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Ana Paula Maia

A terceira edição do Paiol 2011 contou com a presença de Ana Paula Maia

No dia 5 de julho, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu a escritora Ana Paula Maia. Nascida no Rio de Janeiro, ela é autora dos romances O habitante das falhas subterrâneas (2003), A guerra dos bastardos (2007), Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e do recém-lançado Carvão animal (leia resenha na página 6). Em 2006, publicou o primeiro folhetim pulp da internet brasileira em 12 capítulos. Tem contos em diversas antologias, entre elas 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004) e Sex’n’Bossa (Itália, 2005). Na conversa com o jornalista Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, Ana Paula Maia falou de como a literatura pode interferir na formação do caráter, da ficção feminina, da produção ficcional brasileira contemporânea e de como a literatura pode ser usada para extrapolar a realidade, entre outros assuntos. Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.

• Do repúdio à escrita
A literatura, em primeira instância, é um encontro muito casual. Para todo mundo é muito casual. Começar a ler, pegar um livro, não ter nenhum compromisso. Você não está racionalizando nada quando abre um livro. Simplesmente vai folhear, vai ler. A literatura vai entrando na sua vida cotidiana. Ela pode transformar e melhorar o caráter. Acho que o meu caráter foi muito melhorado com a literatura. Isso é uma experiência minha. Comecei a ler aos dezoito anos. Fui alfabetizada bem antes, mas comecei a ler mesmo e com vontade aos dezoito anos. Antes disso, não dava tempo, a minha cabeça de adolescente não me deixava sossegar para ler. Mas aí, aos dezoito, comecei a ler muito. E tudo o que não havia lido antes. E o meu caráter foi sendo transformado. Eu tinha um diálogo tão grande com a literatura que não tinha vontade de encontrar ninguém, sair, ter amigos. Não precisava mais. Realizava-me com aquele mundo de palavras. Comecei a ler mais ensaios, filosofia, do que ficção. Já tinha um encontro tão importante com aquilo que não sentia mais falta de outras coisas. Fiquei uns três anos assim. Me encontrar com a literatura e depois voltar para o mundo normal foi um processo difícil. Foi um impacto, foi estranho. Não queria encontrar ninguém, não queria fazer muitos amigos. Por que vou lá, sair e encontrar pessoas? Por que, se o que tenho aqui do meu lado já me dá tanto, já me responde tanto? Meu caráter passou por um processo que me fez ver o mundo de maneira muito diferente a partir do momento em que comecei a ler. Aos dezoito anos, a literatura foi um grande divisor de águas. Tanto que comecei a escrever aos vinte e um anos. Levei uns três anos consumindo, passando por um processo, para começar a escrever. Pela minha experiência pessoal, acho que a importância da literatura na vida cotidiana foi uma mudança de caráter. A minha relação com o mundo foi completamente mudada a partir daí. Fiquei uns três anos muito avessa às pessoas. As coisas do lado de fora do meu quarto não tinham muito interesse. Lia quatro livros ao mesmo tempo. Fui voltando aos poucos. Achava todo mundo muito idiota, todos em um nível muito baixo. Achava tudo em um patamar muito baixo e tudo muito estreito. Isso foi importante até para chegar à literatura que comecei a fazer. Esse processo de ser bombardeada por tantas questões intelectuais, de tanto ser alimentada, me causou um afastamento da mediocridade do mundo — porque o mundo normal é medíocre, muito mediano. As pessoas normais me incomodavam, eram poucas, eram pequenas. Fiquei com um ar arrogante. Era estranho porque eu não sabia lidar com aquilo. Mas tive um processo de retorno. Parece que aquilo foi assentando em mim, aquelas novas idéias, aquela percepção nova do mundo. Ao voltar a olhar para o mundo e para aquilo que passara a repudiar, comecei a gostar. Tudo isso tem muito a ver com o que comecei a escrever sobre pessoas simples, sobre a miséria humana. Aquilo que repudiei por um tempo, passei a olhar de uma maneira diferente. A literatura é um divisor de águas para mim.

Queria ser um brutamonte. Se fosse homem, seria um brutamonte. Seria grandão, fortão. Viraria uma laje, faria uma obra, levantaria uma parede. Acho que ia gostar disso. Como não posso, escrevo.

• Engasgada
Comecei a escrever assim: um dia entrei em férias da faculdade, levantei e me senti engasgada. Sentia alguma coisa engasgada. Comecei a escrever e fui escrevendo. Escrevi meu primeiro romance assim. E não parei mais de escrever. Foi um lugar em que entrei e de onde não consegui mais sair. Antes desse período, mais ou menos aos doze ou treze anos, havia me interessado por leitura, na biblioteca do colégio. Na infância, também havia tido contato com a história narrada. Minha mãe e minha avó me contavam muitas histórias. Gostava muito de ouvir histórias. Eu tinha disquinhos de histórias. Então, a história narrada era muito importante. Na adolescência, perdi isso. Fiquei muito mais ligada no cinema — era mais fácil ficar sentada duas horas na frente da tevê do que lendo um livro. Acho que os hormônios não me deixavam parar e me aquietar para ler. Antes desse momento mais consistente, tive pequenos momentos de leitura. Leituras muito esparsas, obrigatórias na escola, que fazia sem gostar. Não gostava nada do que me mandavam ler na escola. Minha mãe tinha que ler para mim, me contar a história, para eu não tirar uma nota ainda mais baixa do que já tiraria. Não era uma aluna muito aplicada. Passava de ano raspando. Não estava muito interessada, era muito agitada, muito ativa. Queria mesmo era correr na hora do recreio, prestar atenção no que estava acontecendo. Era um momento de muita criatividade para mim. Não podia falar nada que me dava um surto de criatividade, começava a vir histórias. Acho que dentro de uma repressão do “não pode” foi quando comecei a criar. Estudava numa escola que tinha rigor militar. Então, ali era maravilhoso porque eu tinha idéias boas. Tinha facilidade de ter boas idéias. Tive esses pequenos sinais, mas nada tão consistente quanto aos dezoito anos. Não sei por que foi nesse momento. Acho que estava cansada, estava saindo da adolescência, entrando na faculdade. Sentia sede de alguma coisa. Tudo ao meu redor era pouco. Tudo era pequeno, mesquinho. Achava tudo ruim. Um dia, peguei uns livros da prateleira de casa. Minha mãe é professora. Fui lá, puxei um, puxei dois, puxei três, e ali comecei a ler o que caísse na minha mão. Eu ia lendo, lendo e aquilo ia me alimentando. Eu pegava caminhos. De um livro, pegava bibliografia para outro. E assim fui construindo um ritual de leitura.

• O primeiro jorro
Comecei a ler livros sobre filosofia, filosofia oriental. Peguei esse caminho. Acho que foi porque era o que tinha lá em casa. Platão foi um autor que me tocou profundamente nesse início de leitura. Primeiro, li a biografia dele. Passado um tempo, consegui comprar as obras, livros, edição de bolso, os Diálogos. Diálogo é uma coisa de que gosto muito. Foi fundamental ler esses diálogos de Platão. Gosto muito do diálogo na literatura. Acho que há uma dificuldade em se criar diálogos na literatura. Tem autores que acham que o diálogo não é um bom sinal. Eu gosto muito, justamente porque ele traz à tona coisas do personagem que o autor não conhece. É naquele diálogo que brotam muitas vozes, muitas coisas novas. Coisas até para o rumo da história. Um diálogo, uma reação de um personagem, leva a história para um lugar que, às vezes, você não tinha pensado. Para mim, o diálogo tem esse poder — não só de me permitir conhecer mais do personagem, mas de ter novos rumos possíveis para a sua história. O apanhador no campo de centeio foi um dos livros mais importantes na minha vida. O Salinger foi um revolucionário para mim, foi fundamental. O habitante das falhas subterrâneas (2003) faz um paralelo direto com O apanhador. Foi a maneira como comecei a escrever. Comecei a escrever muito inspirada e fazendo um paralelo na obra de alguém. Da minha forma, com as minhas experiências, algumas lembranças, fui construindo o livro. Mas foi o que saiu primeiro. O primeiro jorro, você não sabe se será bom ou ruim, não sabe o que está fazendo.

• Renegar
Quando O habitante das falhas subterrâneas (2003) foi publicado, eu tinha vinte e cinco anos. Comecei a ler aos dezoito anos. Portanto, há um intervalo de sete anos. É muito pouco tempo. Quando escrevi o livro, não tinha delineado nem o que queria para a minha vida, quanto mais para a minha literatura. Escrevi o livro durante a faculdade de Comunicação Social. Estava em férias, tinha acabado de acontecer o atentado terrorista do 11 de Setembro. Lembro que estávamos vivendo no Rio de Janeiro um racionamento grande de energia. Fazia muito calor e não podíamos ligar nada, ventilador, ar-condicionado. Foi um livro muito suado, batalhado. Lembro que ficava escrevendo de dia, navegava um pouco na internet à noite. Era internet discada ainda. É um livro antigo. Olho para esse livro e digo “como é antigo”, faz parte de um outro período. O projeto do livro não havia sido criado. Foi um projeto de férias. Eu tinha dois meses e meio para escrever. E foi nesse tempo que o livro foi escrito. Era uma coisa estranha. Ao mesmo tempo em que gostava daquilo, em que batalhava por aquilo, eu renegava. Iria escrever só de passatempo. Tinha uma coisa de renegar. Dizia: “Isso não é para mim, não. Vou ter um trabalho sério, vou vestir um terninho, trabalhar em uma agência de publicidade, vou ter uma conta de alguém, vou ganhar dinheiro”. E cada vez mais ia me esburacando nesse negócio de literatura. Aí me chamaram para escrever uma peça de teatro, e um roteiro de curta-metragem. Eu falava: “Não. O que é isso? Isso é coisa de adolescente, de quem usa All Star. Daqui a pouco, não vou usar mais tênis nem calça jeans, vou ficar só de terninho”. Eu tinha uma coisa de que aquilo era só um momento. Tinha certeza absoluta. Não era um plano da minha vida seguir na literatura. Fui indo, o meu coração falava mais alto. Os caminhos iam se abrindo para aquilo ali. Quando vi já havia escrito o primeiro livro, já estava publicando, estava escrevendo o segundo. Aí eu falei: “Pronto, estou condenada a esse troço”. Foi uma coisa muito estranha. Tive muito problema para aceitar isso. Meu coração queria, mas a minha mente não. Tive um conflito. Quando publiquei A guerra dos bastardos (2007), comecei a viajar, a trabalhar o livro, a participar de alguns eventos literários. Isso tudo vai dando uma forma à carreira do autor, um embasamento, e chama a atenção da imprensa. O segundo livro é muito decisivo. Para mim foi. É o momento onde você decide: ou vai por esse caminho de fato ou acaba tudo ali. O primeiro é um livro de emoção, de jorro. Tanto que o meu primeiro livro é completamente diferente dos demais. O segundo foi elaborado. Mesmo assim fica a pergunta: será que é esse o caminho?

• Internet
A internet ainda é malvista ao ser relacionada com a literatura. Parece que quebra o cânone da coisa, que tira a literatura do pedestal e a joga num lugar onde todo mundo tem acesso. Para mim, era muito simples. Eu havia acabado de escrever A guerra dos bastardos e iria começar a procurar editora. E tinha também a novela Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. O que fazer com aquilo? Tinha lá um livro guardado e a certeza de que nenhum editor publicaria o Entre rinhas naquele momento, pelo seu teor, pela falta de parâmetros na literatura brasileira. Eu sabia que era um livro que não dava para comparar com nada e nem com ninguém porque era uma coisa muito particular. Achava, e ainda acho, que há um mercado grande, mas há muita dificuldade de publicar autores que extrapolam um pouco. Vejo, às vezes, tudo muito enquadrado, dentro de uma coisa igual, muito parecida. Eu criticamente falava: “O Entre rinhas não é livro para esse momento”. Mas A guerra dos bastardos, eu sentia que era, devido a um verniz literário, a uma retórica e ao tratamento. Eu tinha a visão do que dava para ir primeiro. Então, concluí alguns capítulos de Entre rinhas, avancei, dividi em doze capítulos curtos e decidi colocar num blog fechado, sem possibilidade de comentários, sem a participação do leitor. Era um espaço de veiculação. Criei um blog muito simples e comecei a publicar. Lembro que tinha dois leitores, dois rapazes. Era uma novela que agradava muito aos homens. Aí, um lia e colocava link, ia divulgando na própria web. Isso foi de janeiro a abril de 2006, antes de eu publicar A guerra dos bastardos. De certa forma, a publicação foi muito simples e despretensiosa, porque sempre disse que o Entre rinhas era o meu lado B, era o que eu achava ser o meu lado do avesso. Apesar de não estar ligado exatamente a minha vida, era o texto com o qual mais me identificava, porém tinha medo das restrições mercadológicas. Só que o Entre rinhas começou a fazer uma carreira na internet. Os acessos foram aumentando. O livro passou a ser lido por pessoas bacanas. E não havia revisão ortográfica, gramatical. Havia erros, não tinha um belo layout convidativo. Nada disso. E ainda assim a obra sobreviveu. Acho que a obra precisa sobreviver em qualquer meio, em qualquer lugar, seja internet, jornal ou revista. É uma limitação falar que literatura veiculada na internet não tem qualidade. Tem autor que fala isso. Gente da velha guarda que diz que nem olha para essa literatura de blog. Faz até uma careta. Somos uma outra geração, vivemos com isso. Temos essa ferramenta como divulgação. Não dá mais para lançar um livro e ficar numa toca. Você tem que usar a internet como meio de divulgação do seu trabalho.

Tudo na literatura é uma lente de aumento sobre as coisas. Quando se fala do amor, o amor extrapola. A literatura tem o poder de evocar e trazer um eco muito grande e poderoso.

• Brutamonte
Na literatura, ou em qualquer outra arte, só se faz o que pode, não o que quer. Caso contrário, teríamos vários Machados e Guimarães. Tenho muita dificuldade de escrever sobre mulheres, sobre o universo feminino. Todas as vezes que tento escrever com uma voz feminina fica horroroso. Acho horrível. Nem começo mais. Tenho uma identificação com o universo masculino. Não sei bem onde isso começou. Acho que foi na infância, tinha uma boa relação com os meninos. Tive uma banda de punk rock na adolescência que só tinha meninos. Via muitos filmes sempre com machões. Comecei a ler literatura a partir de autores homens. E gosto dos homens. Tenho uma empatia muito especial por eles, não só de atração pelo sexo oposto, mas uma empatia de gostar. Sempre gostei de ficar perto de homem, ouvir a voz e a conversa masculinas. Sempre as achei mais engraçadas, divertidas do que as de mulher. Quando comecei a escrever, percebi esta empatia muito forte com o universo masculino. Na hora em que soltava a voz narrativa, pensava: “Que estranho, minha voz só sai assim, grossa”. É muito difícil entender de onde vem essa voz, essa relação. Os cenários que trato são diferentes do tratado pela literatura feminina. Há uma convergência na literatura feminina, de interesses e assuntos. É possível perceber. Talvez se encontre no mesmo chá das cinco ou no mesmo psicanalista. É possível colocar personagens de livros de autoras diferentes na mesma sala, na ante-sala do mesmo terapeuta. Você sente uma convergência de histórias de mundos, dramas, amores. Não estou nem um pouco interessada em falar de amor erótico, de amor homem e mulher, de resolver meus problemas. A literatura para mim não é esse mundo, não é esse lugar. É uma coisa completamente diferente. Já sou mulher vinte e quatro horas por dia. Quero ser um pouco homem, um pouco brutamonte. Quero derrubar paredes, cremar corpos, matar porcos. Quero fazer uma coisa diferente. E só posso fazer isso na literatura, porque nessa vida não vou poder fazer isso, não tenho essa possibilidade. A literatura me deu uma possibilidade de ser outra coisa, de ir além desse plano mediano em que vivo. Até mesmo como mulher. Sou extremamente limitada como mulher. Tem mil coisas que gostaria de fazer como mulher mas não tenho composição física para fazer. Às vezes, abrir um pote de palmito é difícil. Gosto de lidar com a minha questão feminina, mas ela me limita terrivelmente. Vejo que os homens vão sempre muito além. Eles caem, levantam, continuam correndo. Jogam futebol, andam de skate. Mulher já tem certos problemas. Tenho certa fragilidade física. Sou extremamente frágil. Viro o pé, tem que engessar; tenho a coluna torta, piso torto. Usei aparelho nos dentes. Uso óculos, sou alérgica a tudo, tenho intolerâncias, alergias. A fragilidade me incomoda. A melhor parte de escrever são os personagens, as possibilidades que a literatura me dá de ir além. Só escrevo porque posso ir além. Se não pudesse ir além, não escreveria. Se houvesse uma lei determinando que eu só pudesse escrever sobre mulher, sobre a minha vidinha, eu diria: “Então, meu filho, vou fazer outra coisa, vou para outros caminhos. Talvez caminhos até mais femininos. Cozinhar será muito mais interessante do que escrever só sobre uma rotinazinha minha, acertando probleminha”. Às vezes, a literatura vai para o campo dos problemas pessoais. Não tenho o menor interesse de resolver meus problemas na literatura. Quero buscar novos problemas, novas questões, ir além. Ser alguém diferente. Queria ser um brutamonte. Se fosse homem, seria um brutamonte. Seria grandão, fortão. Viraria uma laje, faria uma obra, levantaria uma parede. Acho que ia gostar disso. Como não posso, escrevo.

• Tomar partido
Li pouco da literatura das minhas contemporâneas. De algumas, gosto muito mais pela forma, não pelo conteúdo. A Carola Saavedra é uma autora de que gosto muito. Ela tem uma força, uma virilidade boa. As pessoas falam que é preconceito dizer que a literatura tem virilidade, mas não é. É porque tem uma força, uma imposição. Se você não se impõe, o texto fica fajuto, parecendo que você não se decide. Acho que a Carola é uma autora que se impõe. Gosto disso. Ela toma partido. Gosto de autor que toma partido. Acho interessantes os temas que ela trata. Outra autora de que gosto muito é a Lygia Fagundes Telles. Li alguns contos dela na juventude e continuo lendo. É uma autora que sinto que se impõe, tem uma firmeza. Clarice se impõe, tem uma firmeza, porém, às vezes, não gosto muito do universo tratado, mas gosto do texto, da construção literária. Tem muitos autores que leio pelo conteúdo e outros pela construção. Tem autores que conseguem juntar as duas coisas. Quando conseguem juntar as duas coisas, gosto mais ainda. Adoro a coisa de contar uma história, do objetivo narrativo. Essa coisa muito fragmentada, não entendo. Me perco. Gosto do clássico narrativo. Acho que numa história bem contada, você não precisa inventar muito. Gosto muito dos autores clássicos narrativos. O Cormac McCarthy é um autor de que gosto muito. Ele tem essa coisa da boa construção com histórias muito interessantes.

• Destrinchar javalis
Escrevi um conto chamado Javalis no quintal. Está na antologia Geração zero zero, organizada pelo Nelson de Oliveira e que está causando certo burburinho, um bochicho. Acho javali uma coisa incrível — bichão, fortão e porco. História de caçador é muito diferente. Acho muito legal. Quando era adolescente, queria dar tiro, queria aprender e o meu pai não deixou. Depois, perdi a vontade de aprender a atirar. Na vida real, não sou a favor de caçar nem de matar, mas esteticamente é interessante. E, na literatura, posso falar de coisas que não são politicamente corretas ou esteticamente bonitas. Posso falar com certa beleza de um processo de cremação. Um processo de cremação tem a sua beleza também. É um ritual funéreo mas tem a sua beleza. Não gosto muito do convencional, daquela repetição. Vejo essa beleza nas coisas pouco convencionais, meio estranhas. Uma caçada de javalis, acho incrível. Gosto de focar em lugares, em histórias, que estão distantes de mim, mas que me trazem muito. Não me lembro como me deparei para escrever sobre o javali, mas achei o bicho tão interessante. Achei que rendia um grande personagem porque é um animal com características muito interessantes. Não só a questão anatômica e poderosa do javali, mas a questão do caráter, das reações. Como ele vive, como lida com o mundo. É um personagem interessantíssimo que ainda não se esgotou para mim. Ainda tem muito javali que quero destrinchar. Tenho interesse por certas histórias que me agradam pela imagem, pela estética, pelas possibilidades que tenho de andar por aquele universo.

A literatura me deu uma possibilidade de ser outra coisa, de ir além desse plano mediano em que vivo.

• Morte física
A literatura tem o poder de encobrir e também de enfeitar as coisas, de romancear. Ela romanceia muito o suicídio. Dificilmente, você lê um livro em que alguém não morreu, está morrendo ou ainda vai morrer. Alguém que ficou viúvo, a mãe que perdeu o filho, o irmão que morre. A morte é presente na literatura como é na vida. Alguns elementos e questões vão se tornando fundamentais dentro dessa literatura que comecei a construir. Na trilogia O trabalho sujo dos outros, a morte tornou-se uma questão que eu queria tratar. Vinha tratando de mortes que aconteciam, mas não tinha tratado da morte em si. Em literatura, trata-se muito da morte metafísica, mas não da morte física. Carvão animal fala da morte física. É uma coisa prática, dura, objetiva. Quanto mais objetivo e claro, mais se descortinam as coisas, mais você vai tirando o véu das coisas. A literatura tem o poder da retórica, a possibilidade de romancear. Camufla, vai colocando camadas, vai romanceando o suicídio. Às vezes, traz beleza ao que politicamente pode ser errado. Ela tem esse poder. Gosto de tirar camadas para ver o que tem. Quanto mais você mostra para o leitor, mais acaba mostrando também para si. Mais aquilo te traz reflexões. O ato de mostrar, às vezes, é mais interessante do que o de dizer como é. Gosto muito de ir mostrando e pautando. Minhas frases são secas, concisas. É como se eu pegasse uma colher e fosse cavando mais, e o leitor vai entrando na alma dos personagens. Mas não dessa maneira de ser guiado pelo autor: “Olha, vou construir aqui um parágrafo e você vai entrando na alma do personagem. Ele pensa isso, deseja aquilo, a alma dele arde por aquilo”. Não. Vou mostrando, descrevendo, pautando e o leitor vai tirando as suas conclusões e chegando até esse personagem por outros caminhos. Por caminhos que considero mais democráticos nas histórias. Quando escrevo, não estou para o lado de dentro do personagem, estou para fora, assistindo. Tenho essa relação de ver e tentar compreender um pouco. Quando o personagem fala, ouço a voz dele. Cada personagem tem a sua voz. E no texto ele se coloca e vou entendendo mais.

• Um pouco todo dia
Sou rigorosa. Mas trabalho pouco por dia. Não preciso escrever muitas páginas, mas o que escrevo fica. Às vezes, escrevo só quarenta minutos diários. Às vezes, rende uma lauda, duas. Às vezes, escrevo uma hora. De cada livro, tenho um momento. Carvão animal, escrevi pela manhã. Tem livro que escrevo mais à tarde. Depende do momento da minha vida e tem calendário. Eu marco o dia que começo e que termino. Todo dia tenho de pegar o livro. Nem que seja para ler, tão somente, ler as pesquisas. Mas tenho de ler, nem que seja pelo menos o que já escrevi. Minha produção diária é muito pequena. Não sento e escrevo de enxurrada. Minha idéia é firme, mas gosto de conduzi-la aos poucos para saber se é aquilo mesmo, se estou indo pelo caminho certo, para não escrever muita coisa e de repente não ser nada daquilo. Vai sendo plantado de vagar. Por escrever tão devagarzinho, quase não reescrevo. Assim se erra pouco. Como escrevo devagar, vou fazendo uma revisão quase que diária. Esbarro em muitos problemas de pesquisa. Ah, o cara tem uma espingarda. E aí? Que marca, como funciona? Se tiver um pequeno detalhe técnico, por exemplo, no pneu do carro, tenho de saber, não posso falar besteira. Então, vou pesquisar. Às vezes, pesquiso mais do que escrevo. O trabalho de pesquisa leva o dia inteiro; o tempo de escrever é pequeno. Quando termino uma página ou duas por dia, penso: “Nossa, fiz muito”. Mas são páginas válidas que ficam. Raramente, reescrevo. Depois que o livro sai, não o leio mais. Leio só na revisão, depois esqueço. Tem que exorcizar. Deus me livre ficar presa a ele, quero escrever outra coisa. Abandono mesmo.

• Leitores e crítica
Não faço a menor idéia de que tipo de leitor terão os meus livros. Quando escrevo não penso no leitor. Penso no Edgar Wilson, no Wagner, no Palmiro, na cadela Jocasta. Eu penso neles. Penso em Abalurdes, no crematório. Vou botar o cara num crematório, no carvão. Como é que será lá dentro, no desespero. Se explodir, o cara não terá como sair. Penso nisso, nos mortos do livro, como é que vou dar um jeito, nas cenas que virão. O leitor vem depois. Só penso nele quando ele compra. Noto o retorno do leitor melhor do que o da mídia. Não sei se é porque os leitores lêem com mais paixão, com mais afinco, sem compromisso com nada. Percebo que o cara foi, leu com vontade. Pegou essas camadas que foram deixadas de lado, mas não por ele. Ele leu essas camadas do livro. Leitores geralmente me dão bons retornos. Os melhores vieram de leitores. E mais dos leitores jovens. Não tenho nenhum problema com a crítica. Não fede e nem cheira. Tem sempre um que fala muito mal. Acho engraçado quando fala muito mal porque dá a impressão de que ficou com nojo. Dá a sensação de que a pessoa sentiu um repúdio pelo livro. Isso é uma coisa que passei a observar melhor. A crítica escrita para um jornal ou revista é feita por uma pessoa que tem influências, referências muito particulares e uma visão de mundo muito particular, além de um processo de mundo muito próprio. Quando lê um livro, é claro que isso tudo vem à tona — o processo de vida dele, as coisas que leu. Filmes, livros e as coisas de que gosta. Isso acaba influenciando. Estou começando a identificar o crítico. Olha só, ele leu isso, gosta daquilo. Na crítica, ele coloca as próprias referências como leitor. Às vezes falam: “Ana Paula Maia tem influência de Rubem Fonseca”. Começo a rir, porque não tem nada a ver. Mas é porque o crítico só leu Rubem Fonseca como autor mais violento. Então, tem de jogar ali porque na literatura brasileira só tem o Rubem Fonseca escrevendo sobre violência. Crítica tem muito a ver com as associações pessoais. Falando bem ou mal, acho positivo ter crítica sempre. Gosto de ter retorno. Mas deixo ali num estágio morno para que não me influencie nem para o bem nem para o mal. Para não destruir um escritor e também para não colocar o cara mais alto do que ele é. Tem de deixar em banho-maria, em temperatura morna, e vai tocando a vida, a literatura.

• Morte e medos
Tenho uma relação razoavelmente boa com a morte. Não tenho muito medo de morrer. Tenho muito medo da violência. Tenho mais medo da violência do que da morte. Da forma violenta, das formas brutais. Todas as mortes são muito brutais. Em meus livros, todas as mortes são muito terríveis, brutais. Isso sim é uma coisa que me mete medo. E escrevo muito sobre o que me causa repulsa, medo. Tenho medo de porco. Se eu encontrar um porco, saio correndo. Então, o porco está presente. O javali é primo do porco, é um bichão do qual tenho medo. A morte é uma coisa assustadora, mas acaba entrando por ser uma questão muito presente na literatura. A morte violenta é uma coisa assustadora. Tanto que não olho para acidente. Mas sou uma pessoa muito visceral na forma de escrever, na forma de pensar. Às vezes, penso em algumas coisas e digo: “Credo, não deveria estar pensando nisso”. Mas estou e não consigo parar. E a literatura vai um pouco para essas coisas meio estranhas, das minhas estranhezas. É o meu lado negro, meio ruim, assombrado. A literatura tem um pouco disso. Eu gosto desse lado assombrado. Acho que se você escreve, você cultiva mais do que exorciza. Quanto mais escrevo sobre essas coisas, mais estou cultivando escrever sobre elas. Exorcizar seria escrever e jogar fora e não publicar e expor. De certa forma, tenho prazer nisso. É uma curiosidade, uma vontade de esmiuçar a condição humana. Acredito em uma maldade pura. Em pessoas que nascem com uma veia má. Na literatura, ainda não entrei bem nisso, mas é um caminho que acho bom. A investigação, a origem da maldade. O cinema faz muito isso. Tem muitos filmes tratando sobre maldade. Adoro criança má. É uma coisa estranha que não combina. As estranhezas me atraem.

• Violência e trabalho sujo
Minha obra — nem a dos outros autores incluídos na antologia Geração zero zero — não é bizarra. Não lembro de nenhum ali que seja bizarro. O bizarro e essa violência humana são duas características que não passam na minha literatura. Apesar de ter violência, é uma violência de outra coisa, de brutalidade de uma profissão, do cara que é bombeiro, do cara que entra num prédio pegando fogo, sobe as escadas, vai ao décimo andar levando um equipamento que pesa cerca de trinta quilos e ainda carrega um machado para arrancar uma porta. Isso é bruto, é violento. Um cara desses é muito específico. Isso é louco. É um cara corajoso. É um trabalho no meio na violência sempre. Matar um porco, abri-lo, isso é violento. Quebrar um asfalto seis horas por dia, seu couro trepidando, isso é violento. A violência com a qual lido vai por esse caminho. Nunca foi uma violência de “aí maluco, aí tio, perdeu, bandido”. De morro. Porque o Rio de Janeiro tem essa coisa da favela muito presente. Eu não quero saber. Não estou interessada nisso, em bandido, em pivete. Estou interessada em uma outra violência, que é muito pior porque é gerada por trabalhos e profissões que as pessoas precisam ter. Alguém tem que recolher o lixo, abrir o asfalto, desentupir o esgoto. O cara tem que meter a mão ali no esgoto, sentir o cheiro, desentupir. Alguém tem de fazer o trabalho sujo. Trabalho nessa dimensão de violência, de brutalidade. Passo muito longe da questão do bizarro. Também não é uma literatura que eu goste de consumir. Não é a minha praia como leitora nem como escritora. Na minha obra tem o real extrapolado, na beira do abismo. Não é nem bizarro, nem fantástico. É uma realidade extrapolada. Você vai ao limite, mas não extrapola o limite para ir ao bizarro ou para algo irreal. A realidade se torna absurda quando extrapola. A realidade extrapolada é uma mãe parir o bebê num banheiro de rodoviária e jogá-lo na lixeira. Chamamos isso de absurdo, mas é a realidade extrapolada. É a realidade no limite, beirando a barbárie. Gosto de trabalhar sempre no campo do real, colocando elementos do horror e todos os possíveis do real. Tudo o que escrevo é real, é possível de acontecer. Com o máximo de estranheza, mas é possível. Não chego ao campo nem do bizarro nem do fantástico. O que é uma drag queen desmontada? É o meu livro extrapolado. Você tira todo o enfeite, arranca tudo, mostra como é. Aquela carga, aquele homem de sobrancelha fina, sem maquiagem, sem cílio postiço, sem nada. É isso, uma realidade extrapolada, uma coisa exagerada. Isso na literatura, por incrível que pareça, extrapola. Tudo na literatura é uma lente de aumento sobre as coisas. Quando se fala do amor, o amor extrapola. A literatura tem o poder de evocar e trazer um eco muito grande e poderoso. Quando você abre um livro, por mais distante que ele esteja, por mais que o autor já tenha morrido há cem anos, é ele falando contigo. É uma experiência individual. Literatura nunca será uma experiência coletiva. Acho isso muito bonito. Não sei se as outras artes conseguem o mesmo.

• Proust chatérrimo e muita ação
É claro que extrapolar a realidade não é algo corriqueiro. É algo muito particular e que gosto de trabalhar, escrever sobre isso, sobre esse universo. Isso pode até ficar demasiado, mas eu gosto do excesso. Não gosto de me alongar muito em uma história. Há um tempo para escrever um livro. Se já disse tudo, então foi, tem de terminar. Gosto das coisas acontecendo. A cada capítulo tem uma coisa acontecendo. Acho meio chato quando o personagem está com uma dúvida e fica cinco capítulos com esta dúvida. Às vezes, fica sessenta páginas com uma dúvida. Não gosto muito. Acho Proust uma coisa chatérrima. Várias coisas acho chatérrimas. Não gosto de alguns diretores de cinema, como Ingmar Bergman. Às vezes, acho difícil; às vezes, eu amo. Mas, às vezes, digo “está difícil” e fico mais dez minutos e mais dez. Daí, vou lá e coloco Desejo de matar I (primeiro filme da série estrelada por Charles Bronson nas décadas de 1970 e 1980). E gosto muito mais. Tenho uma relação muito tranqüila com as minhas referências. Se acho chato, não quero. Achei o livro chato, não vou ler. É a liberdade. Você pega um pouco disso e daquilo. Os meus livros são de ação, de acontecimentos, mil coisas acontecem. As coisas não ficam paradas, tenho essa influência da ação. É uma ação física, não é no imaginário, não fica muito no psicológico. Essa construção é linda, mas não consigo fazer. Sou agitada até para escrever. Todo mundo tem de estar fazendo alguma coisa, as coisas precisam acontecer, o personagem tem de estar se deslocando e tenho de levar a história para frente. Com isso, você constrói uma história, escolhe caminhos, entrelaçamentos. Adoro isso.

Não estou nem um pouco interessada em falar de amor erótico, de amor homem e mulher, de resolver meus problemas. A literatura para mim não é esse mundo, não é esse lugar. É uma coisa completamente diferente.

• Livros no caminho
Meu encontro com a literatura foi muito particular. Digo que tive uma transformação e uma mudança. Antes disso, tinha lido Agatha Christie, umas coisas legais. Mas me policiava para ler. Gostava mais de ver filme, de correr e brincar, mas lia Agatha Christie. Achava o máximo quando lia um livro grosso. Ia marcando as páginas a conta gotas. Tive muita dificuldade até chegar a esse momento de leitura. De repente, resolvi puxar um livro da prateleira e comecei a ler. Foi espontâneo e aquela leitura me encheu de alguma coisa. Uma leitura puxou outra e assim foi me enchendo e me mudando. Não faço a menor idéia do que fazer para uma criança ou adolescente gostar de ler. Deixe-o fluir, vai deixando livros por perto, arme armadilhas como ratoeiras. De repente, ele tropeça no livro. Deixe os livros por perto. Um dia, quem sabe, ele pode pegar o livro pelo título, pela capa. Pode ler a primeira frase. Não gosto de livro que é focado para adolescente, gosto de coisas gerais. Alfabetiza a criança, vai levando para o bom caminho. Coloca livros no meio do caminho. Não existe uma fórmula, uma mágica para despertar o interesse pela leitura.

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