telefonemas e correspondências a respeito. Depois disso, às vezes, a gente ainda se falava, e um dia ele me contou uma história engraçada. Quando ele mandou para a editora 34 o seu romance Meu tio Roseno, a cavalo, eu li e amei aquele livro. Fizemos uma reunião entre os editores, todos decidimos publicá-lo e todo mundo ficou muito feliz. Teve só um negócio: a gente pediu uma orelha para o Benedito Nunes, que demorou muito para entregá-la — mas, pelo Benedito, valia a pena esperar o tempo que fosse, e o texto ficou incrível. Só que o Wilson dizia que a história não havia sido essa. Eu escrevera uma carta para ele falando que tinha adorado o seu livro, fazendo comentários bem minuciosos sobre todas as partes da obra, mas dizendo que, infelizmente, tínhamos muitos livros para aquele ano e para o outro, e que não poderíamos editá-lo. Enfim, eu dizia que não editaríamos o livro, mas que o tinha adorado e, na narração do Wilson, ele ainda estava com a carta na mão quando o telefone tocou, ele atendeu e era eu, eufórica, dizendo que tudo tinha mudado, e que a gente tinha dado um jeito, e que íamos publicar o livro, e logo! Acredito que deva ter acontecido isso mesmo. Se ele contou… (risos) Mas apaguei isso da minha cabeça.

• Editora culpada
Há um livro, não sei o nome do autor, que não me sai da cabeça, mais do que os livros que publicamos na 34. Era de um autor do Paraná, e se passava na cidade de Maringá, se não me engano. Não me lembro da história inteira, mas sei que havia muitas cenas ao longo de um rio, e que as pessoas estavam ocupando aquele território, começando a sua colonização. Tinha um episódio sobre um time de veteranos do qual o Garrincha fazia parte e que ia jogar com o time da cidade. Como o Garrincha já estava muito alquebrado, o beque do outro time, chocado com aquilo, começava a facilitar a vida para ele, mas o Garrincha ficava superbravo com o menino e dava um esculacho nele. É uma cena que me arrepia ainda agora. Era muito bem escrita, muito bacana. E, no final da história, lembro que ainda havia uns discos voadores. Era um livro que se passava em muitos lugares, e acho que devia ser muito bom para eu não me esquecer dele. Mas o fato é que achei que não era bom. Era um bom escritor, era uma boa história, mas era como se não estivesse pronta. E escrevi uma longa carta ao autor, dizendo o que eu achava que devia ser mudado. Alguns meses depois, recebi o livro de volta. O autor tinha realmente alterado algumas coisas, e não lembro, agora, se achei que ainda não estava bom, ou se os outros três editores é que não gostaram. Só sei que a gente não editou o livro, e senti muita culpa por causa disso. Aquele autor havia trabalhado em cima das minhas orientações. (…) Depois que aconteceu isso, eu respondia aos autores falando apenas “Nós não vamos editar o seu livro”. E só sugeria mudanças quando nós íamos editar o livro de qualquer maneira. Porque aquela foi uma experiência muito ruim para mim. E, para o autor, pior ainda. Provavelmente aquele livro, de primeira, já podia ter sido editado, porque era bom. Isto é o duro de ser editor: está na sua mão. Esse cara poderia ter uma carreira de escritor, poderia ter outros livros, e por causa do que aconteceu, pode ter se desviado, desistido, desanimado. Então, eu ouço muito os editores, é bom trabalhar com eles, mas quando você tem certeza de que a palavra final vai ser sua.

• Outra coisa
Tecnicamente, não sei muito bem como vai ser. Sempre haverá o livro de papel. Acontece que o livro de papel é muito mais caro que o eletrônico. E, se você tiver que diminuir a tiragem do livro de papel, pois muita gente passará a comprar o eletrônico, o de papel vai ficar cada vez mais caro. As tiragens serão menores e o preço unitário será maior. O livro de papel passará a ser um fetiche. Tenho a impressão de que não estarei mais aqui quando chegar essa hora, acho que o processo será realmente lento. Gosto muito de ter livros, é a coisa da posse, o meu livro. Não gosto de emprestar dos outros, e nem de emprestar os meus. No meu livro eu mexo, o meu livro eu quebro, escrevo em cima dele. Agora, não acho que o suporte altere o texto ou a leitura. Principalmente essa tela opaca, que alguns amigos meus (eu nunca li) dizem que é confortável. Dizem que é gostoso ler nela. Então, não acho que vá ser uma grande revolução — só quando tivermos livros interativos, livros que poderemos “prolongar” para outros lugares, por outros caminhos. Mas daí o livro será outra coisa, e não a literatura que a gente conhece hoje.

• Além do suporte
Um texto de Shakespeare em papel-jornal ou papel cuchê, numa edição tal ou qual, é um texto de Shakespeare. É aquilo. Está além do seu suporte.

• Um crime
Hoje em dia, o número de brasileiros que têm acesso ao computador é enorme. A internet aumentou o nível de leitura das pessoas porque, diferentemente da televisão, muito de seu conteúdo é feito de letras. Tem muita imagem, mas você lê muito. E também escreve. No Twitter, no seu blog, em seus e-mails. Dei aula numa escola de jovens e adultos na periferia e, quando queria que as pessoas lessem um conto da Clarice Lispector, era só entrar na internet e imprimi-lo. É pirataria. Você não está pagando direito autoral para ninguém, temos que achar uma solução para o problema, claro, mas é um crime não aproveitar isso. Você dá uma dica muito pequenininha para os adolescentes e, de repente, eles já estão lendo Goethe e Camões. E são pessoas que não têm um livro em casa. Isso é de uma beleza — o que a internet está possibilitando de difusão da literatura.

Foto: Matheus Dias

Um texto de Shakespeare em papel-jornal ou papel cuchê, numa edição tal ou qual, é um texto de Shakespeare. É aquilo. Está além do seu suporte.

• A persona e a obra
Da primeira vez em que fui chamada para falar em público (na Flip de 2005), fiquei muito aflita. A persona do autor é difícil. Isso aqui não é algo que estou inventando. Apesar de eu saber que, se a gente for sair agora, tomar um café ou uma cerveja, serei diferente do que estou sendo aqui, e talvez eu vá ser menos honesta do que estou sendo aqui. Porque, de alguma maneira, este é um momento especial, no sentido de que estamos aqui especificamente para vocês me ouvirem, para eu falar sobre o meu trabalho. Não é uma conversa. É um momento que se criou para algo bastante específico. Estou falando aqui porque é essa a idéia deste momento e deste lugar. Só que não tenho a capacidade de rever o que estou falando. Não tem revisão, não posso limpar. Então dá bastante medo, ainda mais que o que digo sairá escrito depois. É pior ainda. E tem coisas que falei aqui e que já falei antes. É esquisito ouvir-se de novo falando essas coisas, parece que elas vão perdendo a sua verdade. Apesar de não perderem. São coisas que aconteceram. Mas eu gosto disso. Tem coisas que eu só penso porque me perguntam. Eu gosto de discutir literatura, e este é o momento bom de discutir. E, se tenho que discutir a minha, isso me obriga a pensar mais. Também descobri que gosto de ver autores falando. Na Flip, eu achava que isso era meio que um fetiche, mas descobri que, ao ver um autor falando, principalmente se você já o leu, você o entende melhor. Apesar de ser muito perigoso tentar ler um livro com a chave da vida do autor — e isso está ficando muito recorrente. Há artigos sobre um autor, entrevistas com um autor, mas cada vez menos resenhas ou discussões sobre seus livros. Milton Hatoum, por exemplo, um superescritor, dá muito poucas entrevistas. Então você vê poucos comentários sobre os livros dele, a não ser quando esses livros saem. Acho isso um perigo. A persona do autor será necessariamente menos interessante que a sua obra.

O texto abaixo foi enviado por Beatriz Bracher ao Rascunho via e-mail, um dia depois de nosso encontro no Paiol Literário.

P. S.: Por que é importante ler?
No nono e último círculo do Inferno, da Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do “primeiro pranto, qual viseira de cristal”, congelam-se depois de inundar “do olho a cava inteira”. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros. 

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